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TEORIA

Hora de sangue frio

Valerio Arcary

“A teoria dos campos burgueses progressivos se justifica com a generalização abusiva de um fato real: as diferenças entre os distintos setores burgueses. Segundo Trotsky, na classe burguesa sempre existem antagonismo muito maiores que no seio do proletariado. É um fato fácil de explicar: para o trabalhador dá no mesmo ser explorado por um patrão ou por outro, seja este “nacional” ou “imperialista”, ainda que entre os distintos setores burgueses exista uma luta constante para repartir a mais valia nacional e mundial. No plano político esta luta se traduz no choque dos partidos (…) Deste fato real, o revisionismo deduz que os partidos do proletariado devem formar parte do campo “progressivo” ou “democrático” ou “antiimperialista” no caso dos países semicoloniais. Para esta teoria, tanto faz que o campo “progressista” esteja no poder ou na oposição. Contra esta teoria da colaboração de classe o marxismo levanta sua concepção clássica, da sociedade dividida em classes e da necessidadede desenvolver a luta entre os mesmos(…) Isto não significa que o marxismo ignore a existência de rivalidades entre os distintos setores da burguesia.(…) Porém isso significa que se deve aproveitar estes choques, jamais apoiar politicamente uma frente de colaboração de classe que pode surgir dos mesmos.” (Nahuel Moreno, A traição da OCI.)

Essa é daquelas horas em que é importante manter o sangue frio. Muita gente honesta do povo de esquerda está se perguntando se não há perigo de golpe, e se a escalada do tom da oposição de direita não é muito parecida com pré-1954 e o pré-1964.
De fato a turbulência nas alturas aumentou muito, mas o impressionismo é mal conselheiro. Não vale a pena se assustar antes da hora. Esquerda séria não tem direito à hipocondria política.

Primeiro: não há nenhum setor importante da classe dominante apostando em um golpe. Não há em marcha um projeto de golpe “a la paraguaia”, como a destituição de Fernando Lugo em 2012. Menos ainda algo similar ao golpe militar em Honduras em 2009, quando o Exército, amparado em um mandado da Justiça, prendeu o presidente Manuel Zelaya. A rigor, nem sequer apareceu, pelo menos até agora, setor algum da burguesia, minimamente representativo, defendendo o impeachment.

Os governos de coalizão do PT se beneficiaram com quase doze anos de colaboração com a governabilidade da oposição burguesa: a exceção foram os meses da crise do mensalão em meados de 2005. Os governos de colaboração de classes, no contexto histórico da época da guerra fria, tinham uma oposição burguesa furiosa.

PSDB passou a apoiar, oficialmente, a convocação do dia 15/03. Isso não quer dizer, por si mesmo, grande coisa. Ninguém pode saber, antecipadamente, quais as dimensões do que vai acontecer. Só depois será possível tirar mais conclusões. Serenidade. Vamos contar.Vamos medir. O cálculo de como oscila a relação social e política de forças é uma síntese de muitas variáveis. Que o mal estar social contra o governo, já aferido pelas pesquisas de opinião, há um mês atrás, tenha aumentado, vertiginosamente, não permite concluir que uma convocatória pela internet será bem sucedida. A base social da direita no Brasil não conseguiu se mobilizar em grandes ações de rua, desde antes de 1964, quando das manifestações em defesa da “família” e da “propriedade”. Panelaço de setores muito privilegiados da classe média dentro de casa não é significativo.

O espaço das ruas, há três décadas, esteve ocupado por forças sociais apoiadas na classe trabalhadora, nos estudantes, nos explorados e oprimidos. Mas algo está mudando. Não é mais somente um ato organizado por núcleos quase subterrâneos e muito divididos entre si de uma extrema direita errática.

Crises políticas são comuns, mesmo em situações de estabilidade social. Mais ainda quando a situação econômica se deteriora. São crises de governo que podem e são resolvidas pelas instituições do regime político, são processos de rotina, para arbitrar os pequenos conflitos de gestão. E recuperar o equilíbrio que é necessário para manter a ordem, e o fluxos dos negócios. Pode haver “barulho nas alturas”, os partidos rivais podem usar uma retórica muito áspera, os escândalos podem ter repercussão pública grande, mas a maioria da sociedade ignora a “tempestade” nos Palácios e Parlamentos. Como dizem os norte-americanos, “business as usual”.

Essa é a aposta da direção do PT e de Lula. Mudar a composição do núcleo duro do governo Dilma, incluindo uma parcela mais colaborativa do PMDB. A questão é saber qual a natureza da crise política. Não parece que ela se resuma ao mal estar nas alturas e, portanto, à recuperação de uma maioria no Congresso para a governabilidade. Sendo assim, convocar o Temer, o Padilha, o Kassab para ajudar o Mercadante não será o bastante.

Por trás do crescente mal estar estão as demissões em massa na indústria e na construção civil, e a redução da capacidade de consumo das famílias. Mas, também, as notícias diárias sobre a relação de partidos como PP, PMDB e PT, entre outros, com a roubalheira escandalosa na Petrobrás e outras estatais.

O limite de tolerância da classe trabalhadora e da juventude veio diminuindo, com variações, desde junho de 2013. Porque remete a pelo menos elementos de crise do próprio regime. É muito difícil tentar prever até quando é possível um governo atacar as condições de vida da maioria da população, conquistadas na década passada, sem provocar uma ira, ou uma fúria. Milhões de pessoas estão mesmo, crescentemente, zangadas, enraivecidas, e dispostas a agir.

Para pensarmos a dinâmica da radicalização social, devemos considerar os fatores objetivos, mas, também, outros, mais complexos e que são subjetivos, porque remetem às flutuações dos humores e da disposição da maioria da sociedade, ou seja, da consciência social entre os trabalhadores e as camadas médias.

Os primeiros fatores, os objetivos, podem ser quantificados. O que não quer dizer que os números falem sozinhos. Há que relacionar os indicadores de maneira adequada. E descobrir interações que não são evidentes, podem estar ocultas. Mas a leitura dos fatores subjetivos é muito mais difícil, depende de interpretação. Na história, eles estão sempre enredados. A força de pressão de uns e outros é variável. É um trabalho de ourivesaria analítica, portanto, muito delicado, destacar os elementos para uma apreciação isolada e, depois, a reconstrução das partes em um todo, para realizar uma síntese.

Quais são estes limites? Para alguns cientistas sociais uma inflação anual acima de 50%, se não houver mecanismos financeiros de correção monetária, como a experiência de superinflação latino-americana dos anos oitenta do século passado. Ou o desemprego da população economicamente ativa acima de 20%, se não houver salário desemprego, como na Argentina em 2001. Ou o confisco indefinido das poupanças, como no Brasil em 1990. Ou a redução do salário médio nacional acima de 30%, seja sob a forma de confisco, ou de aumento nos impostos, sem garantias de recomposição, como na Grécia recentemente. Ou ainda as regressões econômicas abruptas, uma síntese de combinações variadas dos fatores anteriores, com quedas vertiginosas dos PIB’s, fuga de capitais, disparada do dólar, que resultam em aumento da desigualdade social.

E deve entrar nesta equação da análise os fatores subjetivos. O humor social depende da percepção subjetiva. É sempre um processo de acumulação de mal estar. Em algum momento a quantidade dá o salto de qualidade, e o cidadão médio fica furioso, o ódio ao governo se alastra, e contagia uma maioria da sociedade. A vontade de derrubar o governo ganha a força de uma paixão política. Paixões são um estado de espírito intenso, é um momento de máxima exaltação. Não se pode manter por muito tempo. Os nervos e músculos da sociedade não aguentam. Misturam-se na mais alta intensidade, esperança e incerteza, rancor e insegurança. O medo da aproximação da hora de um confronto decisivo, a hora de medir forças, gera uma inquietação frenética

No Brasil, em 1992, quando da mobilização para derrubar o presidente Fernando Collor- o primeiro presidente eleitos desde 1961 – a divulgação pela mídia de uma fonte em cascata na residência particular da família do presidente foi uma centelha que levou milhões de jovens às ruas. Ficaram enlouquecidos. Por quê a cascata? Nunca saberemos. Foi uma gota d’água. Havia uma enorme raiva acumulada por uma recessão que levou o desemprego nas grandes cidades acima de 20%, e uma super-inflção que destruía os salários. A fonte em cascata foi a faísca.

Lideres políticos que exigem sacrifícios “bíblicos”, “sangue, suor e lágrimas”, mas alimentam um modo de vida ostentatório, meio faraônico, ou costumes impublicáveis, à maneira dos Borgias, inflamam a indignação do cidadão comum. Suas provocações incendeiam a cólera da juventude. A operação Lavajato está sendo uma centelha.

Vai ocorrer uma medição de forças, nos próximos dias, entre a oposição de direita (que vai a reboque da extrema direita) e o governo. Resumo da ópera: antes de esgotado o prazo dos clássicos cem dias de trégua para um governo recém-reeleito, a situação está mais tensa. O perigo é que parcelas da classe trabalhadora e do povo possam aderir ao dia 15. O que seria um desastre.

A esquerda digna não irá à Paulista nem dia 13, nem dia 15. Mas, aguardem, porque voltaremos às ruas e com força.

Sangue frio nessa hora.