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TEORIA

1975 versus 2015: A consciência após o fim dos Estados Operários

Em meados de 1971, após sua divisão, o grupo de exilados brasileiros no Chile que formavam o Ponto de Partida ficou temporariamente reduzido a apenas quatro militantes em atividade. Passadas algumas poucas semanas, esse pequeno grupo, em que fiquei com Tulio Quintiliano, aumentou para oito companheiros. Juntavam-se a nos ativistas recém-chegados que fugiam da ditadura militar no Brasil.

Naquelas circunstâncias, esse crescimento foi uma grande vitória. Principalmente se levarmos em conta que a contra-revolução imperava em nosso país na era mais tenebrosa da ditadura, a era Médici. Estávamos a mais de três mil quilômetros de São Paulo.

No entanto, o que nos dava força, ímpeto e confiança no futuro era, de longe, lá do sudeste asiático, os avanços das massas vietnamitas contra as forças armadas do imperialismo norte-americano; de perto, a poderosa revolução em marcha no Chile, onde centenas de milhares de proletários e jovens desfilavam suas bandeiras vermelhas pelas ruas do país, quase todos comunistas ou socialistas. O Partido Comunista tinha 200 mil filiados e o Partido Socialista, 400 mil, em uma nação de 10 milhões de habitantes. Esses números, trazidos proporcionalmente para o Brasil de 2015 – nosso país é 20 vezes maior que o Chile – significariam que o PS chileno teria 8 milhões de filiados, sendo o PS um partido reformista radical situado bem mais à esquerda que o PC chileno.

Atualmente não há mais Frentes Populares desse tipo, onde a possibilidade de expropriação da burguesia era muito possível pela radicalização e consciência das massas, bem como pela existência dos antigos Estados Operários. Não se deve confundir esse tipo de Frente Popular com qualquer governo de colaboração de classes, como atualmente existe com François Hollande na França ou Lula e Dilma no Brasil. Apesar de muito à esquerda, extraordinária, também, foi a capitulação sem luta das direções reformistas radicais e de colaboração de classes do PS, do PC e do governo Allende.

Foi nesse contexto que se desenvolveram os dois grupos Ponto de Partida. Em meados de 1973, quando decidimos por voltarmos a ter um funcionamento em comum e nos reagruparmos, veio o golpe. Éramos cerca de 16 companheiros. Tulio foi assassinado. Eu e Antônio Paulo fomos presos. Fui expulso para a França. Jones se exilou no Canadá e os demais deixaram de militar após mais essa derrota da revolução. Apenas quatro companheiros conseguiram fugir das garras de Pinochet. Antes de retornarem ao Brasil, outros seis militantes brasileiros se juntaram a eles na Argentina do antigo PST, ficando o núcleo original com 10 camaradas que iriam fundar  a Liga Operária, posteriormente Convergência Socialista em 1978.

A aritmética do crescimento à luz da etapa mundial da luta de classes

Em meados de 1978, retornei ao Brasil, ingressando formalmente na saudosa e querida Convergência Socialista, a CS. Eram passados quatro anos e meio após o golpe e do retorno dos camaradas do Ponto de Partida ao país. Zezé, responsável por toda a parte organizativa me recebeu de braços abertos e comentou: “agora você é o militante de número 560 da CS”.

Era assim nos anos 70: de 10 que retornaram ao Brasil a partir do começo de 1974, passamos a 560 em junho de 1978. Éramos 56 vezes mais fortes quantitativamente num espaço de tempo de apenas 4 anos e meio. Exatamente no período dos governos ultra-reacionários e ditatoriais de Médici e Geisel, numa conjuntura contra-revolucionária na América do Sul, com ditaduras militares na Argentina, Uruguai, Chile, Bolívia, Peru e Paraguai. Uma época em que ser militante de esquerda era, em potencial, quase sinônimo de ser capturado, torturado e assassinado pela forças repressivas.

Ao buscarmos respostas para tal crescimento, verifiquemos algumas questões de ordem subjetiva. É verdade que a CS se amparou nas tradições teóricas e práticas do antigo Partido Socialista do Trabalhadores da Argentina. É verdade que se apropriou da herança política e programática trotskista da antiga minoria do Secretariado Unificado da IV Internacional. É verdade que tínhamos o aprendizado pessoal e prático dos equívocos  do guerrilheirismo de Che Guevara, bem como do reformismo dos PCs brasileiro e chileno, assim como do centrismo pseudo-esquerdista do PS chileno. No entanto essas considerações, ainda que importantíssimas, não explicam por completo o crescimento vertiginoso da antiga CS.

O panorama de fundo que possibilitava esse fenômeno de crescimento era a realidade da luta de classes a nível mundial com a guerra no sudeste asiático e a fantástica vitória política e militar em 1975 das massas vietnamitas contra o imperialismo norte-americano, onde as forças armadas ianques chegaram a contar com 500 mil soldados naquela região. O Vietnã mostrava a todos os ativistas do mundo que era possível  expropriar a burguesia. Surgiam ativistas às pencas em escala mundial, talvez na escala de centenas de milhares ou até mesmo de alguns milhões. Os reflexos disso se expressavam também no Brasil . Elas davam imenso fôlego à nossa esquerda derrotada nos anos 60.

A expropriação da burguesia no Vietnã foi mais uma das hipóteses ‘altamente improváveis’ prognosticadas por Trotsky e verificadas na realidade.  E por quê? Tal qual acontecera anteriormente na China, Coréia do Norte e Cuba, o enfrentamento de massas com o imperialismo e a consequente expropriação da burguesia levaram esses países, imediatamente, a atar laços econômicos e comerciais com o país da primeira revolução socialista da história, com o Estado Operário, ainda que burocratizado, da antiga União Soviética. Atualmente, em 2015, aquela “hipótese” parece ser impossível, pois não mais existe União Soviética e os demais 31 antigos Estados Operários.

Como já dissemos no artigo anterior, a palavra de ordem “Um, dois, três Vietnãs” atingia a consciência dos ativistas e das massas em todo o planeta.

É nesse cenário que floresciam militantes no mundo inteiro, que sonhavam e lutavam para, num futuro próximo, expropriarem a burguesia em seus países.  Era a consciência socialista que se apossava de milhões de pessoas em várias partes do mundo. Na vanguarda se discutia muito sobre qual era o socialismo desejado. Se o modelo soviético, chinês, cubano. Até mesmo havia espaço nessa vanguarda para a perspectiva anti-burocrática delineada pelo trotskismo. Não é à toa que não somente no Brasil o trotskismo em suas várias nuances teve esse crescimento espantoso. Na Argentina, por exemplo, à altura do Maio francês e do Vietnã, o saudoso PST teve um crescimento bárbaro que se refletiu nas eleições de 1973. Depois, finda a ditadura em 1982, houve um novo salto no crescimento dessa corrente, agora enquanto MAS. Poucos anos depois chegou até mesmo a fazer um comício em praça pública reunindo cerca de 100 mil pessoas.

Os grandes acontecimentos mundiais e a consciência dos ativistas

Os números assinalados anteriormente sobre o crescimento da antiga Convergência Socialista, de 10 para 560 militantes, revelam que essa Organização foi multiplicada em 56 vezes o número de companheiros  de 1974 a meados de 1978.

Imaginemos que, em 2015, uma hipotética organização revolucionária, tivesse exatos três mil militantes. Não me refiro a filiados. Se se registrasse idêntica velocidade de crescimento da década de 70, em quatro anos e meio essa organização teria em meados de 2019 cerca de 168 mil militantes, o que é inimaginável no momento.

No entanto, em seus escritos sobre a revolução espanhola da década de 30, Trotsky escreveu que uma pequena organização poderia, em curto espaço de tempo, se transformar num poderoso Partido capaz de levar a cabo a expropriação da burguesia.

Realmente assim era o crescimento naquela época, como sucedeu na Alemanha com a pequenina Liga Spartacus de Rosa de Luxemburgo e Karl Liebknetch, fundada em 1915, durante a I Guerra Mundial. Transformada em Partido Comunista em 1918, este chegou a ter 300 mil militantes em 1923, onde poderia ter expropriado a burguesia alemã. O principal cenário de fundo desse gigantesco crescimento era a colossal vitória da Revolução Russa de 1917, que inspirava a consciência comunista para os ativistas nos mais variados quadrantes do mundo e penetrava fundo nas massas.

Para citar apenas mais um exemplo, o que dizer então da Revolução Cubana em 1959 e seus efeitos em toda a América Latina? Quantas dezenas de milhares de militantes surgiram em nosso continente e se transformaram em guerrilheiros aqui no Brasil, Argentina, Uruguai, Colômbia, Nicarágua e em quase todos os países latino-americanos! A expropriação da burguesia na formosa ilha da América Central incidiu por completo na consciência da juventude daquela época. Minha geração, a geração 68, quase que por completo jogou sua vida nos combates guerrilheiros, acreditando que, dessa maneira equivocada, poderia se fazer a revolução.

Qual o grande acontecimento mundial nas últimas três décadas?

A consciência da vanguarda ativista e do movimento de massas à escala mundial é sempre relacionada com os grandes acontecimentos objetivos que se dão na realidade, ou seja, os efeitos ao nível das consciências, que a fazem avançar ou a retroceder, estão subordinados aos fatos objetivos da dinâmica da luta de classes na esfera mundial.

Sem dúvida o grande acontecimento histórico, da luta de classes mundial nas últimas décadas, que permeia por completo a consciência dos ativistas e das massas foi o desaparecimento dos 32 antigos Estados Operários, com a restauração do capitalismo e o ressurgimento das respectivas burguesias nacionais através dos antigos burocratas stalinistas.

Para as massas no mundo inteiro, para a quase totalidade dos ativistas, o fim dos Estados Operários cravou em suas consciências que o socialismo morreu. Esse “socialismo real “ era o único conhecido pelas massas e por quase toda a vanguarda ativista.

Apenas nós, trotskistas, desde a década de 20, víamos o stalinismo da burocracia operária como inimiga mortal do socialismo. Se antes caracterizávamos a burocracia como correia de transmissão do capital, os agentes do stalinismo se transformaram, eles mesmos, como a nova classe burguesa nos respectivos nos países que dominavam. Já não são mais os agentes, mas sim os novos protagonistas do capital, tal qual Trotsky preconizou.

Do ventre dessas burocracias stalinistas foram gerados os novos partidos e organizações políticas burguesas em todo o Leste Europeu, em todos os antigos Estados Operários. A História registrará para sempre o stalinismo como o elemento chave da contra-revolução.

Realizou-se o prognóstico de Trotsky, portanto, escrito nas últimas páginas da sua biografia sobre Stalin: “A burocracia stalinista não é mais do que a primeira fase da restauração burguesa”.  (TROTSKY, pg 848, 2012) Ao  deter o poder de Estado e ao se apropriar da parcela maior do excedente econômico, as burocracias stalinistas não terminaram, não desapareceram, mas sim se transformaram de camada social parasitária nos 32 antigos Estados Operários em classe social burguesa dominante na restauração do Estado capitalista.

O melhor exemplo dessa metamorfose é o atual presidente, pela terceira vez, da Rússia, Vladimir Putin. Membro do Partido Comunista desde a sua juventude, passou 16 anos nos serviços secretos, chegando à patente de coronel, ou seja, foi um alto membro da KGB, chegando a chefiá-la. Atualmente, Putin é acionista de várias empresas, como as de gás e petróleo. Sua fortuna é estimada em até 70 bilhões de dólares, o que faz dele um dos homens mais ricos do mundo.

Em 1936, no livro “A Revolução Traída”, pode-se ler a terceira hipótese descrita por Trotsky acerca do futuro da União Soviética, hipótese que creio que nos faz entender com clareza e profundidade o processo de restauração capitalista ocorrida cerca de 50 anos depois desse texto:

“Admitamos, contudo, que nem o Partido revolucionário nem o Partido contra-revolucionário se apoderem do poder e que é a burocracia que se mantém à frente do poder. A evolução das relações sociais não cessa. Não se poderá pensar, evidentemente, que a burocracia abdicará em favor da igualdade socialista. Como se sabe, apesar dos graves inconvenientes, desta operação, ela restabeleceu as patentes e as condecorações; será, pois, inevitavelmente necessário que procure apoio nas relações de propriedade.” (Trotsky, 2008)

Qual a consciência das massas nos últimos anos?

Se até o fim dos Estados Operários a consciência de uma ampla parcela das massas era, em sua imensa maioria genericamente socialista, a cruel realidade é que hoje em dia não é mais socialista. A causa essencial é já que acabaram os Estados Operários do “socialismo real“. A imensa maioria dos ativistas não reivindica o socialismo. Muito menos as massas.

A bem da verdade, atualmente na maioria dos países civilizados, a consciência dos ativistas não vai além da radicalização e aprofundamento das liberdades na democracia-burguesa, seja nas mobilizações de rua, como vimos em junho de 2013 em nosso país. Isso também se reflete nas esferas sindicais ou nos aparatos parlamentares onde atuam os reformistas.

No Brasil e em vários países não predomina nem mesmo no seio do proletariado até mesmo a consciência mais elementar, como o classismo, cujo significado consiste em que o proletariado identifica-se a si mesmo como uma classe diferenciada, específica.

Hoje reaparecem defuntos havia muito tempo semi-enterrados, como as vertentes anarquistas negadoras de Partidos, sindicatos e até mesmo qualquer tipo de organização para a luta da juventude e dos trabalhadores. É o individualismo exacerbado, individualismo bem ao gosto das ideologias pró-capitalistas.

Hoje em dia uma parcela grande da juventude prefere tão somente ser atuante em questões importantes como o alargamento das liberdades democráticas para o movimento negro, feminista ou LGBT, porém sem relacionar devidamente estas questões essenciais com a consciência de classe e a negação do capitalismo. Outra parte se dedica somente à extensão dos direitos do ‘cidadão’, este ausente do seu caráter de classe.

Há até mesmo parcelas da vanguarda combativa nas greves das mais diferentes categorias que se mantém apenas atuante na esfera das lutas econômicas e sindicais, mas nutrem uma desconfiança imensa em tudo que é Partido de esquerda. Aqui no Brasil, o atraso político refletido na consciência é tão grande que a imensa maioria da população vê ainda no PT, ainda em 2015, como um partido “vermelho”, do tipo “comunista”.

No entanto, ao lado de todo esse rebaixamento da consciência de classe após a falência do ‘socialismo real’, do fim dos 32 antigos Estados Operários, a investida exploradora do capitalismo segue ainda mais brutal. Os planos de austeridade impostos pelos imperialismos para os pagamentos das dívidas públicas ocorrem nos mais diversos países do mundo, seja no Brasil, na Argentina, Grécia, Espanha, Portugal etc.  Paralelamente à austeridade, também assistimos os mais diversos tipos de precarização nas relações de trabalho, a constante redução dos salários e um rebaixamento geral do nível de vida do proletariado.

 

Etapa histórica de defesa e contra-ataque

Frente a todas essas investidas do capitalismo, o proletariado e a juventude reagem e se defendem de todas as maneiras possíveis. Se na década de 90 os efeitos do fim dos Estados Operários paralisaram em grande parte as lutas do proletariado e da juventude, a embate contra o capital vai se redesenhando em vários lugares a partir dos anos 2.000 e recrudescem frente à grande crise econômica dos anos 2008 em diante.

Nos últimos tempos assistimos aos mais variados tipos de lutas da nossa classe e da juventude em vários países do mundo. Manifestações envolvendo centenas de milhares de pessoas ocorreram simultaneamente em 2012 na Espanha, Itália, Portugal e Grécia. Neste último país, dezenas de greves gerais foram realizadas e deram base, na superestrutura, à vitória eleitoral do governo reformista do Syriza.

Ressurgiram também novas organizações e movimentos que apenas possuem a estratégia do alargamento das liberdades democráticas com a manutenção do capitalismo, como o Indignados e o Podemos na Espanha ou o Occupy Wall Street, para citar apenas alguns casos. O mesmo fenômeno se apoderou da direção majoritária do PSOL aqui no Brasil. Em geral, eles acabam encontrando nas eleições periódicas da democracia-burguesa  e na eleição de deputados a sua ‘grande’ e única estratégia.

No entanto, a realidade atual tende a nos deixar otimistas. No Brasil, em 2015, a quantidade de greves é quase idêntica a dos anos 78/79 quando começamos a derrubar a ditadura. No Chile, as lutas recomeçam sob a vanguarda dos estudantes. Ainda estas semanas, no Uruguai, cerca de 50 mil professores saíram em passeata pelas ruas de Montevidéu. Na Argentina, refletindo as lutas de classes diretas, a Frente de Esquerda obteve 10,39% dados à candidata a governadora Noelia Barbeito no estado de Mendoza. Os exemplos seriam muitos e ocupariam muitas páginas.

Em conclusão, ainda vivemos uma etapa histórica defensiva após o fim dos 32 Estados Operários. Lembremo-nos, no entanto, que às defesas correspondem, em geral, uma contra-ofensiva. A nova situação mundial mostra que pode se reabrir melhores condições para a construção de partidos trotskistas. Para isso haverá que saber enfrentar as novas alternativas reformistas que surgem como o Syriza e Podemos. A direção majoritária do PSOL se enquadra nesse contexto. De alguma forma eles ainda se desenvolvem apoiados na consciência pós-Leste europeu, de que o “socialismo morreu”, de que só resta melhorar a democracia-burguesa. Mas, enfrentá-los requer que entremos no terreno da política prática, uma questão chave que não é objetivo desse texto.

Para terminar, as palavras do Programa de Transição continuam plenamente atuais:

“A IV Internacional, respondemos, não tem necessidade de ser proclamada. Ela existe e luta. É fraca?. Sim, suas fileiras são ainda pouco numerosas, pois ela ainda é jovem. Ela se compõe sobretudo de quadros dirigentes. Mas esses quadros são a única garantia do futuro. Fora esses quadros, não existe neste planeta, uma só corrente revolucionária que mereça esse nome. Se nossa Internacional é ainda fraca em número, ela é forte pela doutrina, pela tradição, pelo programa, pela têmpera incomparável de seus quadros. Amanhã isto será mais visível”.(TROTSKY, 1936)

Bibliografia:

TROTSKY, Leon; Programa de Transição, 1936, Marxist Internet Archive.

TROTSKY, Leon; COGGIOLA, Oswaldo. Stalin: Biografia – Estudo preliminar de Oswaldo Coggiola. Editora Livraria da Fisica, 2012, São Paulo

TROTSKY, Leon; A Revolução Traida, Editora Centauro, Rio de Janeiro, 2008