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OPRESSÕES

Palmares, Selma e Vila Moisés: a resistência negra e os grilhões do racismo

Jean Montezuma, de Salvador, BA

Contrariando as previsões mais otimistas feitas aqui no Brasil e no exterior no início da década passada, o racismo não está em vias de desaparecer. Muito pelo contrário, a luta internacional contra a discriminação racial segue mais atual do que nunca frente a uma realidade onde o racismo nos agride de múltiplas formas todos os dias.

A perversidade do racismo se manifesta com várias faces, todas elas cruéis, que vão desde os ditos “padrões de beleza” que dizem que nosso cabelo é ruim, a intolerância contra as religiões de matriz africana, passando pelas barreiras no âmbito do acesso à educação, no mercado de trabalho onde o que resta aos negros são os postos mais precarizados, até a eliminação física direta praticada pelo próprio Estado através do aparato policial.

Nadando contra a corrente está a resistência negra que se reinventa através dos tempos. Nesse sentido esse breve artigo busca reviver lições de três experiências pertencentes a momentos históricos diferentes e ainda sim unidas por uma questão fundamental: A resistência negra frente ao racismo.

Selma e a luta pelos direitos civis nos Estados Unidos

“Quem se atreveria a ir embaixo da ponte? Pelas trilhas que separam brancos de negros”
(Tracy Chapman. Across the Lines).

Em 2015 completam-se 50 anos da histórica luta dos negros da cidade de Selma, interior do estado americano do Alabama, contra as leis segregacionistas que lhes negavam o direito ao voto e uma série de outros direitos civis. O grande marco dessa luta foram as três marchas organizadas no mês de março de 1965 que partindo de Selma tinham como objetivo chegar a Montgomery, capital do Alabama, para pressionar o parlamento do Estado e garantir o pleno direito de voto aos negros. O movimento que foi organizado pelos negros que formaram The Dallas County Voters League (DCVL – Liga dos eleitores do Condado de Dallas) foi parte de um processo generalizado, uma ascensão da luta negra de proporção nacional que exigia de uma vez por todas igualdade de direitos civis e marcou os Estados Unidos nas décadas posteriores a segunda guerra mundial.

Os negros que viram seus irmãos morrerem na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), derramando seu sangue em nome do “american way of life” decidiram que não continuariam mais vivendo um pesadelo para que os brancos e a elite seguissem vivendo o “sonho americano”. A luta pelos direitos civis produziu celebres lideranças como Rosa Parks, Malcolm X, anos mais tarde o Black Panthers Party (BPP – Partido dos Panteras Negras), além de centenas, milhares, de guerreiros e guerreiras anônimos que dedicaram suas vidas a causa.

O reverendo Marthin Luther King foi uma dessas lideranças. King era o principal dirigente de The Southern Christian Leadership Conference (SCLC – Conferência das Lideranças Cristãs do Sul) e foi convidado pela DCVL para se somar a luta em Selma. A primeira marcha ocorrida no dia 7 de março sofreu uma forte repressão da polícia que atacou os 600 manifestantes que marchavam desarmados com surras de cassetete e bombas de gás lacrimogênio na altura da ponte Edmund Pettus. Este fato, que ficou conhecido como o “Domingo Sangrento”, foi transmitido ao vivo pelos canais de TV e serviu como um divisor de águas. Depois daquele dia o que antes era visto pela população como leis que defendiam os “bons costumes sulistas” passaram a ser encaradas como o que verdadeiramente eram: uma política institucionalizada de terror e violência contra os negros. A correlação de forças se inverteu em favor do movimento negro, grandes marchas se espalharam pelo país e conquistas democráticas importantes foram alcançadas.

Porém, passados 50 anos a mais poderosa nação do planeta é um exemplo vivo de que enquanto houver capitalismo jamais acertaremos definitivamente nossas contas com o racismo. Em 2008 a eleição de Obama, o primeiro negro a chegar à presidência, significou para muitos um símbolo de uma nova era de superação do racismo dentro e fora dos Estados Unidos. Em todos os cantos do planeta negros e negras se encheram de esperança e celebraram a vitória do filho de imigrantes nigerianos como um marco histórico. Lamentavelmente o que se seguiu foi uma grande frustração pois Obama, ao melhor estilo capitão do mato, não foi nem de longe um ponto de apoio e uma referência para luta negra.

Pelo contrário, Obama manteve a criminosa ocupação do Haiti sustentada via “terceirização” ao exército brasileiro que chefia a Missão das Nações Unidas para estabilização do Haiti (Minustah). No âmbito interno a política econômica do governo Obama foi voltada a atender os bancos e multinacionais causadores da crise econômica ao invés de ir em socorro dos trabalhadores, em especial os negros e latinos, que viram suas condições de vida açoitadas pelos efeitos da crise.

Recentemente Obama esteve em Selma na mesma ponte Edmund Pettus participando de um cerimonial em lembrança dos 50 anos do domingo sangrento. Ao lado do republicano e nada saudoso George W. Bush, Obama tentou mais uma vez associar o seu governo ao legado da luta negra americana. Nada mais falso vindo do mesmo presidente que frente a nova onda de mobilizações que se espalharam por várias regiões do país questionando a íntima relação entre a violência policial e o racismo, limitou-se a ser evasivo, não adotando nenhum compromisso político efetivo frente aos assassinatos do estudante Michael Brow pela polícia de Ferguson e do vendedor ambulante Eric Garner morto por asfixia pela polícia de Nova York.

De Obama não partiu nenhuma palavra sobre o arquivamento do caso de assassinato de Michael Brown pela justiça do Estado de Missouri. Os gritos que vem das ruas “Black lives matter” (Vidas negras são importantes) não encontram amparo pois embora seja negro o presidente, a casa continua branca. O que continua valendo são os interesses da mesma elite burguesa branca do tempo dos Confederados (nome dado a aliança dos estados do Sul que durante a guerra civil americana defendia a manutenção da escravidão e de leis segregacionistas severas que negavam aos negros a condição de cidadãos americanos).

Vila Moisés, o racismo elevado a extermínio

“Não sou ninguém nem tenho pra quem apelar, Só tenho meu bem que também não é ninguém. Quando a polícia cai em cima de mim, até parece que sou fera” (Edson Gomes. Camelô).

6 de fevereiro de 2015, bairro do Cabula, cidade de Salvador, a mais negra das cidades fora do continente africano. Uma ação do grupo de elite da polícia militar resulta na morte de doze jovens negros. Imediatamente governo e Comando da Polícia Militar sistematizam uma série de argumentos falaciosos na tentativa de justificar o injustificável.

Primeira mentira: A ação da polícia foi em resposta a uma suspeita de que um grupo de trinta homens fortemente armados se preparavam para realizar um assalto a banco e as mortes teriam ocorrido sobre intensa troca de tiros. Diante da total ausência de provas que a sustentassem essa versão caiu logo nas primeiras horas após o caso ganhar repercussão. Segunda mentira: Todos os envolvidos eram criminosos com passagem pela polícia. Passados três dias a própria polícia civil voltou atrás e reconheceu que apenas dois dos envolvidos eram fichados, sendo um deles por causa de uma briga de carnaval. Terceira mentira: Os policias teriam agido amparados pela lei pois o estatuto dos “autos de resistência”* licencia os agentes da polícia a usar força letal numa situação de confronto. No entanto o laudo da perícia técnica atesta que a maioria dos mortos foram alvejados por mais de cinco tiros, muitos disparos feitos à uma distância de um metro e meio, tiros na mão, na nuca e trajetória das perfurações indicando que os jovens estavam em posição inferior aos policiais (deitados, agachados ou ajoelhados). Objetivamente os dados da perícia desmentem os policiais e reforçam a tese de que houve uma execução.

Lamentavelmente o exemplo da Vila Moisés não é um ponto fora da curva na realidade brasileira. Dados do mapa da violência dão conta do que poderíamos chamar de uma verdadeira “crise humanitária”. Em 2012, 56.337 pessoas foram vítimas de homicídios no Brasil, uma média de 154 por dia. As vítimas majoritárias são os negros que em 2012 totalizaram 40.127 enquanto os brancos somaram 14.928. A política de guerra ás drogas patrocinada pelos governos estaduais em parceria com o governo federal potencializa a criminalização da juventude negra e pobre. No mesmo ano de 2012, 71% dos casos de homicídio tinham relação com a guerra contra o tráfico. Entre os anos de 2002 e 2012 o número de brancos vítimas de homicídios caiu 32,3% enquanto o de negros teve uma alta de 32,4%. Um negro tem 3,5 vezes mais chances de ser vítima de um homicídio que um branco.

Salta aos olhos de qualquer um o fato da violência policial no Brasil ser seletiva e orientada por critérios de raça e classe. Passados 127 anos da abolição da escravidão os negros e negras, ampla maioria da população brasileira, vivem as consequências de uma inclusão marginal na sociedade brasileira. O apartheid disfarçado vivido pelos negros brasileiros no dia a dia se manifesta através das várias faces da segregação. A começar pela segregação espacial que os empurra para as favelas e periferias. Que lhes nega o direito à cidade seja no que diz respeito ao lazer (teatros, cinemas e parques se encontram nos centros, bem distantes das periferias e favelas), seja negando outros direitos essenciais como educação, saúde e saneamento. O racismo ambiental se potencializa combinado com a intolerância religiosa ao destruir matas e locais tradicionais essenciais ao culto das religiões de matriz africana.

Essa realidade hostil aos negros e negras não é fruto unicamente do racismo e conservadorismo de uma elite branca herdeira dos senhores de engenho dos tempos da escravidão. As características do desenvolvimento do capitalismo brasileiro que gerou uma sociedade profundamente desigual do ponto de vista econômico e inserida na divisão mundial do trabalho nos marcos de uma crônica dependência dos países imperialistas, são elementos estruturais decisivos para uma justa análise da realidade e principalmente das tarefas que, os negros e negras, como parte da classe trabalhadora, devem encarar no caminho da sua verdadeira libertação.

O legado de Palmares

“Zumbi, comandante guerreiro. Ogunhê, ferreiro-mor capitão, da capitania da minha cabeça. Mandai a alforria pro meu coração” (Wali Salomão. Zumbi, a felicidade guerreira).

A formação de quilombos foi uma das estratégias utilizadas pelos negros que durante os mais de 300 anos de escravidão não cessaram um único instante a sua resistência. A resistência negra começou desde que o primeiro filho da África pois os pés no Brasil. Palmares, o mais emblemático dos quilombos brasileiros por exemplo, atingiu seu ápice populacional por volta de 1670 com cerca de 20 a 25 mil habitantes. Contudo, pesquisas indicam que desde 1580 a região da Serra da Barriga, hoje pertencente ao município de União dos Palmares no Estado de Alagoas, na época parte da capitania de Pernambuco, era um ponto de convergência de quilombolas.

A existência de Palmares despertava medo nos senhores de engenho da região e era um incômodo permanente para os governantes da época. As táticas de guerrilha usadas primeiro para se defender sob o comando de Ganga Zumba, depois como uma resistência ativa capaz de armar emboscadas as tropas e a atacar engenhos sob o comando de Zumbi, situaram Palmares no topo da lista das ameaças aos interesses da coroa portuguesa no Brasil.

Não à toa foram empreendidas um total de 18 expedições militares ao longo do século XVII com intuito de eliminar Palmares. A maior delas em 1694, comandada pelo mercenário bandeirante Domingos Jorge Velho, foi composta por 6 mil homens fortemente armados com direito a artilharia e conseguiu, graças a uma emboscada, assassinar Zumbi dando início a um ciclo de dispersão do quilombo de Palmares que culminou em 1710.

A experiência de Palmares não é contada nas escolas. Isso porque os livros foram escritos de modo a corresponder a visão da elite branca, incapaz de conceder aos negros um papel ativo de resistência às agruras da escravidão. A luta de classes no Brasil começa com a luta negra contra a escravidão e não com a chegada dos operários imigrantes europeus, como defendem os stalinistas dogmáticos. Palmares é um patrimônio da história da resistência negra no Brasil e o seu legado é o da luta ativa contra o racismo e o enfrentamento ao Estado, principal mecanismo através do qual a classe dominante impõe seus interesses.

Por uma consciência negra, classista e socialista

“A cor do sonho da minha liberdade, é a cor que o sol imprime em minha pele. Afrodescendente, negra, latina, sudameríndia cansada de dor” (Adão Negro. Afrodescendente).

A dívida do capitalismo com os negros e negras não pode ser paga com pedidos de desculpa (em 2009 o senado dos Estados Unidos se desculpou oficialmente com os negros americanos pela escravidão) e tão pouco com promessas vãs feitas pelos governates de uma melhora incerta no futuro. A escravidão negra foi parte essencial do processo de acumulação primitiva de capital. Sem os lucros combinados do tráfico negreiro e da mão-de-obra escravizada nas colônias, as potências européias não conheceriam por exemplo, o acúmulo de riqueza que permitiu a Inglaterra produzir a sua revolução industrial.

Não satisfeito com a sangria provocada pela escravidão o capitalismo voltou a retalhar o continente africano com a Conferência de Berlim em 1884**. A partilha da África pelas nações capitalistas européias permitiu o incremento de capital necessário para o advento da fase imperialista do capitalismo. As maiores riquezas da África foram, e ainda hoje continuam sendo roubadas pelas grandes potências capitalistas. As mesmas que através das mais variadas mídias tentam hipocritamente naturalizar em nossas cabeças uma visão da África como uma terra arrasada, sinônimo de atraso e miséria.

“Não há capitalismo sem racismo”, disse uma vez Malcon X resumindo em cinco palavras uma certeza que para os negros e negras do mundo deve adquirir um sentido estratégico. Só será possível iniciarmos um ciclo decisivo de superação do racismo se destruirmos as bases do sistema capitalista que se desenvolveu e hoje se retroalimenta ás nossas custas. Sendo o fim do racismo algo que vai na contramão dos interesses da burguesia, a única classe capaz de incorporar essa bandeira é a classe trabalhadora como parte do programa da revolução socialista.

Inspirados por Palmares frente ao extermínio da juventude negra e as mais variadas facetas do racismo devemos resistir e não ceder nenhum único passo atrás. Como em Selma devemos batalhar e por abaixo cada uma das barreiras que nos impedem de exercer plenamente nossos direitos. Mas, como perspectiva estratégica, os negros e negras, como parte da classe trabalhadora, devem tomar o exemplo do revolucionários haitianos que em 1804 protagonizaram a revolução negra que derrubou o colonialismo francês.

O acerto de contas com o racismo impõe um horizonte revolucionário que, por sua vez, exige um programa de raça e classe que faça o enfrentamento ao capital golpeando de modo combinado a opressão racista e a exploração capitalista.

Notas:

* Autos de resistência – O estatuto dos autos de resistência foi criado durante a ditadura militar e permanece vigente mesmo passados 30 anos do fim do regime militar. Trata-se de um dispositivo jurídico que impede a abertura de inquérito quando ocorrem mortes resultantes de ações das forças armadas ou das policiais militares, desde que seja alegada que as mortes foram fruto de resistência por parte dos suspeitos.

** A conferência de Berlim 1894 – Realizada a pedido de Portugal e organizada e presidida pelo Chanceler alemão Bismarck. A Conferência definiu as regras e os limites da partilha do continente africano entre as principais potências europeias da época: Alemanha, Inglaterra, Itália, Portugal, Bélgica, França e Espanha.

 

Referências bibliográficas

HOBSBAW, Eric J.. A era dos impérios: 1875-1914. 9 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005

GUTIERREZ, Pilar L.. Nacionalismo negro em los Estados Unidos y el miedo al “Black Power”. Red Visual, n. 9-10, 2009.

KING, Martin L.. As palavras de Martin Luther King. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

JAMES, Cyril Lionel. Jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos. São Paulo: Boitempo, 2000.