Ramsés Eduardo Pinheiro
Seis anos após a vitória da revolução de outubro na Rússia que criou o primeiro Estado Operário da história, Leon Trotsky denunciou nas páginas do Pravda a existência de um processo de burocratização no partido bolchevique que ameaçava o desenvolvimento das conquistas obtidas desde então. Em uma série de textos publicados naquele jornal no final de 1923, e posteriormente compilados no livro “O Novo Curso”, Trotsky assinalou que a burocratização era um fenômeno geral, cuja raiz estava na “concentração crescente da atenção e das forças do partido nas instituições e aparatos governamentais e na lentidão do desenvolvimento da indústria” [1].
Neste momento, Trotsky também apontou que este processo, que ocorria tanto por “causas históricas gerais”, quanto por “erros particulares”, ameaçava enfraquecer o sentido revolucionário do partido, ou seja, “provoca uma degeneração mais ou menos oportunista da velha guarda ou pelo menos de um setor substancial desta”[2]. Como parte de um processo histórico objetivo, Trotsky argumentava que o problema da burocratização só seria resolvido por fatores de importância internacional como “a marcha da revolução na Europa e a rapidez de nosso desenvolvimento econômico”. Todavia, esta posição não implicava uma compreensão fatalista da história, também era necessário que os militantes bolcheviques lutassem para reverter este processo.
Trotsky não era o único a perceber estes problemas, cuja maior expressão era a concentração crescente de poderes em torno do aparato dirigente do partido. Naquele mesmo ano, 46 militantes bolcheviques dirigiram ao Comitê Central uma declaração apontando a divisão dentro do partido entre os funcionários nomeados pela direção e a massa de militantes que era excluída de suas decisões cotidianas. Entre os militantes que subscreveram este documento estavam bolcheviques históricos como Preobrazhensky, Serebriakov, Alsky, Antonov-Ovséenko e outros que desempenharam papeis fundamentais na revolução e na guerra civil[3].
Em torno destas críticas à direção do partido realizada por estes militantes se formou a Oposição de Esquerda que almejava restabelecer a trajetória correta dentro do partido. Os oposicionistas foram sistematicamente combatidos nos anos seguintes pelo aparato burocrático do partido que começava a se cristalizar naquele momento no grupo formado em torno de Stálin. Sob o fogo cerrado do aparato, a Oposição de Esquerda foi duramente atacada durante a XIII Conferência do partido realizada em 1923, cuja resolução final a qualificou como atividade “fracionalista” de Trotsky.
Durante o XIV Congresso do partido em 1925, Zinoviev e Kamenev que até aquele momento faziam parte da Troika ao lado de Stálin, desferiram violentos ataques ao caráter autoritário deste último, cimentando o caminho que conduziu a sua unificação com a oposição formada em 1923. Neste sentido, Pierre Broué argumentou que a aproximação entre a antiga e a nova oposição era inevitável na medida em que “ambos os grupos pretendem apoiar-se em uma plataforma operária e internacionalista e denunciam o mesmo perigo: a aliança dos kulaks, nepmans e burocratas e a degeneração do partido sob a direção de Stálin e sua camarilha”[4].
A unificação entre estes grupos marcou o início de um processo totalmente novo: a Oposição Unificada. Esta nova oposição diferenciava-se da Oposição de Esquerda (1923-1925), e também da oposição dirigida por Trotsky depois de 1927, principalmente por seu caráter mais amplo. É necessário enfatizar que a presença de Kamenev e Zinoviev na Oposição Unificada foi decisiva para conferir a este grupo um alargamento significativo de sua área de influência, ambos eram membros do Comitê Central e o último ainda presidia a Internacional Comunista. Eram, sobretudo, bolcheviques da velha guarda que dispunham de uma forte autoridade entre os militantes do partido, principalmente em Leningrado. Sobre a composição da Oposição Unificada, Broué pontuou que:
“Entre eles se encontram, em clara minoria, alguns antigos membros da Oposição Operária, assim como os aliados de Zinoviev, um pouco mais numerosos que os de Trotsky, e, por último, os oposicionistas de 1923. No total, calculam entre 4 e 8 mil militantes, segundo as avaliações mais extremas. Certamente, esta cifra é ridícula se comparada aos 750 mil militantes com que conta o partido. Porém, se trata de uma vanguarda, cujo campo de ação será bem menor que o partido”[5].
Diante do clima de tensão e vigilância do aparato, a Oposição Unificada passou a se organizar retomando os métodos clandestinos para divulgar suas idéias para o conjunto dos militantes. Por outro lado, seu programa começava a ganhar forma. Na sessão do Comitê Central de junho de 1926, Trotsky leu em nome da Oposição Unificada a “Declaração dos 13”, apresentando suas principais reivindicações. Sobre este documento, Broué escreveu que era um programa de classe de “defesa do proletariado” que pretendia “reforçar o papel desempenhado pela classe operária no Estado proletário e aumentar seu peso especifico no pais, devolvendo-lhe sua voz dentro do partido e combatendo os incipientes elementos capitalistas no campo”[6].
O programa esboçado pela Oposição Unificada articulava diferentes pontos que convergiam para o fortalecimento da classe operária no interior do Partido e do Estado na União Soviética. O peso conferido à classe operária neste programa partia da leitura dos oposicionistas de que a única garantia contra a consolidação do processo de burocratização (além da revolução européia) era a participação efetiva dos trabalhadores nas decisões políticas, o que só ocorreria quando estes soubessem o que realmente estava acontecendo no partido. Portanto, para a oposição tratava-se de se dirigir a opinião pública, percorrer o maior número de células e comitês possíveis para ganhar os operários para seu programa.
Entre esta pretensão e a realidade concreta havia uma grande distância, àquela altura o aparato dirigente do partido já havia constituído uma rede de vigilância, intimidação e repressão baseada em violências, ameaças, falsificações e calúnias que eram praticados pelos próprios agentes do Estado. Este aparelho repressor traduziu-se, por exemplo, durante as eleições dos delegados para a XV Conferência do partido na fábrica Putilov em Leningrado, quando Zinoviev, destacado membro da oposição naquela cidade, obteve somente 25 votos contra 1375.
Apesar dos revezes, a Oposição Unificada recuperou parte de sua influência através de suas denúncias contra a política nefasta do PCUS e da Internacional Comunista em relação à revolução chinesa, cuja consigna de revolução democrático-burguesa e a conseqüente submissão do Partido Comunista Chinês ao Kuomintang, resultou no massacre de centenas de operários chineses em Xangai. O próximo passo da Oposição Unificada foi concentrar todas as suas energias na tentativa de participar do XV Congresso do partido que ocorreria no final de 1927. Com este propósito, em agosto deste ano os oposicionistas elaboram sua plataforma, visando conquistar o maior número de adeptos possível.
Segundo Isaac Deutscher, os oposicionistas “prepararam uma exposição completa e sistemática das suas políticas, uma plataforma como jamais foram capazes de apresentar antes”[7]. Broué relatou que este documento foi escrito por Trotsky, Zinoviev, Kamenev, Smilgá, Piatakov, além de um grupo de jovens, sendo submetida, quando possível, aos grupos oposicionistas e às células operárias[8]. Deutscher não exagerou em sua descrição da plataforma da Oposição Unificada, o longo documento era formado por 12 capítulos que analisavam questões como a situação da classe operária, a industrialização, os soviets e o processo de burocratização do partido[9].
Em relação ao partido, a plataforma da Oposição Unificada pontuava que a burocratização avançava a passos largos, suprimindo a democracia interna e violando o legado bolchevique. Denunciava as Conferências e Congressos chamados pela direção sem discussão prévia dos militantes e também a substituição da disciplina revolucionária pela obediência inquestionável. O documento também chamava a atenção dos militantes para o processo de substituição do partido pelo seu aparato dirigente e também sobre os métodos repressivos deste aparato contra os “bolcheviques-leninistas”, como os oposicionistas se autodenominaram.
Em relação às propostas específicas da plataforma da Oposição Unificada sobre os problemas apontados, o documento propunha entre suas principais medidas: o restabelecimento do livre debate; composição social do partido com uma maioria de proletários industriais; restauração da resolução sobre democracia interna aprovada no X Congresso; composição social do partido com uma maioria de proletários industriais; readmissão dos oposicionistas expulsos e a reconstrução de um Comitê Central com a maioria de trabalhadores. A plataforma afirmava peremptoriamente que a Oposição Unificada estava convencida de que a classe operária iria provar ser capaz de trazer o partido ao caminho leninista, ajudá-la neste processo era a principal tarefa reivindicada pelos oposicionistas.
Impedidos pelo aparato de publicar sua plataforma na imprensa do partido, os oposicionistas conseguiram imprimir a duras penas cerca de 30 mil exemplares do documento com o objetivo de coletar o maior número possível de assinaturas e assim pressionar o aparato a aceitar sua participação no XV Congresso. Neste sentido, os bolcheviques voltaram-se para as fábricas e bairros operários para expor e defender sua plataforma. No livro de Deutscher há um interessante depoimento do militante Victor Serge sobre esta batalha da oposição:
“Cerca de cinqüenta pessoas enchiam a sala de jantar pobre, ouvindo Zinoviev que engordara e, pálido e despenteado, falava com voz baixa. Havia nele algo de flácido e ao mesmo tempo muito atraente. (…) No outro extremo da mesa sentava-se Trotsky. Envelhecendo a olhos vistos, grisalho, de elevada estatura, encurvado, os traços fisionômicos marcados, era cordial e encontrava sempre a resposta certa. Uma operária, sentada de pernas cruzadas no chão, pergunta de súbito: “E se formos expulsos do Partido?” “Nada pode impedir os proletários comunistas de serem comunistas”, respondeu Trotsky. (…) Era simples e comovente ver os homens da ditadura do proletariado, ontem ainda poderosos, voltar assim aos bairros dos pobres e falar, ali, de homem a homem, procurando o apoio e os camaradas”[10].
Pierre Broué também se refere a uma destas reuniões, onde Kamenev e Trotsky ocuparam um dos anfiteatros da Escola Técnica de Moscou e, mesmo com o corte da luz, discursaram por mais de duas horas a luz de velas diante de um público de mais de duas mil pessoas. Apesar dos esforços da oposição, a repressão do aparato foi avassaladora. Em 23 de outubro de 1927 Trotsky e Zinoviev foram expulsos do Comitê Central. Nas comemorações do dia 07 de novembro, os oposicionistas foram impedidos de se manifestar, os que resistiram foram espancados e presos. Zinoviev e Trotsky foram expulsos do partido em 15 de novembro. No dia 19 de novembro, ocorreu a última intervenção pública da Oposição Unificada na URSS. Pouco tempo depois, centenas e depois milhares de “trotskistas” foram expulsos do partido e presos ou deportados para Sibéria, abrindo caminho para as atrocidades do regime stalinista nos anos 1930.
Por que os oposicionistas perderam a batalha contra o aparato na URSS no final dos anos 1920? Como em qualquer processo histórico não existe nenhuma resposta categórica para esta questão. A derrota da Oposição Unificada era uma possibilidade cuja concretização era imensamente provável, o próprio Trotsky rememorou pouco antes de morrer as dificuldades enfrentadas naquele período:
“A Oposição de Esquerda não poderia tomar o poder, nem mesmo o desejava […]. Uma luta pelo poder, encabeçada pela Oposição de Esquerda, por uma organização marxista revolucionária, só pode ser concebida nas condições de um levante revolucionário (…). No início da década de 1920 não existia tal levante na Rússia, muito pelo contrário: em tais condições, iniciar uma luta pelo poder estava totalmente fora de questão (…). As condições expostas pela reação soviética eram infinitamente mais difíceis do que haviam sido as condições impostas pelo czarismo aos bolcheviques”[11].
A despeito de sua ênfase na impossibilidade de um levante revolucionário no final dos anos 1920 na URSS (idéia esta que Trotsky incorporou ao seu pensamento nos anos 1930, através da tese de que somente uma revolução política derrubaria a burocracia), o velho bolchevique destacou que a oposição não desejava tal levante (nem poderia naquele momento), mas tão somente a regeneração do partido sob a égide da classe operária. Neste sentido, a imensa probabilidade de derrota não impediu a Oposição Unificada de lutar até as últimas conseqüências contra o aparato e pelo retorno do partido ao “caminho leninista”.
Neste sentido, ainda que o signo da derrota da Oposição Unificada prevaleça na maioria das narrativas sobre esta organização, sua batalha contra o processo de burocratização do partido e do Estado Soviéticos constitui-se como uma experiência histórica única, cuja derrota não estava definida antecipadamente, inscrevendo-se nas complexas circunstâncias da luta entre os grupos políticos na URSS nos anos 1920. Constitui-se, portanto, como parte fundamental da luta revolucionária contra a burocracia na URSS, assim como a Oposição de Esquerda Internacional criada após 1927 e a IV Internacional fundada em 1938.
Depois desta breve narrativa, como não prestar honras aos membros da Oposição Unificada que lutaram durante aqueles anos sob as condições mais adversas possíveis contra o aparato burocrático que se converteu em principal instrumento da contra-revolução mundial? Talvez seja Pierre Broué quem melhor traduziu a luta dos “bolcheviques leninistas” após a consolidação da burocracia na URSS: “Já não se trata de lutar pelo hoje, mas sim pelo amanhã, preservando para o dia em que as massas voltem para à cena histórica a herança do bolchevismo”[12]. Aqueles velhos militantes não viveram o bastante para ver este amanhã, foram impunemente assassinados pelo Estado que ajudaram a construir. Entretanto, a paciência e abnegação daqueles “homens da ditadura do proletariado” constituem seu principal legado aos revolucionários de hoje.
Notas:
[1] TROTSKY, Leon. El nuevo curso. Disponível em: <http://grupgerminal.org/?q=system/files/elnuevocurso.pdf>. Acesso em 10 de março de 2015.
[2] Idem.
[3] BROUÉ, Pierre. O Partido Bolchevique. São Paulo: Sundermann, 2014, p. 178.
[4] Ibidem, p. 223.
[5] Ibidem, p. 232.
[6] Ibidem, p. 233.
[7] DEUTSCHER, Isaac. Trotsky: o profeta desarmado, 1921-1929. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 417.
[8] BROUÉ, op. cit., p. 255.
[9]TROTSKY, Leon. Platform of the joint opposition. Disponível em: <http://bit.ly/1Cg2wIc>. Acesso em 10 de março de 2015.
[10] DEUTSCHER, op. cit., p. 430.
[11] Citado por BROUÉ, op. cit., p. 243-244.
[12] Ibidem, p. 263-264.
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