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TEORIA

Relatos Selvagens

Diego Braga

Em vários aspectos relevantes, Relatos Selvagens, do argentino Damián Szifron, que estreia neste “longa” assinando direção, roteiro e montagem, é um filme de grande valor. As aspas no “longa” se explicam porque Relatos Selvagens é, a rigor, a justaposição de seis curtas-metragens que nada compartilham entre si em termos de elementos narrativos (personagens, trama, cenário, etc). O que liga os seis relatos é muito mais, com variações, o conjunto de elementos formais (linguagem, concepção, perspectiva, ritmo). Por outro lado, conceder tratar os seis curtas como um longa é, de certa forma, situar o filme dentro de uma estrutura de percepção pós-moderna, que renuncia à grande narrativa em prol do fragmento. Sobretudo quando, nos marcos deste modo de pensar pós-moderno, em que se identifica erroneamente totalização com totalitarismo, o fragmento aparece como pedaço de um todo que não existe ou cuja existência se condena como abstração de potencial opressivo. Esta maneira de situar o filme conforme um padrão ideológico – porque, gostem ou não, é isto que o pós-modernismo é – com bastante aceitação em boa parte dos setores cultos da sociedade é uma forma de preparar uma recepção mais favorável, abonada pela contraditória impressão de familiaridade vanguardista que a estética pós-moderna tende a instaurar.

Com isso, de forma alguma queremos dizer que o filme é esteticamente oportunista. Pretendemos apenas fazer, assumindo todos os riscos das generalizações, algumas indicações que permitem dimensionar e compreender o sentido de sua ampla aceitação por parte de público e crítica. Indiferente a quais possam ser estas indicações, Relatos Selvagens se impõe, com muitos dos méritos cabíveis à expressão cinematográfica, desde a primeira cena. Se tivéssemos que ressaltar um destes méritos, optaríamos pelo criativo posicionamento de câmera, tão variegado e cheio de tiradas de originalidade quanto insistente na recusa em instaurar um determinado ponto de vista para a narrativa.

A câmera transita, irrequieta, mas neste trânsito não assume o lugar de qualquer dos personagens, nem se estabiliza como uma visão de fora que possa se identificar como a do diretor e a dos espectadores. Já numa das primeiras cenas, a câmera se encontra dentro do compartimento para bagagens de mão no avião. É de lá, do ponto de vista da bagagem, que assistimos passivos às primeiras interações que, rapidamente, se desdobraram numa situação altamente tensa na qual os envolvidos também pouco podem fazer. Tensão, de certo modo, cômica pelo paroxismo, mas, sem dúvida, embora o modo como é narrada deixe isso pouco evidente, imensamente trágica. Não apenas para os passageiros do avião, mas para o personagem apenas nomeado cujo drama pessoal – que é social – está diretamente ligado à sua motivação na estória. E assim, o filme prossegue: a câmera se situa fora do plano padrão, nos dando uma visão inusitada dos fatos. O espanto não abre espaço para a reflexão, porque nenhum ponto de vista nos é sugerido como suficientemente estável para servir de ponto de apoio para o posicionamento crítico. A câmera assume ângulos inusitados, quase sempre de posições em que nenhum ser humano poderia ver a cena. Ora vemos desde o “ponto de vista” dos botões do teclado do terminal de autoatendimento, ora, nossa visão se situa na maçaneta da porta de vidro, na mesa do bolo e ao rés do chão. Há algo de Kubrick nisso, mas o modo como tal recurso se articula com os demais lhe dá outro sentido.

Este tipo de posicionamento de câmera instaura uma perspectiva que não é um ponto de vista específico, estável, a partir do qual possamos interpretar o todo da narrativa. Agrega-se a este elemento o fato de que nenhuma das visões é subjetivada. A câmera, salvo por breves e esporádicas tomadas, não nos dá a visada de uma consciência que possa julgar o que se desdobra diante dos nossos olhos. E o que se desdobra é bárbaro. Ocorre que “bárbaro” é um juízo demasiado consciente, cuja determinação é em grande parte socialmente condicionada. Diante da barbárie na telona, deslocado o juízo crítico pelo artifício estético, o que nos advém como reação quase reflexa se sucede como riso, tensão escaldante, ira e horror. Relatos Selvagens fisga a camada mais imediata de nossas reações e isso explica parte de seu grande apelo, cuja força é potencializada pela forma extremamente bem acabada, conscientemente elaborada para tal fim.

O envolvimento criado, porém, não é emotivo. Não se trata de provocar em nós indignação, mas fúria. Nada de suscitar o senso irônico: cabe instigar o riso tenso. Admitem-se o repúdio e o temor, mas quase sempre generalizados, vale dizer, nunca direcionados para um aspecto específico. Seria melhor dizer: o pânico em vez do temor, o asco em vez do repúdio, nos quais a consciência é sobrepujada pelas reações mais instintivas. A trilha sonora também trabalha neste sentido, somando-se como mais uma boa sacada. Via de regra, é não-funcional, ou seja, a música incide geralmente quando a cena inclui algum tipo de música tocando ou quando a narrativa se distancia do drama e se aproxima do videoclipe de música. Portanto, a trilha sonora, à diferença da produção cinematográfica mais comum, não é estrategicamente inserida na cena para provocar ou reforçar a emoção desejada. O resultado final é que o envolvimento do espectador torna-se ainda menos emotivo, ainda que radicalmente visceral. A subjetividade do espectador fica subsumida quase ao nível dos reflexos.

A dificuldade de envolvimento emotivo torna-se ainda maior quando se trata de estórias curtas, onde não há tempo para instalar no espectador relações afetivas com um personagem ou contra outro. Apesar disso, cada um dos relatos nos envolve muito rapidamente pela escalada progressiva da tensão. É possível que o esquema das peripécias cumulativas com que se constroem os roteiros seja uma influência dos produtores, os irmãos Pedro e Augustin Almodóvar. Este recurso é uma das marcas do cinema de Pedro e serve tão bem para o drama quanto para o cômico. A Szifron, porém, não falta personalidade. Ao desdobramento rocambolesco dos conflitos soma-se outro recurso, cujos rastros se mostram no fato de que, das ferrenhas rinhas que assinalam os conflitos nas seis histórias, apenas em dois (o segundo e o quarto relato) é possível que nos simpatizemos mais afetivamente com um dos lados do conflito. De resto, tendemos a vibrar e comemorar com um “bem feito!” toda vez que qualquer um dos dois lados da disputa sofre algum contragolpe brutal. Ou seja, nosso envolvimento é, em geral, contra todos, a favor de ninguém. Como os espectadores de MMA, somos levados a querer ver sangue.

O filme articula, então, duas linhas de força do pensamento pós-moderno: o nivelamento de todas as posições, ideias, pontos de vista, como relativos. Não nos alinhamos com nenhuma das posições. Todos nos parecem dignos dos mais terríveis destinos. Tanto o músico psicopata quanto aqueles que são impiedosos com seus deslizes. Tanto o caseiro que se vende quanto o ricaço que o compra. O adúltero e a mulher que usa o gentil cozinheiro como seu primeiro objeto de vingança. Não torcemos por ninguém, mas contra todos. Aí se expressa o que ideologicamente, na pós-modernidade, é a característica tendência a nunca dizer sim a uma determinada ideia ou projeto, não por repúdio a tal ideia ou projeto, mas apenas porque o sim implica um ao menos momentâneo não a todas as outras ideias e projetos possíveis. Não se pode adotar um ponto de vista sem excluir todos os outros. Diante deste dilema, o pós-modernismo opta por adotar todos os pontos de vista, que é nada mais que uma forma de não adotar nenhum deles. A subjetividade, caracterizada pela ação consciente, dilui-se assim no conjunto de alteridades possíveis, instáveis, mas nem por isso dinâmicas, pois não se realizam em nenhuma direção na prática. O que obviamente implica, ainda que por vezes não intencionalmente, deixar o que é vigente perpetuar o seu domínio.

Relacionada com esta relatividade, a forma de estruturação da linguagem de Relatos Selvagens nos lega, contraditoriamente, uma renúncia. Renuncia à subjetividade como princípio agente e consciente a partir do qual nos posicionamos no mundo. A recusa a tomar uma posição, implica a recusa à subjetividade. Nesta dimensão, a individualidade torna-se ao mesmo tempo alienada como objeto e blindada contra qualquer crítica que, necessariamente, manifesta um ponto de vista subjetivo. Criticar é tomar posição e defender uma determinada perspectiva, um projeto específico, um grupo de ideias mais ou menos delimitado. Subjetividade, porém, não é o mesmo que individualidade. Para o pensamento burguês, sim, mas para o pensamento marxista, não. Para o burguês, a ação e a consciência cabem sempre ao indivíduo, que é visto em contradição com o social, visto meramente como objetivo. Para o pensamento marxista, a ação e a consciência articulam dialeticamente o indivíduo e o social, que têm ambos, também, dimensões objetivas. Assim, embora procure minimizar a dimensão subjetiva – é impossível, a rigor, anulá-la por completa numa obra de arte –, em Relatos Selvagens toda ética é nivelada no âmbito atomizado do indivíduo, isenta, portanto, tanto de possibilidade de crítica quanto de efetividade social.

Neste sentido, até nos dois relatos em que, conforme afirmamos anteriormente, é possível haver uma identificação com um dos lados dos conflitos narrados  – e, portanto, uma maior dimensão subjetiva na percepção destes conflitos – o comportamento e a resposta destas personagens são estritamente individualistas. Os dramas destes dois relatos, que, pelo mesmo modo como são retratados de maneira a deixar a brecha para a identificação subjetiva, também deixam entrever o âmbito social como parte do conflito, resolvem-se como um conflito entre o indivíduo e a sociedade, que é, contudo, ou personificada ou abstraída em instituições. Jamais é retratada como realmente é: um conjunto dinâmico de relações humanas. As relações humanas são colocadas sempre como relações individuais, o que contribui para desbastar algo de sua humanidade.

É assim que são retratados os personagens diante dos conflitos de classes, que aparecem em quase todos os episódios. O homem trabalhador contra um sistema burocrático, corrupto e anônimo. Dois homens na estrada cujos extratos sociais e individualidades são, sugestivamente, expressos por dois tipos diferentes de automóvel: um de luxo, outro precário, igualam-se ao se esmurrarem em luta pela sobrevivência. As trabalhadoras de um restaurante e um gângster com pretensões políticas. O empregado da casa moralmente corrompido pela proposta do patrão. Em todos estes conflitos de classe, porém, a expressão é totalmente individualizada. O âmbito social, político e histórico, que realmente dimensiona estes conflitos, desaparece no filme. Assim, desprovidos de quase tudo que é humano fora do âmbito do indivíduo, os conflitos são mostrados de maneira nivelada no plano do quase biológico, o homem como lobo do homem, os conflitos entre homens apresentados como brigas de galo, rinhas de cães, cenas de documentários da vida selvagem: a fúria cega, a violência animalesca, o sexo despudorado. Aí compreendemos o nome do filme e sua vinheta de abertura. Neste ponto justifica-se a muito propagada comparação de Relatos Selvagens com o cinema de Tarantino, muito embora a violência, neste, se dirija mais para o espetáculo que para a animalização.

Muitos dos condicionamentos que levam à expressão da barbárie nas relações entre os homens desaparecem quando a humanidade é restrita ao âmbito do indivíduo, principalmente quando este âmbito é retratado de uma perspectiva que quase sistematicamente recusa assumir a posição da subjetividade. Este, digamos, traço de “darwinismo estético” resulta tão eletrizante para os impulsos nervosos mais imediatos do espectador diante da tela quanto restritivo para as possibilidades do reconhecimento consciente por parte do mesmo espectador nos conflitos narrados. Quando a relação entre homens é mostrada como o conflito de indivíduos regido pela lei da selva torna-se difícil a identificação com a espécie humana. Ocorre que esta relação individualizada e selvagem entre os homens demonstra incrível semelhança com a realidade vivida pelo espectador, semelhança que se torna ainda mais evidente à medida que o filme a mostra de maneira exagerada, num paroxismo que chega a beirar o surreal, pintando com toda a clareza os seus contornos.

Esta clareza ao nível da violência concreta expressa corresponde ao embaçado de sua colocação como gênero. Aqui, também sob os ventos da pós-modernidade, o imediato é ressaltado enquanto se diluem os elementos que podem situar o filme no âmbito do geral. Relatos Selvagens, classificado pela crítica como comédia, tenta se situar nas fronteiras entre os gêneros. O que não significa que não seja em grande parte um filme comum. A limpeza da fotografia e o naturalismo sóbrio da produção contrapõem uma sensação de comodidade à tensão exacerbada dos enredos. Até mesmo os diálogos, ágeis e precisos, que articulam as situações mais inusitadas, são transparentes, não chamam atenção para si, parecem naturais dentro da situação exagerada. Tudo isso compõe uma base bastante natural sobre a qual o aspecto violento dos conflitos relatados e seus desdobramentos absurdos ganham todo o realce que nos mantém de olhos presos à tela.

Enfim, se não estamos errados em nossa avaliação, o filme realça um laivo de nosso modo de ser que é exacerbado na sociedade em que vivemos. Se isto tem um potencial crítico, também pode ser perigoso, porque exacerbar um aspecto não é senão ensombrear o outro, a saber: o da consciência e o da subjetividade, tão massacrados e marginalizados no império da reificação graças ao qual a vida de todos nós, os noticiários, as leis e o cotidiano estão repletos dos mais selvagens relatos. Talvez, se tivesse o filme mais carne política e amplitude de visão, fosse ruim, pela chatice ou pela banalidade. Ao que parece, justamente seu poder estético, que captura o espectador no mundo de hoje, resulta de sua fraqueza crítica: o fato de que mostra os homens em seus conflitos dentro das jaulas da individualidade, nas quais qualquer homem parece uma fera. Mostra-se esta jaula com a mesma distância e objetividade com que o zoológico nos mostra os leões e as onças. A barbárie ganha dimensões animalizadas que lhe parecem adequadas, não fosse o fato de que é levada a cabo por gente. Diante da exposição animalizada e individualizada da violência extrema é possível passar do hilariante ao horroroso como num glissando. A crueldade, assim, causa excitação. Os esportes sangrentos estão aí para o provar. Na linguagem do filme, não podemos nos colocar na visão dos bichos em suas jaulas. É isto que nos permite vibrar e rir diante da barbárie. Não vemos ali pessoas como nós, mas feras lutando pela sobrevivência segundo a lei do mais forte. Quase não é possível perceber que ela é, para nós, a lei do mais rico, a lei do gênero, a lei das instituições do Estado, da ideologia do sucesso como responsabilidade individual, etc.

Um outro filme, tão bom quanto Relatos Selvagens, mas que retrata a mais extrema violência desde um ponto de vista crítico, incitando a empatia ao provocar o horror, é Salò, ou os 120 dias de Sodoma, de Pasolini. Se acaso alguém não o viu, vale assistir junto com Relatos para comparar duas visões artísticas diferentes, igualmente primorosas.

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