Alvaro Bianchi
Certa feita, Jean-Paul Sartre afirmou que o marxismo era a filosofia insuperável de nossa época. Ao afirmar isso registrou o caráter histórico do marxismo, o qual era o ponto de culminância e a negação do pensamento filosófico precedente. A afirmação registrava, ao mesmo tempo, a finitude dessa forma de pensamento, cuja existência encontra-se condenada ao quadro social que ele procurou explicar. Ao reconhecer sua própria finitude, o marxismo assumiu-se como um pensamento profano.
A relação do marxismo com a história filosófica e social de sua época era, uma relação contraditória. Ele nascia daquilo que queria negar. Desde o início estava claro para Marx que a critica à filosofia de sua época era uma negação de todo pensamento teológico. Na Prússia da primeira metade do século XIX, a religião era uma politica de Estado. Levantar-se contra o monopólio da Igreja na vida civil era, também, protestar contra a autocracia política. Para realizar-se a filosofia deveria romper com todo pressuposto teológico, mas isso significava negar-se a si própria. Marx lançou-se de maneira implacável nesse trabalho de liquidação e rapidamente percebeu que para emancipar a razão também era preciso emancipar a humanidade.
O marxismo realizou a crítica da filosofia hegeliana e da economia política ricardiana, negando-as. Sem essas formas teóricas nunca teria existido, mas não foi a seus estreitos quadros intelectuais que o marxismo se conformou. A filosofia marxista não é a dialética hegeliana, assim como sua teoria do valor não é ricardiana. Ao realizar a crítica às formas intelectuais precedentes, Karl Marx assentou as bases para a crítica radical da própria sociabilidade na qual estas se assentavam, atacou a reificação das relações sociais, as quais aparecem no capitalismo como relações entre coisas, e investiu contra o fetichismo da forma estatal, que se manifesta como expressão da vontade geral.
Apenas sob o látego da crítica o mundo não teria se vergado. Foi necessário que a teoria descobrisse o movimento dos trabalhadores para que se tornasse uma força material. Não foi um encontro casual. A teoria e a prática não foram mais as mesmas depois dessa reunião. Nas ruas de Paris, Marx tomou contato com a agitação comunista inspirada pelas ideias de Gracchus Babeuf e de Flora Tristan. Desse encontro nada casual, nasceu uma nova prática política, reinventando o internacionalismo e recriando a forma partido. Em 1848, o comunismo era só um espectro. Em 1871, uma ameaça real.
Nesse encontro com o movimento dos trabalhadores a crítica ao pensamento iluminista adquiriu contornos mais radicais. O romantismo espontâneo e revolucionário, presente na revolta dos tecelões da Silésia, nos cartistas ingleses e nos comunistas utópicos franceses, carregava consigo uma recusa das novas formas sociais que a mercantilização de todas as relações e a grande indústria impunham com uma violência extraordinária. A miséria crescente, a exclusão da vida política da comunidade, a animalização da existência humana na fábrica eram objetos de recusa.
Essa recusa não perdoava sequer a razão. O próprio Iluminismo era colocado sob suspeição. “As águas geladas do cálculo egoísta”, já assinalaram Marx e Engels no Manifesto comunista, profanaram tudo o que era sagrado e desmancharam no ar tudo o que era sólido e estável. Não havia motivo para uma confiança cega nos poderes da razão. Ao invés de emancipar a humanidade, libertando-a de todas as correntes, a razão iluminista servia para justificar uma nova e crescente opressão. As correntes políticas do antigo regime haviam cedido lugar aos grilhões da exploração capitalista. Que os novos senhores afirmassem agir em nome da ciência não mudava as coisas.
De braços dados com essa crítica romântica à razão burguesa caminhava uma moral profana. Pacientemente destilada no alambique das revoltas camponesas e das heresias religiosas, essa moral amaldiçoava a miséria e o sofrimento dos mais fracos e louvava a solidariedade comunitária. Nos grandes centros urbanos ela descobriu o imperativo da organização, dos clubes, dos sindicatos, das associações e, finalmente, do partido. Terçou armas não apenas contra os governantes e os proprietários, mas também contra seus guardiões espirituais, o clero e a instituição eclesiástica. Saiu das igrejas, perdeu seus traços místicos e adquiriu um caráter profano.
Um pensamento que sempre foi profano não pode ser transformado em uma religião laica, sob pena de perecer. Ao convertê-lo em uma ideologia estatal, o stalinismo transformou o marxismo em uma religião. A imagem síntese dessa religião de Estado é o corpo mumificado de Lenin, placidamente repousando em seu mausoléu de Moscou. Todo ano, milhares de peregrinos visitam o santo soviético em um ritual sincrético no qual os símbolos comunistas se misturam com o gestual da Igreja ortodoxa. Como crítica social a religião de Estado tinha vitalidade igual a esse cadáver. Servia para justificar um regime burocrático, para fortalecer as correntes que aprisionavam mulheres e homens, mas não para emancipar a humanidade. Também essa religião de Estado se encontrava morta.
O marxismo deve ser inimigo das igrejas, dos profetas, dos papas, dos sacerdotes e coroinhas, dos textos sagrados, da adoração dos mortos, dos cultos aos santos. Mas só pode ser esse inimigo se combater de modo ainda mais decidido as igrejas que se constroem em seu nome, os autoproclamados profetas armados e os desarmados, os infalíveis papas partidários, os mesquinhos sacerdotes de paróquias, a patética adoração aos mortos e o culto aos santos conhecidos e desconhecidos. A religião de uma pequena seita não é melhor do que uma religião de Estado. Só é menos relevante. Para continuar a ser a filosofia insuperável de nossa época, enquanto nossa época existir, o marxismo deve voltar a ser profano.
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