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TEORIA

A propósito do regime interno dos bolcheviques: a visão de Trotsky

Enio Bucchioni

As divergências internas a um Partido significam necessariamente o reflexo da existência de pressões de classe em seu interior, ou seja, numa discussão interna uma das alas é a “proletária, revolucionária” e as outras são pequeno-burguesas ou pró-burguesas?

Buscando debater com estes questionamentos, o texto a seguir narra, nas mais diversas situações e em anos distintos, seja no interior do partido bolchevique, seja posteriormente na IV Internacional, a compreensão de Trotsky sobre o regime interno das organizações leninistas. Não se pretende, nem seria possível, encerrar por aqui a concepção de regime interno de um partido desse tipo. Nosso objetivo, portanto, é fornecer informações para que todos os interessados no tema possam conhecer, aprofundar e meditar sobre as palavras, idéias e concepções desse grande revolucionário.

A burocracia stalinista reflete qual interesse de classes?

É muito comum a adjetivação de classe em relação aos adversários numa luta política com o objetivo de desqualificação dos oponentes, às vezes até mesmo de caráter pessoal. Em vez de argumentos, fatos e análises, tenta-se imprimir um rótulo desqualificativo para, na luta interna, ganhar militantes com pouca ou nenhuma formação marxista. A afirmação mecânica de que diferentes tendências em um partido representam diferentes frações de classe, porém, era estranha a Trotsky. Ao narrar uma de suas polemicas internas no partido bolchevique, ele afirmava

“Por outra parte, não há de se entender de maneira demasiadamente simplista o pensamento de quem sustenta que as divergências no Partido e, com maior razão, os reagrupamentos, não são outra coisa do que uma luta de influências de classes opostas. Em 1920, a questão da invasão da Polônia suscitou duas correntes de opiniões, uma que preconizava uma política mais audaz, e outra que predicava a prudência. Estas duas correntes diferentes constituíam tendências de classes? Não creio que se possa afirmar isso. Tratava-se somente de divergências na apreciação da situação, das forças e dos meios. O critério essencial era o mesmo para ambas as partes.

Acontece com frequência que o Partido está em condições de resolver um problema por diferentes meios. E, se nesse caso, se produzem discussões, é apenas para se saber qual desses meios é o melhor, o mais eficaz, o mais econômico. Segundo o problema em discussão, essas divergências podem interessar a setores consideráveis do Partido, porém isso não quer dizer necessariamente que exista uma luta entre duas tendências de classe”.[1]

Muitas vezes, uma maioria de uma direção partidária que caracteriza qualquer dissidência de desvios “pequeno-burgueses”, considere-se “revolucionária e proletária e sempre com a linha correta”. Como ficou comum em organizações stalinistas, elas tendem a se transformar numa burocracia permanente, numa fração majoritária que ‘toma o poder’ dentro do Partido. Em geral, há interesses materiais nesse tipo de agrupamento, mas há também o que se chama de “pequeno poder”, principalmente no interior de organizações muito pequenas. É a conquista do prestígio e a tentação de preservá-lo ad eternum, seja como for possível.

Esse “pequeno poder” é bem real, pois tende a alinhar ao seu redor os bajuladores desejosos de participar desse círculo. Dentro de tal corte, é muito comum que surjam os ataques mais raivosos contra todos aqueles que discrepam da linha oficial, com o objetivo de afastá-los do Partido. Isso é feito, muitas vezes, através da “auto exclusão”, ou seja, o(s) que está (ão) em minoria acaba (m) por se afastar “voluntariamente” da organização.

Assim se referia Trotsky sobre o poder da burocracia stalinista:

“Todo desvio pode, no curso de seu desenvolvimento, se converter na expressão dos interesses de uma classe hostil ou semi-hostil ao proletariado. Dito isto, o burocratismo é um desvio, e um desvio nada saudável; esperamos que esta afirmação não seja polemica. No momento que isso ocorre, ela ameaça desviar o partido de sua linha justa, de sua linha de classe; é aí que reside o perigo. Porém (e esse é um fato muito instrutivo e também um dos mais alarmantes) os que afirmam com maior nitidez, com maior insistência, e até brutalmente, que toda divergência de critérios, todo grupo de opinião, ainda que seja temporário,são uma expressão dos interesses das classes inimigas do proletariado, não querem aplicar esse critério à burocracia”.[2]

O centralismo democrático para Trotsky

No livro Em Defesa do Marxismo Trotsky fazia a perfeita relação entre o regime interno do Partido com seus militantes, com as tendências e frações provisórias. Deve-se assinalar que a única fração permanente foi a fração da burocracia incrustrada nas entranhas dos aparatos do Partido e do Estado soviético, e, por seus interesses como camada social, acabou por exterminar todas as outras tendências e frações. Todo burocrata que se preze não larga jamais a direção do seu partido, qualquer que seja a política e a linha do mesmo. Segundo Trotsky

“O regime interior do partido bolchevique se caracteriza pelos métodos da centralização democrática. A concordância dessas duas noções não implica nenhuma contradição. O partido velava para que suas fronteiras estivessem sempre estritamente delimitadas, porém entendia que todos os que pertencessem a essas fronteiras tivessem o direito de determinar a orientação de sua política. A liberdade crítica e a luta de ideias formavam o conteúdo intangível da democracia do partido. A doutrina atual que proclama a incompatibilidade do bolchevismo com a existência de frações está em desacordo com os fatos. É um mito da decadência. A história do bolchevismo é, em realidade, a da luta de sus frações. Como uma organização autenticamente revolucionária que se propõe a mudar por completo o mundo e reúne sob suas bandeiras aos negadores, aos sublevados, aos combatentes de toda temeridade, poderia viver e crescer sem conflitos ideológicos, sem agrupamentos, sem formações fracionais temporais?. A clarividência da direção do partido conseguiu atenuar e abreviar várias vezes as lutas fracionais, porém não pode fazer mais que isso. O Comitê Central se apoiava nessa base efervescente de onde extraia a audácia de decidir e ordenar. A perfeita justeza de sua linha lhe conferia uma alta autoridade, precioso capital moral da centralização”.[3]

Há quem pense, seja nas ideologias de direita, seja nos meios de esquerda, que o conceito de centralismo-democrático significa pura e simplesmente a submissão dos militantes partidários às decisões da cúpula dirigente. Assim, caberia tão somente aos adeptos do partido implementar, executar as diretrizes da toda poderosa direção partidária. Tal afirmação, porem, se choca com o trotskismo de Trotsky

“Os problemas de organização do bolchevismo estão intimamente ligados aos de programa e tática (…)

Sabemos que que o regime se baseava nos princípios do centralismo democrático. Se supunha, desde o ponto de vista teórico, (e assim foi, desde o começo, na prática) que esses princípios implicavam a possibilidade absoluta para o partido de discutir, de criticar, de expressar seu descontentamento, de eleger, de destituir, ao mesmo tempo que permitia uma disciplina de ferro na ação, dirigida com plenos poderes pelos órgãos dirigentes eleitos e removíveis. Se se entendia por democracia a soberania de todo o partido sobre todos os organismos, o centralismo correspondia a uma disciplina consciente, ajuizadamente estabelecida, que pudesse garantir de certo modo a combatividade do partido (…)

No decorrer dos últimos anos, temos visto os representantes de maior responsabilidade da direção do partido fazer toda uma série de novas definições da democracia no partido, que se reduzem, no fundo, a dizer que a democracia e o centralismo significam simplesmente a submissão aos órgãos hierárquicos superiores (…)

Não se pode conceber a vida ideológica do partido sem grupos provisórios no terreno ideológico. Até agora ninguém descobriu outra maneira de proceder”[4]

Naturalmente, os grupos são um “mal” necessário, tanto como as divergências de opiniões. Porém, esse mal constitui um componente tão necessário da dialética da evolução do partido com as toxinas com relação á vida do organismo humano.

Trotsky, as frações internas e as frações públicas

Em fins da década de 1930 e começos dos anos 1940, houve uma imensa luta interna no Socialist Workers Party (SWP) norte-americano. A discussão, em essência, era sobre a defesa ou não da União Soviética, das conquistas da revolução de Outubro face à guerra mundial que se avizinhava e a possibilidade da União Soviética vir a ser derrotada pelo imperialismo.

Era uma questão de princípio, numa realidade bastante complexa, pois Stalin acabara de fazer um pacto com Hitler e, em consequência, o exército vermelho e os nazistas invadiram a Polônia e a ocuparam meio a meio.

A forte minoria, uns 40% do SWP, não defendia a União Soviética por causa da existência da burocracia stalinista e pela invasão da Polônia. Trotsky e a maioria do SWP defendiam as conquistas de Outubro e, em consequência, a luta mortal contra os imperialismos que ameaçavam invadir a União Soviética e esmagar aquelas conquistas colossais do proletariado mundial. Ao mesmo tempo, propugnavam a mais impiedosa luta pela revolução política contra o stalinismo.

A dimensão da democracia interna, nas palavras e propostas de Trotsky, assume uma preponderância extraordinária e é levada à máxima potência com o intuito de preservar a unidade do SWP até as últimas instâncias. No entanto, ao mesmo tempo, ele é totalmente inflexível na argumentação política contra a minoria.

Em meio a calorosas disputas com a minoria, Trotsky viria, em uma carta a Joseph Hansen, relembrar seus partidários da importância de garantir o mais amplo e livre debate como instrumento para preservar o partido. A importância política da disputa exigia flexibilidade democrática. Afirma Trotsky

“Alguns dos dirigentes da oposição estão preparando uma cisão; para isso apresentam a oposição, no futuro, como minoria perseguida. E muito característico de sua mentalidade. Creio que devemos responder-lhes mais ou menos da seguinte forma:

‘Vocês já estão preocupados com as nossas futuras repressões? Prometemos garantias mútuas para a futura minoria, independentemente de quem possa ser essa minoria, vocês ou nós. Estas garantias podem ser formuladas em quatro pontos:

1) Não proibição de frações;

2) Nenhuma restrição à atividade fracional, além das ditadas pela necessidade da ação comum;

3) As publicações oficiais devem, evidentemente, representar a linha estabelecida pelo novo Congresso ;

4) A futura minoria pode ter, se assim desejar, um boletim interno destinado aos membros do partido, ou um boletim comum de discussão com a maioria.’

A continuação dos boletins de discussão depois de uma larga discussão e um Congresso não é, evidentemente, uma regra, mais sim uma exceção, aliás, deplorável. Mas não somos, de modo algum, burocratas. Não temos regras imutáveis. Também no terreno organizativo somos dialéticos. Se temos no partido uma minoria importante que não está satisfeita com as decisões do Congresso, é incomparavelmente preferível legalizar a discussão depois do Congresso, do que ter uma cisão.

Se for necessário, podemos inclusive ir mais longe e propor-lhes publicar, sob a supervisão do novo Comitê Nacional, resumos especiais da discussão, não só para os membros do partido, como também para o público em geral. Devemos ir o mais longe possível neste aspecto, com o fim de desarmar as suas queixas, que são no mínimo prematuras, colocando-lhes obstáculos que impeçam a preparação de uma ruptura.

De minha parte, acredito que, nas atuais condições, o prolongamento da discussão, se canalizada com boa vontade pelas duas partes, só pode servir para a educação do partido”.[5]

Parlamentarismo, sindicalismo e o regime interno

A burocratização dos partidos revolucionários, principal responsável pela morte dos debates internos, se relaciona a diversos fatos. Muitas vezes, nas democracias-burguesas mais estáveis, à adaptação ao regime liberal-burguês é o principal responsável por isto.

Nestes casos, corre-se o risco do partido sofrer pressões eleitoreiras. Também é um fato que sempre existiram organizações que queriam mais e mais parlamentares achando que o socialismo poderia vir através de uma maioria no Parlamento e/ou fazendo alianças com setores “progressistas“ da burguesia. Esse perigo existe.

Deve-se relembrar, no entanto, que a falência da II Internacional há um século não foi apenas pela adaptação ao Parlamento e aos governos de seus respectivos países. Os poderosíssimos sindicatos dominados pela antiga socialdemocracia também tiveram papel central nessa adaptação. Tanto os ambientes parlamentares como os sindicais refletem ideologicamente no interior de qualquer partido e podem criar correntes e agrupamentos reformistas, ainda que camuflados por uma verborragia superradical.

“Seria uma imbecilidade pensar que a ala proletária do partido é perfeita. Os trabalhadores só alcançam gradualmente uma clara consciência de classe. Os sindicatos sempre criam um caldo de cultivo para desvios oportunistas. Inevitavelmente teremos que enfrentar essa questão numa das próximas etapas. Mais de uma vez o partido terá que recordara seus próprios militantes sindicais que uma adaptação pedagógica às camadas mais atrasadas do proletariado não deve se transformar numa adaptação política à burocracia conservadora dos sindicatos. Toda nova etapa de desenvolvimento, todo aumento nas fileiras do partido e a complexificação dos métodos de seu trabalho, não somente abrem novas possibilidades como também engendra novos perigos. Os operários nos sindicatos, ainda que educados na mais revolucionária das escolas, frequentemente desenvolvem a tendência a se liberar do controle do partido”[6]

Trotsky, a juventude e o regime interno

Entre os instrumentos para garantir a vida sadia no partido, Trotsky via na rebeldia justa dos jovens um potente aliado. O espirito questionador, dinâmico e não-conformista da Juventude seriam importantes barreiras à burocracia.

No artigo sobre o “Novo Curso”, assim Trotsky entendia a juventude estudantil na sociedade pós-revolucionária e no interior do Partido, relacionando-os com o regime partidário e o processo de burocratização em curso:

“Esta última (a juventude estudantil) como temos visto, reage de maneira particularmente vigorosa contra o burocratismo. Justamente Lenin havia proposto, para combater o burocratismo, recorrer decididamente aos estudantes. Devido à sua composição social e suas vinculações, os jovens estudantes são um reflexo de todos os grupos sociais do nosso partido, assim como seu estado de ânimo. Sua sensibilidade e seu ímpeto os levam a imprimir imediatamente uma força ativa a esse estado de ânimo. Como estudam , eles se esforçam para explicar e generalizar. Isso não quer dizer que todos os seus atos e estados de ânimo reflitam tendências sadias. Se assim ocorresse, significaria, e não é esse o nosso caso, ou que tudo marcha bem no partido ou que a juventude já não é o reflexo do partido.

Em princípio, é justo afirmar que nossa base não são os estabelecimentos de ensino, mas os núcleos de fábrica. Porém, ao dizer que a juventude é nosso barômetro, designamos um valor não essencial às suas manifestações políticas, mas algo sintomático. O barômetro não cria o tempo, apenas se limita a registrá-lo. Na política, o tempo é formado na profundeza das classes e nos terrenos onde essas classes entram em contato entre si….

(…) Além disso, um setor considerável de nossos novos estudantes são comunistas que tiveram uma experiência revolucionária bastante importante. E os partidários mais obstinados do “aparato” se equivocam enormemente ao desprezar essa juventude que é nosso meio de autocontrole, que deverá tomar nosso lugar e a quem pertence o futuro”.[7]

Assim era o regime interno para Trotsky, em perfeita continuidade com o partido bolchevique e com Lenin, o grande artífice e criador do partido e do regime interno.

Assim era o regime interno da IV Internacional enquanto viveu o seu maior dirigente.

Assim deve ser o regime para todos os que aderiram ao legado desses dois dos nossos maiores mestres.

Referências bibliográficas:

TROTSKY, Leon. Textos sobre o Centralismo Democrático. Buenos Aires: Antídoto, 1992.

TROTSKY, Leon. Em Defesa do Marxismo. São Paulo: Proposta, s.d.

 Notas:

[1] Trotsky, 1923, p 29

[2] Trotsky, 1923, p 28

[3] Trotsky, 1937

[4] Trotsky, 1923, 47-48

[5] Trotsky, 1940

[6] Trotsky, 1940

[7] Trotsky, 19