Gabriel Casoni
Francisco de Oliveira, na introdução da coletânea de textos de Mário de Pedrosa reunidos no livro Sobre o PT, assinala, premonitoriamente, que aqueles textos “são documentos para História, no duplo sentido da documentação e da consciência da gênese de uma transformação”. Textos, segundo Chico, que “interpretaram a consciência dos novos tempos e propuseram o PT, repetindo uma façanha semelhante à de Colombo, ao colocar o ovo em pé” (OLIVEIRA, 1980, p. 9).
Chico de Oliveira tinha razão. Mário Pedrosa foi entusiasta da formação de um partido dos trabalhadores de massas, criado de baixo pra cima, à imagem e semelhança dos despossuídos e explorados, e refletindo um momento histórico no qual a burguesia nada mais nada podia oferecer em termos de futuro. Em diversos artigos, cartas e textos do final da década de 1970 e início dos 1980, Pedrosa lançou, por assim dizer, as bases programáticas do Partido dos Trabalhadores (PT).
Pedrosa colaborou com afinco para a formação de um partido novo, nascido e moldado pela classe trabalhadora, de si para si, isto é, como exercício de autoemancipação e organização política das classes subalternas. Um partido vocacionado à transformação, que em seu impulso imanente rompesse com as cadeias da dominação capitalista e almejasse um futuro socialista e democrático. Um partido dos trabalhadores que já não esperasse mais nada da burguesia nacional – sufocada pelo capital externo e presa a um projeto de dependência, atraso e submissão – e que, portanto, conectasse o futuro da Nação aos destinos dos explorados e oprimidos. Um partido avesso à centralização burocrática de uma minoria sobre a massa, um projeto político conduzido pelas mesmas mãos que trabalham (PEDROSA, 1980).
Com esse espírito, Mário Pedrosa assistiu com alegria ao levante operário que sacudiu o ABC e se alastrou posteriormente pelo país. Viu nessa onda proletária a única força social criadora que poderia dar sentido de futuro ao Brasil dilacerado por décadas de ditadura. E mais: observou que aquela maré crescente, feita por homens simples, brutos e corajosos, era portadora de um potencial político capaz de arrastar atrás de si amplas massas populares.
Em síntese, no final dos 1970, Mário anteviu a gigantesca força que contida no projeto do Partido dos Trabalhadores. Assim, lutou energicamente por sua efetivação e sucesso, sendo um dos seus ilustres pioneiros – o filiado número um do partido.
Sua última empreitada política não foi em vão. Os anos 1980 foram testemunhas da formação de um partido dos trabalhadores verdadeiramente de massas, independente de quaisquer frações burguesas, que carregou em suas bandeiras vermelhas os sonhos de liberdade e justiça de toda uma geração de brasileiros. A partir daquele momento, os destinos políticos do Brasil começaram a se confundir, por assim dizer, com os destinos do PT.
Porém, tragicamente, os anos de formação do PT foram negados e vilipendiados, no sentido político e programático, em sua caminhada e ascensão ao poder. Em 2015, depois de ocupar o governo federal por doze anos, o PT parece apenas uma grotesca caricatura daquele vigoroso partido de trabalhadores que incendiou o coração e a mente do velho revolucionário e crítico de arte Mário Pedrosa.
O PT de hoje é a imagem de uma máquina burocrática completamente adaptada às engrenagens da ordem política do grande capital: a classe trabalhadora já não exerce nenhum poder de mando sobre o aparelho que criou no passado. O partido que selou um pacto de “sangue” com banqueiros, grandes empresários e forças obscuras da política brasileira para governar, desfez-se totalmente de seu caráter emancipatório e de classe. O norte programático que Pedrosa lançou com tanta audácia – o sentido anticapitalista e socialista do PT das origens – se perdeu por completo.
É possível afirmar, por consequência, na tentativa de construir uma imagem de impacto, que o sonho de Mário Pedrosa foi traído? Em outros termos, o projeto original do Partido dos Trabalhadores foi apagado? Se temos uma resposta afirmativa às questões acima, uma pergunta nos parece inevitável: havia elementos desse perigo já nos primeiros passos do PT?
Os escritos de Mário Pedrosa dão pistas de algumas “armadilhas” existentes ainda no período de formação do partido. Até mesmo nos documentos fundacionais do PT, há imprecisão no que tange à natureza de classe do Estado e a relação que deveria ser estabelecida entre a classe trabalhadora e as instituições, ou seja, a tarefa dos trabalhadores perante ao aparato estatal. Em resumo: as massas poderiam se apropriar do aparato do Estado burguês para seus próprios fins? Isso seria possível?
Este tema adquire enorme relevância, pois a história do PT, particularmente nos últimos doze anos, foi a da adaptação completa do partido ao aparato do Estado e às políticas de preservação do capitalismo nacional, dependente e subordinado ao capital financeiro. O programa de conciliação de classe e a estratégia de poder umbilicalmente vinculada à democracia burguesa foram os motores da transformação e degeneração do Partido dos Trabalhadores. Nos escritos de Mário Pedrosa, podemos encontrar a pré-história de um partido que embalou os sonhos de milhões e também “pistas” que levam aos seus descaminhos futuros.
A “carta aberta a um líder operário” e o “futuro do povo”
A carta de Mário Pedrosa a Lula, que data de 1º de agosto de 1978, revela o enorme entusiasmo do velho revolucionário face a sacudida histórica protagonizada pela classe operária do ABC paulista (PEDROSA, 1980). Aqueles peões incultos, bravos e destemidos tinham um líder com sua cara: Luiz Inácio. Pedrosa dirigiu-se a ele não com a postura de um intelectual pedante ou de um dirigente veterano dirigindo ensinamentos ao novato, mas antes como um admirador sincero e humilde conselheiro. A atitude cuidadosa e respeitosa de Mário foi recompensada com a simpatia e as boas vindas de Lula.
O velho revolucionário já de início esclarecia na carta:
“Sei que você, cuja liderança vem tomando vulto de norte a sul do país, no movimento da classe operária brasileira, não gosta muito de manifestações de intelectuais na vida sindical. Compreendo e respeito sua ojeriza nesse sentido, pois a história desse movimento operário, principalmente no Brasil, está recheada de exemplos de salamaleques, tapinhas nas costas e outros tipos de engodo, com que certos intelectuais, mormente em vésperas de eleições, procuram bajular os trabalhadores. Felizmente, desses trejeitos eu nunca sofri, muito menos, hoje, nessa idade em que não se é mais candidato a nada, a não ser continuar fiel às ideias da mocidade.” (PEDROSA, 1980, p. 11)
É interessante notar como Mário Pedrosa viu na emergência da classe operária a chave para o futuro do Brasil. O intelectual não depositava esperanças em nenhum segmento das classes possuidoras, bem como não acreditava nos setores médios como sujeitos sociais condutores da transformação necessária. A classe operária, motor econômico de um país que se industrializava; jovem e concentrada; ignorante mas valente; reunia as condições de aglutinar o povo atrás de si para as mudanças prementes. Otimista com o levante operário, escreveu Pedrosa na carta:
Posso agora sorrir e predizer que o Brasil será um país feliz: a hora da emergência da nova “classe operária e da emergência de um Brasil novo, liberto afinal da opressão, coincide. Quando Karl Marx, meu mestre, proclamou no século passado que “a emancipação dos trabalhadores seria obra dos próprios trabalhadores” – esta verdade não se apagou mais da história.” (PEDROSA, 1980, p. 12)
Mário formulava os apontamentos programáticos numa perspectiva de entrelaçamento de distintas tarefas históricas. Salientava, assim, a importância das tarefas democráticas (derrubada da ditadura; plenas liberdades democráticas; direito irrestrito de greve; reforma agrária; autonomia sindical, etc.) conectando-as às demandas econômico-sociais (salário, direitos sociais, etc.) e às medidas de cunho anticapitalista. Em sua carta a Lula, o autor expô essa linha de pensamento:
“e assim se criarão as condições ideais para que afinal surja da luta pela redemocratização do Brasil um movimento operário realmente profundo, livre, nitidamente trabalhista dentro do qual todas as forças populares legítimas se vão unir para um só ramal, o socialismo: Movimento dos Trabalhadores pelo Socialismo. (PEDROSA, 1980, p. 14-15)
Pedrosa sempre enfatizou em seus escritos que a primeira virtude do PT era ter nascido dos próprios trabalhadores, sendo um projeto que veio realmente do seio da classe operária. No texto “O futuro do povo”, apontava que:
“Só mesmo no Brasil, neste país novo, grande, ignorante e bárbaro, é que se poderia produzir um proletariado novo, ignorante, bárbaro, mameluco ou cafuzo, capaz de propor ao Brasil burguês, rico e branco um partido deles, proletários, com que esperam, confiantes e cheios de fé, fazer renascer o Brasil.” (PEDROSA, 1980, p. 17)
O crítico literário contrapunha o vigor da classe operária à podridão das velhas classes dominantes, “corrompidas desde o berço pelos privilégios e o monopólio de cuja legitimidade espúria nem desconfiam, que fizeram um país de baixa moralidade”. Os de cima portam os mecanismos de um “despotismo embrutecedor” (IDEM) que oprime um povo humilhado, sendo seu único objetivo acumular mais e mais riquezas. O regime militar, segundo Pedrosa, assumiu o poder “para amoldar a nossa gente a seu gosto e à sua ideologia não teve realmente outro propósito que instalar no país um capitalismo à americana […]” (PEDROSA, 1980, p. 18).
O PT e o Estado
O pequeno texto de Mário Pedrosa “O PT e o Estado” guarda um valor precioso, sobretudo para os dias atuais, quando se discute as causas da degeneração do PT. No breve escrito, Mário assinalava que o Partido dos Trabalhadores não é uma invenção de ninguém, “nem mesmo de Lula e seus amigos, é, porém, um produto lento da história do Brasil” (PEDROSA, 1980, p. 43).
Logo em seguida, o autor iniciava uma breve descrição histórica das relações de classe no país. Começando pela infame escravidão, o massacre dos índios e chegando à industrialização dependente e atrasada ocorrida no século XX, Pedrosa expôs como esses processos conduzidos por uma elite mesquinha, gananciosa, inescrupulosa e subserviente ao imperialismo, produziram graves contradições sociais e regionais, bem como engendraram massas populares e proletárias sem quaisquer direitos sociais. O PT nasceu, então, como o herdeiro legítimo de séculos de massacre e exploração, como o porta-voz e o instrumento da emancipação social e democrática, negadas historicamente pelas classes dominantes com violência e brutalidade.
Mário Pedrosa apontava como a formação e o desenvolvimento do Estado brasileiro refletiram a estrutura e as relações de classe do país. Primeiro, a imposição imperial mal exercida por Portugal sobre o vasto território, depois o jogo das oligarquias regionais na condução de uma débil unidade nacional, o qual deu lugar a uma centralização forçada por Getúlio nos anos 1930. Já os governos que antecederam o golpe de 1964 sofreram de uma crônica instabilidade política, a entrada em cena do proletariado organizado era um fator poderoso de estremecimento da ordem social e política. A ditadura militar, segundo Mário, foi a tentativa de resolver as crises na ponta do fuzil, uma saída bonapartista por assim dizer. Os militares impuseram um plano que, mantendo as profundas desigualdades sociais e regionais, buscou uma industrialização dependente e subordinada ao domínio ianque, feita na medida para a contenção das lutas sociais (PEDROSA, 1980).
Vale ressaltar a análise do caráter de classe do Estado Brasileiro feita pelo autor:
“A sociedade capitalista e o estado burguês, não como conceitos abstratos mas em forma tangível, tal como o processo de desenvolvimento histórico os criou, constituem precisamente o subsolo sobre o qual se apoia a produção capitalista […] No Brasil, o Estado vindo da Monarquia não sofreu nenhuma mudança de estrutura fundamental quando passou à república […] O estado burguês não admite porém nenhuma transformação estrutural seja de que natureza for. Aqui surge, queira ou não se queira, entre a burguesia e a classe dos trabalhadores um impasse, ou melhor, um choque de posições como o de dois times em disputa de área.” (PEDROSA, 1980, p. 47-48).
Pedrosa destacava o caráter de classe do Estado brasileiro, e também esclarecia que suas instituições foram construídas para a manutenção da estrutura social em benefício da elite nacional e do capital estrangeiro. E mais: assinalava que não era possível qualquer transformação essencial na natureza do Estado, em outras palavras, era impossível modificar seu caráter de classe. Porém, mais adiante, faria uma afirmação que abria outra hipótese teórica.
Este tema – a natureza social do Estado – é particularmente importante tendo em vista o processo de transformação do PT ao longo da década de 1990 e, especialmente, após sua chegada ao governo federal. A estratégia alentada por décadas pela direção petista, qual seja, a de chegar ao “poder” para transformar o Estado e usá-lo em benefício dos trabalhadores, deu no seu inverso: o PT foi transformado pelo aparato do Estado; de instrumento político dos explorados e despossuídos, converteu-se no fiador da ordem capitalista, logrando estabelecer-se mais de doze anos no governo federal em aliança com substantivos setores da burguesia nacional e internacional.
Localiza-se precisamente nessa questão uma imprecisão programática de Mário Pedrosa em seus escritos sobre o PT. O velho revolucionário marxista expunha de forma inequívoca a impossibilidade da transformação estrutural do Estado burguês, contudo, em aparente contradição com essa afirmação, estabelece a hipótese de que o proletariado, controlando o Estado, pudesse modificar sua forma classista.
O último parágrafo do texto “O PT e o Estado” não deixava dúvidas:
“A missão do proletariado contemporâneo como classe consciente de seus próprios interesses será oposta à da burguesia, pois, não levando o Estado a qualquer forma política do capitalismo; altera-lhe sem dúvida a forma classista, e como classe consciente abre o Estado uma perspectiva que tende a estabelecer formas consequentes e democráticas de socialismo.” (PEDROSA, 1980, p. 48).
Todavia, para não sermos demasiados injustos com Mário Pedrosa, que viveu apenas o período de formação do PT, deixaremos uma última citação, na qual o velho e ilustre combatente do socialismo apresentou uma lição há muito esquecida pela direção petista:
“A imagem do Estado, que governo e oposição nos apresentam, é visivelmente uma ideia cansada, uma ideia do já visto. O Estado que concebe, o Estado que propõe é um Estado cujo objetivo fundamental é manter o status quo econômico e social do país e que garante o uso e o gozo dos monopólios que capitais estrangeiros e nacionais já vinham desenvolvendo sem o menor impedimento durante todas as décadas passadas. Esse Estado não permite como não permitiu e não permitirá para frente qualquer concessão séria.” (PEDROSA, 1980, p. 46-48).
Referências bibliográficas:
OLIVEIRA, Francisco de. Introdução. In: PEDROSA, Mário. Sobre o PT. São Paulo: CHED, 1980.
PEDROSA, Mário. Sobre o PT. São Paulo: CHED, 1980.
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