Fábio José C. de Queiroz
“Deixemos que os fatos aconteçam” (Lênin).
Aclamada por leitores e críticos, esta é a história da morte do fato como componente intrínseco da história. Notável por sua simplicidade, essa narrativa fantástica ganhou corações e mentes no meio acadêmico. Neste campo, os acontecimentos deram lugar ao sentido de casta invenção.
Esta é uma história familiar, com um enredo simples e intenso, na qual os pós-modernos impuseram a sua verdade. Pois é: verdade. Em sua prosa, há sempre um enfoque interessante, um imenso e detalhado painel, acerca da morte do acontecimento. Híbrido de aventura e realidade, este é um mercado em franco entusiasmo, diferentemente do que acontece com o mercado mundial.
De feito, os adeptos do pós-modernismo, de forma inconteste, nos mostram (com a erudição habitual) que não há distinção entre o real e o fictício. Isso, inclusive, já não provoca arrepios ou perplexidade nos meios intelectuais. Ao contrário, essas narrativas, recheadas de aventura, exprimindo um verdadeiro jogo de espelhos, nos quais os fatos são traídos, se revelam como elementos de estimulante originalidade, em que cada caso é tomado como experiência imaginativa única.
Com isso, o acontecimento que detinha – no plano historiográfico – um vasto território, efetivamente, se apequenou. E hoje, num tempo em que a ministra da agricultura afirma que, no Brasil, não há mais latifúndio, a impressão é que a humanidade se encontra desamparada ante a morte dos fatos. Nessa perspectiva, se não existe mais latifúndio, no Brasil, ok, os pós-modernos estão certos: os fatos estão mortos.
Pintar um quadro vívido desse ambiente e do processo que lhe confere sentido, de certo, pode nos tornar mais do que adultos nostálgicos dos acontecimentos, e, por tabela, nos permitir examinar o declínio da estratégia socialista, e concomitantemente, o reforço de ideias em que as desventuras céticas e traumas hipersubjetivados afogam qualquer componente de objetividade no plano da história.
É certo que o fato, como o pensavam os positivistas, está soterrado no cemitério do tempo. Precisa matá-lo, no entanto, como condição primária da refletividade histórica? Ou seja: para salvar o factual da superficialidade, primeiro, e da areia movediça, depois, não é necessário assassiná-lo.
A neutralidade axiológica, professada pelos metódicos, com o propósito de elaborar a descrição imparcial do seu objeto, é uma folha de parreira. Com ela, estamos historicamente desnudos. Contestar isso, entretanto, não deve indicar o trespasse do acontecimento na história. Mesmo autores cultuados pelos pós-modernos, se revelam mais cautelosos com relação a esse debate. Como observou François Dosse, “o acontecimento, segundo Péguy, não é neutro; ele exige um comprometimento total do indivíduo” (2013:47). É evidente que o comprometimento do indivíduo é parte do complexo processo de construção do fato, mas esse envolvimento tem limites bem marcados, nomeadamente a particularidade de que o acontecimento não é a resultante arbitrária da ideação ou do simples devaneio, ainda que para o seu concurso o historiador mobilize a imaginação. A afiguração, contudo, deve se embasar no manejo cuidadoso de dados e análises, sem se incorrer na substituição da imaginação viva pela pura imaginação.
Nessa linha de raciocínio, o autor de História em migalhas, afirma que “para Péguy, o verdadeiro historiador é aquele que restitui vida ao acontecimento”. (DOSSE, 2013:50). Ora, o que faz Marx, em O 18 de brumário de Luis Bonaparte, a não ser restituir vida aos acontecimentos? Ele, no entanto, recusando a empáfia da imaginação pura, não inventa os fatos os quais submete a uma elaboração cuidadosamente coerente.
Malgrado os seus momentos de lucidez teórica, François Dosse, apoiado em Péguy, quer, paradoxalmente, que nos livremos dos fatos, quando, em última análise, deveríamos reconstituí-los, restituí-los de vida, por meio do entrelaçamento de imagens altivas e análises rigorosas. Em O 18 de Brumário, Marx começa o seu texto empregando uma das mais fecundas imagens da ciência histórica: “Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”. Embasado nessa representação analógica, ele parte para uma apreciação histórica dos fatos na qual não há propensão para o misticismo ou a evasão do real, em que o objetivo e o subjetivo assomam como momentos de uma mesma totalidade. Ao empreender essa ação teórico-metodológica, o velho alemão dava um aviso: atrás dos fatos só não vai quem já morreu! Atrás dos fatos, não no sentido, de tomá-los em uma suposta neutralidade, mas para rendê-los a análise mais feraz e profunda, desfazendo-os dos véus que os pretendem passar por lebre, afinal, se houvesse coincidência entre aparência e essência, não haveria necessidade de ciência.
Nesse sentido, o mais doloroso de tudo isso, não é a supremacia desse ponto de vista na academia, mas como isso resvala para a o terreno de uma realidade mais rica e compósita, que ultrapassa os muros da universidade.
Nesses termos, o capitalismo confronta uma crise ou se trata de mera invencionice? No Brasil, a economia se desacelera, ou não? Hobsbawm (2000) escreveu que não podemos inventar os fatos. Elvis Presley morreu ou não? Houve forno crematório, na barbárie nazifascista, ou não? A essas perguntas poderíamos acrescentar: há latifúndio, no Brasil, ou não? Como diria Brecht, são tantas as perguntas. Isso expresso, assim, é quase inacreditável, mas Kátia Abreu e os pós-modernos têm um ponto em comum: ambos desejam ardentemente “desconstruir” os fatos.
Por fim, há outra pergunta: até quando, a pretexto de desnaturalizar e historiar os fatos, se seguirá propondo que eles sejam simplesmente ignorados, no movimento em espiral da sua rica e quase indizível construção humana?
Em lugar de responder a essa indagação, que, implicitamente, sugere uma resposta, será mais interessante e fecundo adentrar uma questão que, até o momento, apareceu neste texto somente como leve aparência. É um fato que o socialismo, como ideologia e como estratégia, se enfraqueceu, o que é reconhecido, inclusive, pelos desconstrutores mais ilustres (aqui, da direita mais retrógrada aos pós-modernos “mais esquerdistas”, ironicamente, a ninguém é permitido ignorar esse fato).
Certamente, os marxistas não somos recitadores de documentos e não tomamos a história como mera descrição dos fatos (KOFLER: 2010); apenas, como indicava Trotsky (1979), não acreditamos que os fatos possam ser mudados pela eloquência. Desse modo, estamos somente no começo de embates vindouros, e, nesse sentido, dialeticamente, acolhemos os fatos como movimento profundo e vivo, e não como algo dado, vazio, fixo, inamovível.
Assim, ainda que tenhamos o dever de travar as pequenas batalhas que o cotidiano nos impõe, no plano mais geral, somente a vivificação do programa e da estratégia socialistas, em última análise, pode oferecer uma alternativa de conjunto aos estratagemas da ministra e dos próceres do pós-modernismo. Os marxistas revolucionários, que souberam nadar com a corrente a seu favor (pelo menos, se comparados com os dias que passam), saberão também fazê-lo no âmbito turvo da contracorrente?
Referências bibliográficas:
DOSSE, François. Renascimento do acontecimento: um desafio para o historiador, São Paulo: Editora da UNESP, 2013.
HOBSBAWM, Eric. Sobre história, São Paulo: Civilização Brasileira, 2000.
KOFLER, Leo. História e dialética – estudos sobre a metodologia da dialética marxista, Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2010.
MARX, Karl. O 18 de brumário de Luís Bonaparte, São Paulo: Boitempo, 2011.
TROTSKY, Leon. Discussão com Trotsky sobre o programa de transição, in: Lênin/Trotsky, São Paulo: Kairós, 1979.
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