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TEORIA

Aos que virão depois de nós – resenha do livro Orquestra Vermelha

Ramsés Eduardo Pinheiro

Realmente, vivemos tempos sombrios!
A inocência é loucura.
Uma fronte sem rugas
denota insensibilidade.
Aquele que ri
ainda não recebeu a terrível notícia
que está para chegar.

Que tempos são estes,
em que é quase um delito
falar de coisas inocentes,
pois implica em silenciar
sobre tantos horrores?!

(Tempos Sombrios, Bertolt Brecht)

Publicado no Brasil no momento em que se comemoram os 70 anos do final da Segunda Guerra Mundial, o livro Orquestra Vermelha: a história do grupo de amigos que resistiu a Hitler é uma obra imprescindível para aqueles que pretendem conhecer uma história muito pouco ainda ignorada: a resistência dos alemães comuns ao Terceiro Reich. Resultado de uma longa e competente pesquisa realizada a partir do final dos anos 1990 pela jornalista e dramaturga Anne Nelson, o livro estrutura-se sobre uma extensa e sólida base empírica que torna possível a autora desenvolver uma narrativa magnífica sobre a ascensão e consolidação do regime nazista na Alemanha nos anos 1930 e grupo de resistentes de Berlim que lutou clandestinamente contra as atrocidades do aparato repressivo alemão.

O título do livro levante uma série questionamentos que são trabalhados por Anne Nelson ao longo de sua narrativa. A expressão Orquestra Vermelha foi utilizada pela inteligência alemã para nomear a rede de espionagem soviética que atuou na Europa Ocidental durante a Segunda Guerra Mundial. O pouco que conhecemos sobre o tema está presente no livro autobiográfico O Grande Jogo escrito pelo agente secreto polonês soviético Leopold Trepper, onde o mesmo narra sua experiência no comando da referida rede de espionagem que foi capaz de enviar informações sobre a invasão alemã à União Soviética, advertência esta ignorada por Stálin, resultando em milhões de perdas humanas. O próprio Trepper foi vítima do regime stalinista quando retornou a União Soviética em 1945, ocasião em que foi preso e permaneceu cerca de dez anos encarcerado nos porões da Lubianka, a sede da polícia política soviética em Moscou.

A autora pontua que o termo Orquestra Vermelha foi estendido a todos os grupos que resistiram ao regime nazista independente de sua relação com os soviéticos. De todo modo, Anne Nelson ressalta, em diversos momentos, que o grupo de resistentes de Berlim manteve contatos pontuais com os agentes soviéticos (inclusive com o grupo de Trepper) a despeito de preservar sua autonomia ideológica e operacional. O subtítulo do livro “o grupo de amigos que resistiu a Hitler”, demonstra o caráter singular que o círculo de resistentes de Berlim assumiu e que serve como mote para a narrativa da autora que acompanha a história do grupo e sua resistência a partir da perspectiva da jovem Greta Lorke Kuckhoff uma das únicas sobreviventes que deixou um relato memorialístico de sua experiência na resistência antifascista.

A partir da trajetória de Greta vamos sendo apresentados a todos os outros personagens que integravam o grupo de resistentes de Berlim. Desta forma, conhecemos o economista alemão Harvid Harnack e sua esposa a crítica literária estadunidense Mildread Fish, os quais Greta conheceu durante seus estudos nos Estados Unidos nos anos 1920. Também conhecemos o proeminente dramaturgo Adam Kuckhoff, futuro esposo de Greta. Também somos apresentados ao operário John Sieg e sua esposa polonesa Sophie Wloszczynski. John é sem dúvida um dos personagens mais fascinantes do livro, sua condição de operário, jornalista e comunista lhe conferiu uma posição central no processo de resistência ao regime nazista. Completando o núcleo central do círculo de resistentes de Berlim, somos apresentados ao oficial da Luftwaffe Harro Schulze-Boysen e sua esposa Libertas Haas-Heye, ambos com ampla circulação entre os círculos aristocráticos e o universo da resistência na capital do Terceiro Reich.

Um dos pontos forte da obra é o papel que a autora confere as mulheres do grupo. Longe de representarem esposas passivas que acompanharam seus maridos na luta contra o nazismo, elas desempenharam uma papel ativo na construção da rede de resistência antifascista de Berlim. Greta, Mildread, Sophie, Libertas e outras mulheres, como a atriz Marta Wolter, revelam toda sua indignação contra as atrocidades perpetradas pelo regime nazista e deixam bastante clara sua escolha de “fazer aquilo que era certo”, ou seja, resistir. Neste sentido, Anne Nelson também destacou a participação ativa das mulheres nos debates políticos e nas operações clandestinas, bem como suas posições emancipatórias em relação a temas como casamento e sexo.

Os primeiros capítulos do livro nos apresentam a Alemanha de Weimar na transição das décadas de 1920 para 1930. As imagens de crise econômica e pauperização crescente da população alemã, intensificadas após a crise de 1929, são expostas paralelamente à grande efervescência cultural em Berlim, a capital mais cosmopolita da Europa segundo a autora. Este frenesi cultural é percebido através da grande importância que o teatro adquiriu na capital alemã, inclusive, como instrumento de crítica política e social amplamente utilizado pelo Partido Comunista Alemão (KPD) e intelectuais engajados como Adam Kuckhoff e o jovem Bertolt Brecht. Em meio às ambigüidades deste contexto, Greta e seus amigos observavam com grande preocupação o rápido crescimento do Partido Nazista na Alemanha.

Anne Nelson aborda a ascensão do nazismo na Alemanha a partir de uma perspectiva que confere ao KPD grande parcela da responsabilidade pela chegada de Hitler ao poder. A autora pontuou que ao estabelecer o Partido Social-Democrata (SPD) como seu principal inimigo, os comunistas alemães deixaram o terreno aberto para que os nazistas chegassem ao poder. Anne Nelson explora esta questão argumentando que a política adotada dos comunistas alemães representou um processo de intensa subordinação dos partidos comunistas locais aos ditames da Internacional Comunista, cujo VI Congresso (1928) determinou que os partidos social-democratas deveriam ser considerados os principais oponentes dos comunistas. Em última instância, a autora atribui a Stálin a inviabilização da aliança entre comunistas e socialistas na Alemanha, fato este determinante para a ascensão do nazismo nos pais.

Um ponto negativo no livro da jornalista estadunidense é que ela não expõe a matriz desta interpretação sobre a conquista do poder pelos nazistas. Perseguido intensamente pelo regime stalinista e expulso da União Soviética, Leon Trotsky observou com crescente preocupação a política dos partidos comunistas locais, em especial do KPD alemão, em relação aos partidos socialistas. Diante deste contexto, Trotsky escreveu diversos textos defendendo intransigentemente a formação de uma Frente Única entre o KPD e o SPD, sempre alertando que a frustração desta aliança representaria uma carta branca ao nazismo. Os trotskistas brasileiros reuniram estes textos no livro Revolução e Contrarrevolução na Alemanha, publicado originalmente em 1933 e recentemente reeditado pela Editora Sundermann.

A tomada do poder pelos nazistas na Alemanha em 1933 adquiriu uma grande relevância para Trotsky, significando a sua ruptura definitiva com a Internacional Comunista stalinizada e o início da construção da IV Internacional como alternativa marxista e revolucionária. Anne Nelson também apresenta outro debate menos conhecido, trata-se da prisão e execução de inúmeros comunistas alemães que se exilaram na União Soviética após a subida dos nazistas ao poder na Alemanha. A autora ressalta que além de exterminar milhões de dissidentes soviéticos, os expurgos promovidos pelo regime stalinista nos anos 1930 também foi responsável pelo perecimento de 90% dos comunistas estrangeiros que se encontravam em Moscou, entre eles inúmeros comunistas alemães vistos como uma ameaça por Stálin e pela cúpula do KPD.

O historiador trotskista francês Pierre Broué aponta que a eliminação dos comunistas alemães pelo regime stalinista foi comparável a repressão que os mesmos sofreram pelo nazismo na Alemanha. Utilizando dados do historiador Hermann Weber acerca do assassinato dos dirigentes do KPD, Broué aduziu que:

Hermann Webber fez as contas: seis ex-membros do Polburo do tempo de Weimar foram mortos por Hitler; cinco membros titulares e dois suplentes, por Stálin. Dos membros do último Polburo, dois foram mortos por Hitler; cinco, por Stálin. Dos 35 membros do Comitê Central eleito em 1927, sete foram mortos na Alemanha e o mesmo tanto na União Soviética. Dos 38 membros eleitos do CC em 1929, sete pereceram na Alemanha; seis na União Soviética. Dos 131 membros ou suplentes do CC do tempo de Weimar, 18 foram vítimas de Hitler; 15, de Stálin. Trinta e seis ex-deputados comunistas do Reichstag pereceram sob Hitler; 13, sob Stálin. Dos 127 delegados do Congresso de fundação do KPD; quatro foram mortos pela direita; quatro, por Hitler, e sete, por Stálin. (BROUÉ; 2007).

Se pensarmos no conjunto dos comunistas alemães exterminados pelo stalinismo e pelo nazismo estes números certamente alcançam cifras ainda mais assustadoras. A autora aponta que este massacre recrudesceu após a assinatura do Pacto de Não-Agressão Germano-Soviético em 1939, quando Stálin entregou aos nazistas milhares de comunistas alemães acusados de dissidência. A perseguição sistemática aos comunistas alemães exilados em Moscou, bem como a execução de grande parte dos agentes da inteligência militar soviética, terminou por minar as possibilidades de solidariedade internacional aos antifascistas alemães, isolando, assim, os círculos de resistência como aquele do qual participariam Greta e seus amigos em Berlim.

A intensificação da repressão nazista, desde o assassinato brutal do ator comunista Hans Otto no final de 1933 até a construção dos primeiros campos de concentração para presos políticos, foi acompanhada por uma forte indignação de alemães como Greta, Adam e seu grupo de amigos. A passagem a clandestinidade foi o primeiro passo na formação de um círculo de resistência ao novo regime, cujas atividades iniciais se voltaram para a produção e distribuição de panfletos em Berlim denunciando o regime nazista. Mais tarde, muitos integrantes da resistência que trabalhavam em instituições do governo nazista, como Harnack e Harro Schulze-Boysen, passaram a reunir informações-chave sobre a estrutura econômica e militar alemãs, repassando-as a URSS e em menor grau aos EUA. Outra atividade permanente do grupo foi à retirada de judeus do país, operações que sempre envolviam grandes riscos aos participantes.

O desenvolvimento das atividades clandestinas de resistência antifascista em Berlim teve como uma das suas principais bases de apoio o bairro operário de Neukölln, que mesmo antes da tomada do poder pelos nazistas era uma das bases mais importantes do KDP. A principal liderança deste bairro era operário comunista John Sieg, a partir deste personagem a autora nos apresenta aos militantes de base do KPD que resistiram à repressão e ao desmantelamento do partido pelos nazistas, restabelecendo suas atividades entre os operários industriais de Berlin. A partir de um velho hectógrafo (uma espécie de mimeógrafo), os militantes de Neukölln reproduziam os textos datilografados por Sieg (outrora um dos redatores do jornal comunista Bandeira Vermelha) e os distribuíam clandestinamente por vários pontos de Berlim. Anne Nelson também evidenciou a forte aversão destes militantes comunistas de base aos membros do Comitê Central do KPD exilados em Moscou e protegidos por Stálin, como Walter Ulbricht, futuro Presidente do Conselho de Estado da Alemanha Oriental.

Anne Nelson evidencia que não havia um grupo de resistência unificado em Berlim, sendo mais adequado falar em círculos que se superpunham como aqueles em torno de Arvid Harnack, Harro Schulze-Boysen e John Sieg. Apesar da forte influencia que os comunistas exerciam no grupo e da simpatia de Adam Kuckhoff e Arvid Harnack pelas ideias socialistas, a autora ressaltou a heterogeneidade na formação destes círculos:

No final de 1941, os círculos haviam se espalhado e se multiplicado em muitas direções. Nunca existiu uma forma de contar seus membros. Já que não se mantinha nenhum registro e o conhecimento sobre outros grupos era o mínimo possível, por questões de segurança. Mas os grupos se estendiam pela profissão médica, pelos militares, a academia e as artes. Politicamente eram constituídos por conservadores, comunistas, social-democratas e ex-nazistas. Suas afiliações católicas incluíam católicos, luteranos, judeus e uma cartomante profissional. As idades iam de adolescentes a avós e avós idosos, e abarcavam de aristocratas a moradores de casas de cômodos. Suas atividades estavam concentradas em algumas vizinhanças de Berlim, mas seus contatos estendiam-se pelo país. (NELSON; 2015).

A descrição oferecida pela autora revela a pluralidade de atores que formavam a resistência antifascista na Alemanha, multiplicidade que tinham como ponto de a derrocada do nazismo. Após um intenso cerco promovido pela polícia política nazista, quase todos os membros do grupo de resistentes de Berlin foram condenados a morte e execução nos porões da sede da Gestapo entre 1942 e 1943. Greta foi uma das poucas sobreviventes do grupo, após o fim do nazismo na Alemanha sua principal batalha foi levar a julgamento o juiz militar nazista Manfred Roeder que condenou sumariamente seus amigos à morte. O desejo de justiça de Greta foi inviabilizado pela nova política dos EUA que recrutou inúmeros nazistas para enfrentar seu novo inimigo, a União Soviética, entre eles Roeder o responsável pela condenação e execução dos membros da famigerada Orquestra Vermelha.

O historiador francês Marc Ferro chama a atenção para o forte tabu que envolve a adesão das populações aos regimes fascistas, levantando a responsabilidade não apenas das instituições, mas também dos grupos sociais. De outro modo, também podemos argumentar que a atuação dos grupos de resistência antifascista na Alemanha nazista também ainda é um tema muito pouco explorado. Neste sentido, este assunto só começou a ser esclarecido após a reunificação da Alemanha, quando os mitos sobre a Orquestra Vermelha começaram a ser desfeitos. A partir da minuciosa pesquisa de Anne Nelson, os personagens do grupo de resistentes de Berlim começaram a emergir dos arquivos alemães, russos e norte-americanos, bem como das memórias dos sobreviventes do grupo como Greta não somente como instrumentos de forças externas, mas como sujeitos ativos e conscientes.

O livro de Anne Nelson representa uma enorme contribuição no sentido de resgatar a história do grupo de resistentes de Berlim do silenciamento imposto pela antiga Alemanha Ocidental e EUA, bem como da tentativa da antiga URSS de concebê-lo como mais um instrumento de sua rede de espionagem. Sua obra ainda apresenta uma importante contribuição no tocante ao debate sobre a responsabilidade do KPD, da Internacional Comunista e de Stálin em relação à ascensão dos nazistas na Alemanha e também sobre o impacto dos expurgos do regime stalinista sobre os comunistas estrangeiros, em especial dos alemães, e também sobre a rede de inteligência militar soviética.

Enfim, em tempos em que os partidos de extrema direita se fortalecem na Europa defendendo abertamente um discurso de ódio aos imigrantes, recuperar a história dos homens e mulheres que resistiram ao nazismo na Alemanha significa antes de tudo reafirmar a necessidade de lutar permanentemente contra toda e qualquer ameaça fascista. Hoje, como há setenta anos e mais anos.

REFERÊNCIAS

NELSON, Anne. A Orquestra vermelha: a história do grupo de amigos que resistiu a Hitler. Rio de Janeiro: Editora Record, 2015.

TREPPER, Leopold. O grande jogo. Lisboa: Portugália, 1975.

TROTSKY, Leon. Revolução e contrarrevolução na Alemanha. São Paulo: Editora Sundermann, 2011.

BROUÉ, Pierre. História da Internacional Comunista, 1919-1943: da atividade política á atividade policial e anexos. São Paulo: Editora Sundermann, 2007.

FERRO, Marc. História da segunda guerra mundial. São Paulo: Editora Ática, 1995.