Ramsés Pinheiro
O objetivo deste breve artigo consiste em ressaltar a importância do texto “Esboço de uma análise da situação econômica e social do Brasil” como o primeiro marco na elaboração de uma interpretação marxista sobre a formação social brasileira. Fruto da reflexão dos primeiros trotskistas brasileiros, o “Esboço”, expressão que utilizarei para denominar este texto, representou uma interpretação distante do dogmatismo e do esquematismo reinantes nas teses do Partido Comunista do Brasil (PCB) e da Internacional Comunista (IC) sobre o Brasil, enfatizando, por outro lado, a construção urgente de uma estratégia revolucionária pelos comunistas brasileiros.
Escrito por M. Camboa e L. Lyon, pseudônimos dos trotskistas Mario Pedrosa e Lívio Xavier em meados do ano de 1930, o “Esboço” foi publicado pela primeira vez no jornal A Luta de Classe, em sua edição nº 06 de fevereiro/março de 1931. Em 1987, o veterano trotskista Fúlvio Abramo e o historiador Dainis Karepovs publicaram o livro “Na contracorrente da história” pela editora Brasiliense, uma coletânea dos documentos da primeira geração de trotskistas brasileiros, entre eles o “Esboço”. Recentemente a editora Sundermann lançou uma nova edição corrigida e ampliada deste livro[1], apresentando mais uma vez ao grande público a instigante interpretação deste e de outros textos imprescindíveis para a compreensão da luta de classes no Brasil.
É importante destacar de inicio que o “Esboço” foi elaborado em um contexto de fortes divergências internas no interior do PCB durante o final dos anos 1920 que culminou na formação de oposições à direção do partido. É durante este processo que surge o Grupo Comunista Lênin (GCL) entre 1929/1930, em torno de ex-militantes do PCB como Mário Pedrosa, Lívio Xavier e Rodolpho Coutinho dentre outros[2]. Formado inicialmente com o objetivo de conferir homogeneidade ideológica ao grupo, o GCL funcionava como um circulo de debates ao mesmo tempo em que passou a atuar publicamente através do jornal A Luta de Classe. Com a criação da Liga Comunista do Brasil (LC) em janeiro de 1931 este grupo adquiriu uma maior organicidade passando a atuar de forma mais efetiva no movimento operário brasileiro.
O surgimento do GCL e da LC no Brasil, bem como de organizações semelhantes em outros países não era algo fortuito. Os conflitos internos nos PCs de diversos países tinham uma forte relação com a luta que se instalou no Partido Comunista da União Soviética nos anos 1920, sobretudo, com as críticas da Oposição de Esquerda, e, posteriormente, da Oposição Unificada, ao processo de burocratização deste partido sob a direção de Joseph Stálin[3]. Neste processo, os militantes que divergiam das posições do PCB logo se identificaram com as proposições de Leon Trotsky, um dos principais líderes da Revolução Russa e ferrenho opositor do processo de burocratização no partido e no Estado soviéticos.
A identificação dos oposicionistas brasileiros com as idéias de Trotsky relacionava-se, sobretudo, a sua crítica à política de uma revolução democrático-burguesa nos países onde o capitalismo havia se desenvolvido tardiamente, tese que significava uma estratégia de revolução por etapas que secundarizava a revolução socialista. Quando Trotsky e diversos outros militantes criam a Oposição Internacional de Esquerda (OIE) em 1930, imediatamente estabelecem contato com os militantes brasileiros do GCL, relação está que se fortaleceu com a filiação da futura Liga Comunista do Brasil à OIE no ano seguinte.
Campo x Cidade: a superação de um falso dilema
A despeito de ter sido escrito por Mario Pedrosa e Lívio Xavier, devemos compreender o “Esboço” como resultado de rico debate entre os militantes que formavam o GCL, futura Liga comunista do Brasil, ou seja, uma elaboração que traduziu o acúmulo das discussões realizadas por aquele grupo em relação ao caráter da formação social brasileira e, por conseguinte, sobre as tarefas que se colocavam diante dos comunistas brasileiros naquele momento.
Neste sentido, é impossível não perceber a crítica presente no “Esboço” às teses defendidas pelo PCB sobre a sociedade brasileira naquele período. Em linhas gerais, estas proposições remontavam as teses defendidas por Octávio Brandão desde 1924 com sua obra “Agrarismo e Industrialismo”. Ao se referir a esta obra, Álvaro Bianchi pontua que Brandão entendia que na sociedade brasileira predominavam os agraristas – em suma os latifundiários aliados aos financistas ingleses, setor contra o qual se insurgiriam os industrialistas – industriais, pequena burguesia, republicanos[4]. Nesta perspectiva, caberia ao proletariado lutar ao lado dos industrialistas contra os agraristas até que a vitória destes e a consolidação de uma revolução democrático-burguesa no Brasil, ocasião em que estaria aberta a possibilidade de uma segunda etapa, a revolução socialista.
Apesar de reconhecer a seriedade da tentativa de Brandão para entender a situação brasileira, Aristides Lobo, que passou a militar nas fileiras trotskistas a partir de 1931, a qualificou como a “mais antimarxista e a mais desastrosa”[5]. No final dos anos 1920, a IC interveio diretamente no PCB realizando a deposição da sua primeira geração de dirigentes como Astrojildo Pereira e o próprio Octávio Brandão. Este processo aprofundou a submissão do partido brasileiro à III Internacional já stalinizada, reforçando a estratégia etapista da revolução democrático-burguesa. Enfim, a independência de classe do proletariado era definitivamente sacrificada em nome da sua aliança com a burguesia nacional.
O “Esboço” apresenta uma perspectiva radicalmente diferente daquela de Brandão e do PCB, para tanto, os autores afirmam que desde o início de sua história, o Brasil esteve ligado ao mercado capitalista internacional, vejamos:
A burguesia brasileira nasceu no campo, não na cidade. A produção agrícola colonial foi destinada desde o começo aos mercados externos. O Brasil foi, no século XVII, o principal produtor de açúcar do mundo. Dos dois eixos de colonização, Bahia – Pernambuco e São Paulo – Rio de Janeiro, o primeiro alcançou sobre o segundo uma vantagem considerável[6].
Não seria exagero afirmar que esta tese foi desenvolvida pela primeira vez no “Esboço”, ou seja, antes dos trabalhos de Caio Prado Júnior Evolução Política do Brasil (1933) e Formação do Brasil Contemporâneo (1942). A partir desta perspectiva, foi possível aos autores do “Esboço” concluir que não havia uma oposição entre industrialistas e agraristas. Ao contrário, a participação do Brasil no mercado capitalista mundial desde a colonização excluía qualquer possibilidade das classes agrárias apresentarem hostilidade ao capitalismo. De outro modo, a posição da colônia brasileira no capitalismo mundial como fornecedora de matérias-primas ao mercado europeu moldou as características que o capitalismo assumiu no Estado brasileiro, a exemplo da formação da burguesia a partir do campo.
Os autores do “Esboço” identificam a nascente burguesia brasileira com os cafeicultores do Estado de São Paulo, uma vez que o desenvolvimento da indústria cafeeira era tipicamente um desenvolvimento capitalista, pois:
Todas as condições necessárias para a grande produção estavam reunidas: terras virgens, ausência de rendas fundiárias, possibilidade de maior exposição na produção, numa palavra, possibilidades de monocultura. Assim, o cafeicultor faz convergir simultaneamente todos os seus meios de produção para um único objetivo e, por conseguinte, obtém benefícios até então desconhecidos. O tipo de exploração determinou, portanto, prosperidade favorável ao desenvolvimento do capitalismo sob todas as suas formas[7].
Pedrosa e Xavier também ressaltam que o desenvolvimento do capitalismo no Brasil ocorreu paralelamente à sua integração na economia mundial, sobretudo no tocante a sua atração pelo imperialismo. É nesta perspectiva que os autores argumentam que o imperialismo “revoluciona de modo permanente a economia dos países que lhes são submetidos”, segundo ambos
A penetração do imperialismo é um revulsivo constante que acelera e agrava as contradições econômicas e as contradições de classe. O imperialismo altera, constantemente a estrutura econômica dos países coloniais e das regiões submetidas a sua influencia, impedindo o seu desenvolvimento capitalista formal nos limites do Estado[8].
O argumento exposto por Mario Pedrosa e Lívio Xavier enfatiza, sobretudo, a desigualdade do capitalismo no plano internacional, onde os “países coloniais” possuem seu ritmo próprio de desenvolvimento, ou certo caráter peculiar, que era definida pela combinação entre os elementos mais avançados do capitalismo e as condições materiais e culturais dos países atrasados. Nossos autores reforçam este argumento ao se referirem ao surto industrial e a maior penetração capitalista no Brasil; fatores que não eram contrários, mas coexistiam com o latifúndio e a monocultura cafeeira.
A interpretação dos autores parece ter uma forte inspiração na tese de Trotsky sobre o desenvolvimento desigual e combinado. O revolucionário bolchevique delineou os contornos gerais desta tese em sua obra “História da Revolução Russa” publicada em 1930 (mesmo ano em que nossos autores escreveram o “Esboço”), onde argumentava que “o desenvolvimento de uma nação historicamente atrasada induz, forçosamente, que se confundam nela, de uma maneira característica, as distintas fases do processo histórico. Aqui o ciclo apresenta, visto em sua totalidade, um caráter confuso, complexo, combinado”[9].
As obras de Trotsky certamente influenciaram Pedrosa e Xavier durante a elaboração do “Esboço”. Contudo, esta utilização das ideias de Trotsky se esvaziaria sem a pesquisa empírica dos autores no tocante aos dados sobre a imigração, as exportações, a dívida externa, o capital estrangeiro investido no Brasil, bem como as notas históricas contidas nos limites daquele “Esboço”. Desta maneira, é importante ressaltar a autonomia que a Oposição de Esquerda assumiu no Brasil, como bem percebeu o historiador francês Pierre Broué em prefácio a obra “Na contracorrente da história”[10].
Um combate ao etapismo na revolução brasileira
A partir desta interpretação sobre a formação social brasileira, os autores conseguem extrair uma conclusão de importância fundamental: a incapacidade e o caráter reacionário da burguesia brasileira:
Por essa razão (submissão ao imperialismo), a burguesia nacional não tem bases econômicas estáveis que lhe permitam edificar uma superestrutura política e social progressista. O imperialismo não lhe concede tempo para respirar e o fantasma da luta de classe proletária tira-lhe o prazer de uma digestão calma e feliz. Ela deve lutar em meio ao turbilhão imperialista, subordinando sua própria defesa a defesa do capitalismo. Daí, sua incapacidade política, seu reacionarismo cego e velhaco e – em todos os planos – sua covardia[11].
Ao enfatizar a natureza frágil e reacionária da burguesia nacional, os autores demonstram a insubsistência da proposição de uma revolução democrático-burguesa que liquidasse a dominação dos latifundiários e imperialistas. Ao contrário, argumentam que a fragilidade da burguesia decorria da sua íntima ligação com o latifúndio e o imperialismo. Portanto, caberia ao Partido Comunista defender em primeiro lugar a independência de classe do proletariado em uma revolução que não se detivesse na realização das “tarefas democráticas”, mas avançasse de forma permanente em direção às “tarefas socialistas”.
Os autores pontuam que o caráter reacionário da burguesia nacional tinha como consequência direta um processo de centralização do aparato estatal, o que significava a subordinação da sociedade ao poder executivo. Foi sob esta perspectiva de “divinização da ordem” e dos “ataques a democracia e ao liberalismo” que se formaram os sucessivos governos durante a Primeira República. Contudo, este processo de centralização, exigido pelo desenvolvimento econômico, entrava em contradição com a forma federativa, condição para a união nacional. Esta contradição presente nas primeiras décadas da República resultou em inúmeros conflitos dos quais o principal foi o levante das burguesias de Minas Gerais e Rio Grande do Sul contra a burguesia paulista, processo conhecido como Revolução de 1930.
Escrevendo paralelamente ao levante de 03 de outubro de 1930, Pedrosa e Xavier afirmaram que a existência deste conflito revelava que o processo de centralização no Brasil ainda não havia encontrado uma fórmula definitiva, em suas palavras:
O levante atual marca um momento desse processo. Os Estados revoltados procuram resolver pelas armas a violenta contradição que opõe a forma política federativa ao desenvolvimento pacifico das forças produtoras. A burguesia brasileira procura uma forma conciliadora entre a tendência à centralização do governo e a forma federativa, garantia da unidade política do Brasil[12].
Em trabalho recente, o historiador Felipe Demier analisou a saída encontrada pela burguesia após a chamada revolução de 1930: a ascensão de um governo bonapartista (Vargas) que se colocava “acima dos diversos interesses particularistas das frações dominantes, com o objetivo primeiro de assegurar a ordem capitalista”[13]. Em outras palavras, tinha inicio a dominação indireta da burguesia sobre o restante da nação. Como pontuam os próprios autores do ”Esboço”, a burguesia brasileira reconhecia que sua dominação política era incompatível com sua segurança e sua própria existência.
Nas linhas finais do “Esboço”, Mario Pedrosa e Lívio Xavier afirmaram que a unidade nacional no Brasil só seria conquistada através da intervenção do proletariado, por isso, sua tarefa mais urgente era a “criação de um verdadeiro partido comunista de massas, capaz de conduzi-lo para sua tarefa histórica: a instauração de uma ditadura proletária e a salvaguarda da unidade nacional mediante a organização do Estado soviético”. Deste modo, os primeiros trotskistas brasileiros lutaram intransigentemente para que o PCB retornasse ao caminho revolucionário, assumindo sua posição hegemônica na luta revolucionária e a independência de classe do proletariado. Quando este objetivo se tornou impossível, os trotskistas criaram uma organização independente do PCB, a Liga Comunista Internacionalista, que passou a lutar pela criação da IV Internacional.
A primeira geração dos trotskistas brasileiros apresentou uma vigorosa capacidade teórica e empírica ao analisar a realidade brasileira, seus trabalhos e em especial o “Esboço” representam uma contribuição sem precedentes para o entendimento da formação social brasileira. Dainis Karepovs e José Castilho Marques Neto, dois dos maiores estudiosos do trotskismo brasileiro, assim sintetizaram a importância do documento:
Foi o primeiro esforço sério no sentido de compreender a especificidade da formação brasileira sob o ponto de vista marxista, e nele foram examinados, desde o período colonial, passando pela escravidão, as características do capitalismo brasileiro, os impasses da centralização do poder no federalismo brasileiro e as forças políticas em luta naquele momento. Particularmente no que se refere à analise conjuntural do país “Esboço…” supera visão simplista do PCB, que via no Brasil apenas confrontos entre campo e cidade, entre conservadores e progressistas, entre imperialismos inglês e americano. (…) Este texto será a base de interpretação política dos trotskistas brasileiros durante muitos anos, e, décadas depois, suas teses serão retomadas por intelectuais no meio acadêmico para explicar e compreender a chamada “revolução de 1930”[14].
Acima de tudo, o “Esboço” é um texto que precisar ser lido e relido pelas novas gerações de revolucionários com o mesmo fervor daqueles que o escreveram: transformar a realidade brasileira através da revolução socialista.
Em tempos de enfrentamento da classe trabalhadora contra um governo de frente popular e contra a direita tradicional, o “Esboço de uma análise da situação econômica e social do Brasil”, e os demais documentos produzidos pela primeira geração de trotskistas brasileiros, são leituras que ainda apresentam toda sua atualidade, imprescindíveis, portanto, para a construção de uma estratégia revolucionária e socialista para o Brasil.
Bibliografia:
ABRAMO, Fúlvio; KAREPOVS, Dainis. Na contracorrente da história: documentos do trotskismo brasileiro 1930-1940. São Paulo: Editora Sundermann, 2015
BIANCHI, Álvaro. Octavio Brandão e o confisco da memória: nota à margem da história do comunismo brasileiro. Crítica Marxista (São Paulo), v. 34, 2012
BROUÉ, Pierre. O Partido Bolchevique. São Paulo: Sundermann, 2014
DEMIER, Felipe Abranches. O longo bonapartismo brasileiro (1930-1964): autonomização relativa do Estado, populismo, historiografia e movimento operário. 518 fls. 2012. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal Fluminense
KAREPOVS, Dainis; MARQUES NETO, José Castilho. Os trotskistas brasileiros e suas organizações políticas. In: RIDENTI, Marcelo; REIS, Daniel Aarão. História do marxismo no Brasil: partidos e organizações dos anos 19320 aos 1960. Campinhas: Editora da Unicamp, 2007, p. 130.
MARQUES NETO, José Castilho. Solidão revolucionária: Mario Pedrosa e as origens do trotskismo no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 1993.
TROTSKY, Leon. A história da revolução russa. São Paulo: Editora Sundermann, 2007, p. 21 (Tomo 01)
[1] Ver Abramo e Karepovs
[2] A história do trotskismo neste texto toma como principal referencia a seguinte obra de Marques Neto
[3] Estas disputas podem ser acompanhadas de forma privilegiada no livro de Pierre Broué
[5] ABRAMO; KAREPOVS, op. cit., p. 75.
[6] Ibidem, p. 64-65.
[7] Ibidem, p. 66.
[8] Ibidem, p. 68.
[9] TROTSKY, p. 21
[10] ABRAMO; KAREPOVS, op. cit., p. 24.
[11]Ibidem, p. 68.
[12] Ibidem, p. 72.
[13] DEMIER, p. 378.
[14] KAREPOVS, MARQUES NETO, p. 130.
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