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TEORIA

As raízes e perspectivas da luta atual no México: entrevista com Abelardo Marina Flores

A entrevista abaixo foi concedida por Abelardo Marina Flores a Lucia Pradella especialmente para o blog Convergência, com o intuito de divulgar a luta popular no México. Abelardo é professor de Economia Política da Universidad Autônoma Metropolitana-Azcapotzalco (Cidade do México) e tem participado ativamente das mobilizações recentes. Na entrevista Abelardo analisa a luta atual contra a repressão aos movimentos de trabalhadores no país localizando suas raízes políticas e sociais.

Tradução de Patrick Galba de Paula

LP – Quais são as causas fundamentais dos assassinatos e desaparecimentos forçados dos estudantes de Ayotzinapa em Iguala?

AMF – As raízes de longo prazo da violência no México podem ser encontradas no Estado autoritário que se consolidou no México após o regime de Cárdenas. Mesmo durante o boom do pós-guerra e o assim chamado milagre mexicano a repressão de movimentos sociais, trabalhistas, progressistas e de esquerda tem sido permanente e sistemática. Exemplificam isto os movimentos de mineiros, ferroviários, trabalhadores do sistema elétrico, professores da educação pública, médicos e estudantes. As investigações sobre os massacres estudantis que ocorreram em 1968 e 1971 e da “guerra suja” dos anos 1970 e 1980 contra as guerrilhas rurais e urbanas não resultaram no indiciamento de nenhum dos culpados. As fraudes eleitorais contra coalizões de esquerda em 1988, 2006 e 2012 confirmam esta natureza autoritária do Estado Mexicano.

As raízes de médio-prazo podem ser traçadas até os processos de restruturação neoliberal levados a cabo no México que envolveram não apenas uma guerra permanente contra a população através da estagnação econômica, a expropriação de riqueza pública, social e privada, desemprego generalizado e precarização do trabalho, mas também a consolidação de atividades criminosas como parte das operações diárias do Estado.

As raízes de curto-prazo encontram-se na chamada “guerra as drogas” levada a cabo durante os últimos dez anos como um aspecto de uma estratégia contra-insurgente mais ampla, e que resultou na militarização do país e numa violência generalizada: Cerca de 150 mil mortes e 25 mil desaparecimentos, incluindo milhares de ativistas políticos. 

LP – Qual é a terreno social destas atividades criminosas?

AMF – No país, muitos trabalhadores desempregados são atraídos pela economia do crime devido à falta de perspectivas. O negócio das drogas floresceu precisamente após a imposição das reformas neoliberais. É uma verdadeira indústria – isto precisa ser compreendido. A indústria das drogas e suas indústrias associadas, como o tráfico humano, são parte de um negócio globalizado cujo centro poderá ser encontrado principalmente nos países desenvolvidos, começando pelos Estados Unidos. Os Estados Unidos são o maior mercado de drogas ilegais e também o local de onde esta indústria se organiza mundialmente. Esta indústria não poderia existir sem a lavagem de dinheiro operada pelos grandes bancos. No México ela se desenvolveu na segunda metade dos anos 1980 em competição com a Colômbia. Ela floresceu no México porque oferece emprego em nível local, na produção agrícola e também em nível nacional, no comércio, distribuição e nas operações financeiras. Num país onde não há muitas outras oportunidades de emprego, este tem sido um dos setores mais prósperos da economia.

LP – E então entra em cena a “guerra às drogas”…

AMF – A guerra às drogas é parte de uma estratégia antiinsurgente liderada pelos Estados Unidos, não apenas no México, mas mundialmente. Funciona como pretexto para intervenções militares. No México, no final dos anos 1990 o governo lançou o Plano Puebla Panamá, com o apoio dos Estados Unidos. Visto em perspectiva, esta foi umas das bases a partir da qual se iniciou a guerra às drogas. Em termos de segurança, houve um aumento permanente da militarização com esta guerra. Os Estados Unidos sempre jogaram nos dois lados: dão apoio militar para forças policiais e militares que estão, supostamente, lutando contra as drogas, mas também disponibilizam armas para os cartéis de drogas. Isto ocorre também em países como a Colômbia. Para os Estados Unidos é importante manter um certo nível de violência nestes países para produzir e manter um contexto no qual apareça como adequada a repressão a qualquer tipo de atividade política militante.

LP: Nos últimos anos, grande parte do território mexicano foi concedido a multinacionais com profundo impacto para as comunidades rurais. Esta estratégia antiinsurgente estaria relacionada ao processo de expropriação rural e à resistência no campo?

AMF – Sim, claro. Desde o governo Salinas houveram algumas contra-reformas agrárias que objetivaram privatizar a terra, atacar os ejidos[1] e algumas formas comunais de propriedade. As multinacionais vem expropriando estas terras desde os anos 1990 e esta é uma das principais causas da insatisfação popular no campo. As reformas da energia e da mineração de 2013 reforçaram este processo de expropriação porque envolveram medidas no sentido da privatização da terra.

LP – Mais especificamente sobre os normales…

AMF – Os normales foram estabelecidos em 1921, mas tiveram muito apoio durante o governo Cárdenas nos anos 1930. No contexto da luta contra o fascismo, Cárdenas desenvolveu uma política de “frente popular”. O Partido Comunista foi legalizado e naqueles anos operou abertamente, e Cárdenas até mesmo desenvolveu o que ficou conhecido como uma “política socialista” para a educação, contrária as forças conservadoras. Isto teve uma importância especial no campo, como contraponto ao poder conservador da Igreja. A “educação socialista” foi uma forma de se contrapor a idéias direitistas, e os normales conservavam este propósito. Eles foram e seguem sendo direcionados para os setores mais pobres da população rural, e oferecem uma formação política sólida, muitas vezes com bases socialistas.

LP – Então eles tem sido alvo de ataques e repressão específica…

AMF – Sim, nos anos neoliberais houve um ataque generalizado contra a educação pública. De forma mais específica, o Estado tentou acabar com os normales. Quase metade deles foram fechados por todo o país, e os que não foram seguiram lutando por sua continuidade. Eles estão sempre se mobilizando por conta do conteúdo político de sua formação, ligada as lutas populares e aos movimentos sociais do campo. Mas estas mobilizações também têm a ver com uma luta permanente contra o governo para evitar o seu desaparecimento.

LP: Então você vê os eventos de 26 e 27 de setembro no contexto deste processo mais amplo de criminalização e repressão dos movimentos sociais?

AMF: Sim. O outro fator tem sido a simbiose que ocorreu nos últimos quinze anos entre o poder político e o tráfico de drogas. Este aspecto se desenvolveu em todos os níveis em todo o país. No campo talvez seja mais visível por causa dos grupos criminosos locais, gangsters, que vendem “proteção” não apenas para a população em geral mas também para governantes locais. Em um primeiro momento isto aparece como um tipo de infiltração, mas há um momento em que eles chegam a acordos bilaterais, e isto se espalhou por todo o país. Cada vez mais as eleições locais são decididas por gangues das drogas, cujos candidatos ganham as eleições. Eles dão proteção e eliminam adversários políticos. Em troca, ganham o suporte das forças policiais em suas disputas com outras gangues do tráfico. Este é um fenômeno generalizado. Aparece de forma notória no Norte, em Chihuahua, Durango, Sinaloa, e Tamaulipas; na região central, em Veracruz e Jalisco; no sul, em Oaxaca e por toda parte, embora não com a mesma virulência em todos os estados do México. Mas no último período o que temos visto é um colapso quase completo dos governos estaduais devido a esta crescente articulação dos governos locais, em Michoacán, e agora em Guerrero. Esta simbiose também ocorre no nível “macro”, federal. Como eu disse anteriormente, a indústria das drogas não poderia existir sem a lavagem de dinheiro. E o volume de dinheiro circulando neste setor não poderia ser explicado sem o envolvimento de grandes corporações e bancos, não apenas no México mas também nos Estados Unidos.

LP – O que você pensa sobre os relatos de envolvimento do exército nos assassinatos de Iguala e nos desaparecimentos?

AMF – Neste tipo de arranjo o exército pode estar envolvido na corrupção e na indústria das drogas. Forças militares locais e regionais também vendem proteção a gangues específicas, então tem um envolvimento do ponto de vista local.

LP – Então você acha possível que eles tenham participado diretamente no assassinato e desaparecimento dos estudantes?

AMF – Esta é uma questão. É uma das coisas que queremos saber. Existe uma evidência clara de que, no mínimo, o exército sabia o que estava ocorrendo com os estudantes de Ayotzinapa. Os assassinatos e desaparecimentos forçados ocorreram a apenas algumas centenas de metros de uma base militar local. Existe a informação de que os militares sabiam antecipadamente e que alguns deles estiveram presentes quando ocorreram os primeiros disparos. Ao invés de tentar evitar o que ocorreu, eles ameaçaram os estudantes e evitaram que os feridos fossem socorridos. Então eles estão envolvidos. O que não sabemos é se eles estão envolvidos no desaparecimento dos estudantes. É o que queremos saber.

LP – Quem está se mobilizando agora?

AMF – A mobilização começou quase que imediatamente entre os estudantes. O ataque criminoso em Iguala ocorreu no contexto de uma série de greves no Instituto Politécnico Nacional, uma das maiores escolas superiores do México. Estas greves se generalizaram no final de setembro e se tornaram uma greve geral e ainda está em curso. Além disso, os estudantes de Ayotzinapa estavam angariando recursos para vir à Cidade do México participar das manifestações relacionadas ao massacre de estudantes ocorrido em 2 de outubro de 1968. Então já havia uma mobilização estudantil em curso: em apoio às greves da Politécnica e em preparação dos atos de 2 de outubro. Quando a informação sobre Ayotzinapa começou a vazar os estudantes foram os primeiros que se mobilizaram: iniciaram-se imediatamente manifestações pela aparecimento dos 43 estudantes. Desde então, o movimento estudantil tem sido a vanguarda das mobilizações. Os estudantes tem ido as ruas e se organizado por todo o país, construíram um coordenação inter-universidades, e uma assembléia inter-universidades com representação de cerca de 80 ou 90 escolas de todo o país. Eles tem sido cruciais na organização de todos os protestos. Mas a participação de outros segmentos tem aumentado. Em Guerrero, Chiapas, Oaxaca e outros estados os professores do setor público são bem organizados. Ano passado eles fizeram uma mobilização geral de professores contra as reformas na educação pública básica que incluiu uma ocupação de quatro meses do Zócalo [praça principal], na capital. Estes setores mais organizados dos professores são parte do movimento. Outros setores que estão se integrando às mobilizações são as organizações campesinas. Mas todas elas foram muito enfraquecidas pelos 30 anos de neoliberalismo. Uma assembléia popular nacional foi organizada, com encontros em Ayotzinapa, na qual estes grupos começaram a se coordenar em um plano de ação mais amplo.

LP – E os sindicatos e trabalhadores organizados?

AMF – Os trabalhadores organizados no México estão muito enfraquecidos. Em todos estes anos de neoliberalismo eles foram os setores mais atacados, uma vez que a reestruturação neoliberal implicou no fechamento de indústrias inteiras. A maior parte das indústrias que surgiram do processo de substituição de importações simplesmente desapareceu; milhares de trabalhadores foram demitidos e os direitos de sindicalização foram reduzidos. Isto reforçou a privatização das indústrias públicas. Além disso, desde os anos 1950 a maior parte dos sindicatos foi incorporada em um sistema corporativo através do partido oficial (PRI), de forma subordinada ao governo. De forma que qualquer tipo de ativismo democrático dentro do sistema sindical oficial ou fora dele tem sido reprimido, e existem pouquíssimos sindicatos independentes, a maioria muito pequenos. A exceção são alguns sindicatos das universidades que são grandes, mas não muito militantes. 

LP – Mas alguns sindicatos participaram da marcha do dia 20 de novembro…

AMF – Sim, na sua maioria os sindicatos das universidades, alguns setores democráticos e ativistas dos sindicatos do setor público, bem como alguns remanescentes do ativismo sindical da companhia elétrica que operou no centro do México e foi fechado há quatro anos atrás. Existe participação, mas o movimento no setor é fraco. Muitos dos sindicatos que compareceram nas manifestações são parte do que chamados “sindicalismo neocorporativista”; eles não são diretamente ligados ou submetidos ao governo, mas são subordinados aos empregadores. O melhor exemplo destes é o sindicato da companhia telefônica. Quando a companhia foi privatizada, o sindicato fez um bom acordo com a companhia evitando os layoffs. Depois, a companhia cresceu basicamente através de subcontratações, o que foi aceito pelo sindicato. Então pode-se afirmar que foram eficientes em defender os salários, benefícios e emprego dos seus filiados, mas se tornaram neocorporativistas ligados às estratégias do proprietário. Em diversas manifestações eles protestam contra a política econômica nacional, mas ao mesmo tempo apóiam a companhia e a família Carlos Slim. Este é um claro exemplo deste neocorporativismo.

LP – Vamos tratar duas questões que acredito estarem intimamente relacionadas: Primeiro, qual o balanço do movimento atual, em sua opinião? Segundo, você acredita que estamos testemunhando uma crise do Estado Mexicano

AMF – Acho que o balanço do movimento é bom. Estamos protestando há dois meses, e o processo está se estendendo. Podemos ver novos setores se incorporando ao movimento: como eu disse antes, professores, camponeses, alguns trabalhadores urbanos e também segmentos da chamada classe média. As pessoas estão cada vez mais informadas sobre o que está acontecendo no país. Então acredito que é um grande sucesso. Vitórias menores foram obtidas, como a detenção de pessoas envolvidas (cerca de 60) nos crimes em Ayotzinapa, embora isto não inclui todos os responsáveis, e a demissão do governador de Guerrero (que foi retirado do governo). Mas eu acho que o ganho mais importante deste movimento é que ele aprofundou a deterioração da legitimidade não apenas dos governos estaduais e federal, mas do sistema político de conjunto.

Isto está em grande medida relacionado à segunda questão: sim, eu penso que o Estado mexicano está em crise, uma crise de legitimidade. A contradição principal é que os diferentes governos e instituições políticas não podem dizer a verdade, na sua totalidade, porque se houvesse uma verdadeira investigação muitas pessoas seriam incriminadas. Governantes locais, estaduais e federais, autoridades judiciárias e legislativas, assim como líderes do exército e dos principais partidos (PRI, PAN e PRD), estão todos envolvidos por ação ou omissão no que ocorreu em Ayotzinapa, não apenas nos eventos em si, mas também em seus antecedentes. As atividades criminosas do prefeito de Iguala (tráfico de droga e assassinatos) eram conhecidas por diferentes autoridades, federais, estaduais e locais, e pelos líderes dos principais partidos; e eles não fizeram nada! Então este é um grande problema para todo o Estado: nós queremos saber toda a verdade e queremos que todas as responsabilidades sejam investigadas e todos os culpados punidos. Mas se isto for realmente acontecer, todo o sistema vai perder claramente sua legitimidade. Então isto mostra a crise do Estado e que nele não é possível uma investigação verdadeira que vá até o fim. É uma situação difícil. A outra alternativa é a repressão aberta. E há uma questão importante que é a visibilidade internacional dos crimes de Ayotzinapa e das manifestações. Esta visibilidade internacional tem sido um fator fundamental a impedir que o governo federal proceda numa repressão generalizada, com assassinatos e prisões em massa.

LP – Então, em sua opinião, trata-se de uma crise do Estado?

AMF – Sim, é uma crise do Estado Mexicano. Mas quero deixar claro que uma crise não necessariamente significa que o Estado está fraco. Eu entendo esta crise como uma crise no equilíbrio entre violência e consenso. O equilíbrio existente se deteriorou nos últimos anos e não funciona mais. As coisas terão que mudar necessariamente. Se continuarmos a luta, é possível que consigamos mudar este equilíbrio de forças no sentido de mais democratização, atacar a impunidade, buscando alguma justiça contra a violência do Estado. Será um longa luta que pode resultar num movimento progressivo mais geral. Mas o risco de que o equilíbrio se altere no sentido de uma repressão aberta também está presente.

LP – Quais são os desafios do movimento? As questões estratégicas que ele precisa enfrentar?

AMF – Acredito que a principal questão é organizativa, não apenas da organização formal mas também intelectual e do ponto de vista da consciência. No México, como em outros países, o poder da mídia é muito grande. Mas em um país pobre – no qual as pessoas recebem informações principalmente de redes de televisão e rádio privadas, e no qual muitos não tem acesso à internet – as pessoas não tem muita informação sobre o que está acontecendo. Temos que envolver mais pessoas disseminando informação no nível local, no interior, nas vizinhanças; temos que discutir a conjuntura do México em perspectiva histórica e envolver as pessoas na luta. Todos são afetados pela violência do Estado no México. Mas quando não se está organizado e informado, prevalece o medo, e o medo leva os indivíduos à paralisia. Então penso que um ponto muito importante é organizar intelectualmente através de informação e discussão, ao lado da organização formal do descontentamento.

LP – Uma última questão sobre os desafios do movimento e sua relação com os partidos. Uma das principais posições que surgiram neste movimento é a afirmativa de que o Estado é responsável pelos crimes de Ayotzinapa e muito mais. A demanda principal decorrente disto não é só a mudança do governo, mas uma mudança mais radical. O que você pensa sobre isto?

ABF – A grande tarefa é construir um programa alternativo, que deve passar pela mudança de governo, mas também abordar a necessidade de um conjunto de mudanças no quadro legal e constitucional no sentido da construção de um Estado de novo tipo. Esta tarefa é muito difícil porque esta crítica do Estado é muito intuitiva é lhe faltam organizações fortes. A constituição de um desenvolvimento desta crítica em propostas políticas concretas não é algo fácil. O horizontalismo tem suas vantagens mas se formos desafiar o Estado este horizontalismo deverá se desenvolver em uma forma de articulação entre o local e o nacional, e evidentemente com os movimentos internacionais, não só em termos de solidariedade, mas de ação comum. Então, como eu disse antes, a luta será dura e longa, mas acredito que estas questões precisam ser abordadas o mais rápido possível. Bom, existem abordagens, mas a luta deve se focar numa perspectiva radical mais ampla.


[1] Os Ejidos são uma forma de propriedade pública da terra de uso coletivo que chegou a ter grande importância na produção agrícola do México e cuja origem pode ser traçada até o período Azteca.