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TEORIA

Dois dias, uma noite, um caminho sem atalhos

Natalia Conti

Uma análise distraída poderia presumir que o filme Dois dias, uma noite trata de uma história banal, e a princípio pode não convencer como candidato a filme de peso. Ao contrário disso, os diretores Luc e Jean-Pierre Dardenne, nos colocam diante de uma série de questões sensíveis e inquietantes, em um misto de cinema político e do cotidiano. Abordando um tema aparentemente distante, patriado em terras europeias, parece estar nos ambientando a perguntas e vivências próprias de períodos de crise econômica, que já assolam também a realidade brasileira e latinoamericana.

Dois dias, uma noite conta a história de Sandra (Marion Cotillard), uma mulher operária que produz placas solares e é demitida, descobrindo que a seus colegas foi ofertado um bônus de mil euros caso votassem pela saída dela do emprego. Afastada para cuidar de um quadro depressivo, Sandra se vê diante da situação de ter sido colocada em xeque pelos companheiros de trabalho assim que retorna da licença. Embora pouco convencida da possibilidade de reverter o quadro, decide conversar com cada um para pedir que optassem pela sua manutenção em uma segunda votação.

O filme retrata o seu caminho de porta em porta dos colegas de trabalho no fim de semana, que constitui uma dança com muitos elementos simbólicos. Por um lado é o caminho que o capitalismo obriga os trabalhadores a percorrer, com frequentes portas na cara e recados de “mande dizer que não estou”; por outro lado, o percurso da conversa, um a um, é constitutivo do fazer político coletivo, frequentemente apelidado nos movimentos de “trabalho de formiga”. Isso se dá com a discussão entre iguais, com a tentativa de amarração de compromisso comum e afinidades políticas.

Entre uma cena e outra, em que Sandra consegue ou não a solidariedade de um companheiro, o retrato de seu adoecimento – doença de trabalho e símbolo de adoecimento social – joga para fora da protagonista o problema. O problema é de cada um e de todos eles, que embora ainda empregados, vivem a contradição de “optar” entre a manutenção do posto de trabalho de um colega e o recebimento do bônus. Em situação de instabilidade e precariedade, muitos trabalham em um segundo emprego para complementar a renda. Em vários momentos Sandra diz ao marido que além de tudo agora não consegue também falar, dizer o que pensa. Cenas de engasgo, de falta de ar, como se estivesse a engolir as palavras ou a própria situação vivida entremeiam as circunstâncias de convencimento dos companheiros. A sua derrota extrapola o espaço privado, a preocupação com as contas, com os filhos, o problema individual, a saúde. No momento da lida com o outro se percebe que se trata de algo fortemente ligado à esfera pública, coletiva e político-social.

As conversas tidas são as mais diversas, e testam os interesses/necessidades individuais, apresentando uma situação limite da qual qualquer um deles poderia ser vítima. No entanto, Sandra não se apresenta como vítima, explica que não foi ela a escolher a condição de permanecer em detrimento do bônus. As reações variam entre hostilidade/indiferença e solidariedade profundas. Os motivos também variam, de situações mais precárias que se solidarizam até situações de vida melhores que apresentam necessidades supérfluas como importantes diante da perda de Sandra. No entanto, em momento nenhum ela os recrimina, e inclusive se questiona sobre o que faria se ela própria tivesse que abrir mão de mil euros para salvar o pescoço de alguém.

Em especial o desenvolvimento de uma das personagens é muito interessante, sua colega de trabalho que se desculpa e diz que não pode abrir mão do bônus porque ela e o marido estão construindo um terraço na casa. Posteriormente vemos que ela se encontra em uma situação de violência, e o marido não permitiu que ela votasse pela permanência de Sandra. A sua decisão pela nova votação favorável é combinada com uma ruptura com a condição de oprimida, na medida em que a personagem se separa do marido violento e apresenta aquela como a primeira decisão tomada em sua vida. Essa cena nos mostra os frutos parciais da articulação coletiva que ainda requer chão.

Ao longo do caminho, com a câmera acompanhando à distância, Sandra oscila entre seguir e desistir muitas vezes. A cada golpe ou acolhida, que podem ser lidos como alusão ao que se vive na construção de mobilizações políticas, ela sente o peso da necessidade e da possibilidade. A desistência significa não poder pagar a mensalidade da casa, e a ameaça de retornar à moradia social. A continuidade não garante vitória, e exige desgaste e energia. Em um dos momentos de refluxo profundo de seu ânimo, Sandra tenta suicídio ingerindo dezenas de comprimidos, em uma cena silenciosa e fria, sem elementos que nos envolvam emotivamente na ação a não ser a própria imagem.

O silêncio e a música são aspectos marcantes na narrativa. Praticamente o filme todo é permeado pelo som natural, enquanto duas cenas apresentam a música como personagem. A primeira delas é a cena em que Sandra está com o marido no carro, que abaixa o som quando percebe uma música triste tocando, ao que ela responde pedindo para que ele não a proteja. Nesse momento aumenta o volume e canta sorrindo uma canção que fala de solidão no mundo. Sem ser de euforia, seu sorriso é de quem encara as coisas como parte da vida, e estabelece contato humano com o companheiro. A segunda é quando estão Sandra, o marido e a companheira de trabalho no carro, correndo atrás dos últimos votos do dia, e eles sorriem e curtem juntos um rock, em cena de forte cumplicidade.

A terceira cena a destacar é a mais silenciosa. O filme termina sem som algum, com Sandra indo embora da fábrica satisfeita com a batalha travada, com a solidariedade de alguns companheiros conquistada e com a prova para si mesma da possibilidade de se fortalecer diante da depressão e da ofensiva patronal. O silêncio da cena final é também um personagem, como a música, que bota na tela a crueza da situação que não pode ser embalada por nenhuma trilha sonora. O silêncio e o som, nos lugares onde são colocados, não nos obrigam ou induzem a chegar a conclusões ou a nos agarrar em sentimentos pré-estabelecidos. É um convite a ouvir, a pensar, a nos questionar.

Por fim, o filme possui uma cor peculiar, tendo dado a nítida sensação de estar a assistir a irmã mais nova de Segunda-feira ao Sol, filme de Fernando León de Aranoa, com Javier Bardem. Isso porque, Dois dias, Uma noite tratam de temas gritantes da atualidade com uma poética ensurdecedora, sem apelar ao sentimentalismo ou assumir forma de contos de fada do subúrbio. A semelhança de texturas entre eles é grande, e embora o Segunda-feira ao Sol tenha já pouco mais de dez anos, Dois dias, Uma noite estende as questões tratadas a uma geração mais jovem do que aquela, cumprindo o papel de triangular experiências coletivas a serem travadas entre continentes e gerações diferentes.

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