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TEORIA

Ferreira Gullar, calando sobre política, é um poeta

Diego Braga

Ao contrário de sua poesia, poucas vezes li a coluna de Ferreira Gullar na Folha de S. Paulo. Das ideias reacionárias, não gosto nem das muito bem escritas. Esta coluna de Gullar que vou comentar me interessou em virtude de uma postagem nas redes sociais que anunciava que “Ferreira Gullar apoia o golpe militar”, acompanhada do link para uma matéria que glosava a sua última contribuição no referido jornal. O texto me pareceu tendencioso e, por isso, decidi ir ao original, para ver se o grande poeta, conhecido anticomunista e inimigo figadal do PT, mas também desafeto da ditadura militar, realmente estaria defendendo uma saída à 1964.

Como era de se esperar, não. Mera histeria caluniosa petista, que insiste em acusar de defensor do golpe militar e da burguesia todos os que criticam o governo Dilma, até os que o criticam em nome da independência política da classe trabalhadora (que o PT quer sepultar) e em defesa de um programa socialista (que o PT nunca defendeu). Mas este não é o caso de Gullar. Um dos últimos parágrafos do texto do poeta diz: “De fato, o que ocorreu em junho de 2013 foi a expressão espontânea de parte da classe média contra o lamentável quadro político do país. Os sucessivos escândalos e a sombra da impunidade sempre presente resultaram nas manifestações de protesto que, sem liderança definida, não teriam consequências”[1].

Grande poeta, não foi exatamente a “classe média” no sentido que normalmente se toma da expressão: os pequenos empresários, os poucos profissionais muito bem remunerados do país e os rentistas. Essa fatia social tem muitos motivos para estar furiosa com o PT, que governou para enriquecer apenas os muito ricos, reservando algumas migalhas para pulverizar entre os milhões de miseráveis. A classe média odeia os pobres e tem medo de ser como eles. Odeia o PT, que disputa com os tucanos o amor dos ricos de verdade. Só lhe interessam banqueiros, latifundiários e grandes empresários. Gente que tem iate e jato particular. Reles reis dos camarotes nas boates, não.

Então, a classe média de verdade está, sim, furiosa com o PT e os seus representantes menos lúcidos vêm, sim, pedindo golpe militar em nome da democracia. Ao protestar pelo fim do direito de protestar, porém, esta pequena burguesia não gosta de se misturar com os trabalhadores e a juventude pobre nas ruas, como também não nos shoppings centers e nos aeroportos. Prefere xingar nos estádios durante a Copa e em vídeos na internet. Quem esteve nas ruas em junho de 2013 e na Copa foram trabalhadores e jovens. Que tenham escolarização acima da média, talvez sim, mas sem dúvida têm condições precárias de vida e de trabalho. A classe média de fato, por outro lado, estava nos estádios durante a Copa. É claro, apenas os seus membros que não fugiram para Miami.

Gullar não erra em tudo, porém. É fato que a falta de direção é o maior problema para que as lutas que explodem a todo tempo tenham mais frutos políticos e econômicos duradouros, mas não basta qualquer direção. É preciso uma direção comprometida com a superação da ordem vigente, e não com sua manutenção com ou sem reformas. Ainda que sem uma direção política clara, contudo, Junho de 2013 não foi em vão. Pelo contrário. Foi o mais importante acontecimento político e social dos últimos anos no país. Tem que ser repetido, e maior! E mais organizado e politizado!

As lutas forjam as direções políticas que, por sua vez, fortalecem e direcionam as lutas. Esta dialética não cessa de se dar na realidade e junho de 2013 lhe foi um episódio importante, um salto que marcou uma mudança na situação política de relativa apatia que a classe trabalhadora e a juventude do país viviam. Esta apatia, em parte, se devia à traição do PT, cuja direção se tornou um arquipélago de arquipelegos no oceano sindical e político brasileiro. A apatia relativa anterior a junho devia-se, também, ao ainda majoritário controle destes hoje arquipelegos sobre os movimentos sociais. Junho mostrou que há um setor de ativistas que surgiu, novo, e que não tem referências no PT. Ficou claro igualmente que setores anteriormente organizados sob as asas deste partido estão rompendo, cada vez mais, com sua antiga direção. Por isso, o PT – bem como a classe dominante que se sente segura com o controle do PT sobre o movimento de massas – tremeu quando as ruas viraram rios de gente, caudalosas correntezas de indignação e esperança.

Dizer que a água que jorrou do manancial dos rios de junho desaguou em vão só serve àqueles que não querem ver o espírito de junho irrigar novamente um país com sede de mudanças. A fonte desta água continua viva: nasce do desejo de liberdade, de democracia, de justiça e de fraternidade entre os povos de todo o mundo. Tem, como afluentes que lhe engrossam o leito, as mazelas, as guerras, a exploração, a opressão e crise estrutural do capitalismo. Brecht escreveu que este rio, que tudo arrasta, é considerado violento por aqueles que nada falam das margens que o oprimem. É por isso que Gullar, que quer mudar o governo apenas para que tudo permaneça o mesmo, como o personagem de Lampedusa, diz que junho foi uma derrota. Quer desmoralizar os jovens e trabalhadores que saíram às ruas confiando em suas próprias forças: a força mais poderosa da história, não por acaso a mais temida pelos reacionários.

Assim, Gullar prossegue, em seu panfleto semanal, desta maneira: “Um ano se passou e, chegaram as eleições. A campanha eleitoral contribuiu para que aquele descontentamento se definisse e ganhasse rumo: tirar o lulapetismo do poder já seria um passo adiante no rumo das mudanças que se fazem necessárias”.

Aqui, Gullar confunde mudança de governo com mudança de modelo social, político e econômico. O debate entre Dilma e Aécio foi, de modo muito resumido, uma competição para ver quem: 1) tinha mais acusações de corrupção contra o outro; 2) se apresentava como o mais carismático; 3) mentia melhor sobre o balanço de suas respectivas gestões; 4) era mais comprometido com a continuidade do capitalismo brasileiro. Dilma saiu ganhando, por pouco, em todos os quesitos à exceção, talvez, do 2. Mas o importante é notar que este nível de debate mostra, em termos de programa, não ter havido a menor disputa. Nenhum questionou o modelo do outro, apenas a forma de aplicar o mesmo modelo. E o que precisamos, ao contrário do que quer nos fazer acreditar Gullar, é uma mudança de modelo, não uma mudança de gestão da miséria de muitos para a riqueza de poucos.

E prossegue o poeta: “Nessa conjuntura, o papel desempenhado por Aécio Neves, como candidato da oposição ao governo petista, fez dele o intérprete desse descontentamento e, possivelmente, o líder da mudança”.

Novo engano. Tanto Aécio não representou o desejo de mudança que, em uma eleição em que mais de 70% dos eleitores desejavam mudanças profundas[2], ele foi derrotado. Foi derrotado porque, por mais que tivesse muito dinheiro e marketing para uma campanha hollywoodiana à altura da de sua oponente, não conseguiu convencer os eleitores de que era verdade a mentira que contava ao se identificar com a mudança que todos queriam. O voto em Aécio não foi um voto pela mudança radical. Foi em grande parte um voto para “punir o PT” por não ter feito as mudanças necessárias em nome das mudanças superficiais. Em outro setor, o voto em Aécio foi expressão do que havia de mais retrógrado em termos de consciência política, mas este setor é muito minoritário. Não foi capaz de dar a vitória ao tucano.

A mudança, portanto, era uma palavra abstrata na boca de Dilma e de Aécio, porque na prática a disputa foi pautada por diferenças de propostas superficiais, insuficientes para apresentar qualquer perspectiva real de mudança estrutural. E como o eleitor já conhece Dilma e o PT, decidiu ficar com o ruim, para não correr o risco do que, assustado, acreditava poder ser pior. Este aspecto da campanha petista foi decisivo: incentivar o medo dos anos nefastos de FHC, para colher o recuado voto do conformismo com o que há. Ambos os candidatos colheram o voto da desesperança em qualquer mudança genuína, já que nenhum dos dois apresentou um programa que rompesse com os bancos, com o agronegócio, com a sangria da “dívida” externa e interna, etc. O voto em Dilma foi o voto, em grande parte, fruto do medo de piorar. Ocorre que o pior já está vindo, eleita Dilma. Sua declaração na última reunião do G20 tranquilizou os investidores nacionais e estrangeiros: o ajuste estará garantido em 2015, cortando investimentos em áreas sociais para garantir os sorrisos nas áreas vip. Com Aécio, não seria diferente.

Voltando à coluna de Gullar, o corolário vem no final. E não é por causa do poeta, mas por causa da militância petista. O autor do magistral Poema Sujo conclui assim: “Claro que a mudança que se faz necessária tem que contar com o apoio não apenas da opinião pública – que é decisiva – mas de forças políticas consideráveis, que ainda estão ligadas ao governo. De qualquer modo, não se trata de buscar soluções antidemocráticos mas, sim, ao que tudo indica, mudar para preservar a democracia”.

Com base nestas palavras, alguns militantes governistas saíram a campo dizendo que Gullar estava chamando a intervenção militar com os mesmos argumentos de q964. A histeria política é tanta que qualquer pessoa que fale em trocar o governo do PT por um governo tucano é acusada de convocar um golpe militar. É o batido sofisma governista diante do qual grande parte da oposição de esquerda cedeu nas eleições: não reeleger o PT é colaborar com a direita. Neste sofisma, esquecem-se dois termos políticos palavras fundamentais: classes sociais e modelo de sociedade. Se o PT é realmente a esquerda e o PSDB a direita, ambos se dão as mãos para abraçar o capitalismo. Se o PT está à esquerda do PSDB, é para disputar com esse os favores da classe para quem governa: a burguesia, contra a classe trabalhadora. Este sofisma quer fazer-nos esquecer que há críticas ao PT pela esquerda, desde uma perspectiva de classe, em defesa do socialismo.

Nem toda crítica ao PT é feita em nome da burguesia e do golpe militar. Até porque a burguesia financiou muitíssimo generosamente a campanha do PT. Os militares, por sua vez, juraram fidelidade à presidenta e seguiram fielmente suas ordens, reprimindo as manifestações de junho e os que foram protestar contra a entrega do Pré-sal a preço de banana pelo governo. O PT sabe que pode confiar nos militares. A burguesia sabe que pode confiar no PT.

Em todo caso, Gullar, obviamente, não está chamando nenhum golpe militar. Está afirmando que é oposição ao PT e que deseja apenas uma mudança de governo, não uma mudança de regime. Muito menos uma mudança do caráter de classe do Estado. Por mais reacionário que seja, o poeta só quer, como deixa bem claro em seu texto, preservar o que existe: o mesmo modelo econômico e social, administrado pelo mesmo regime, a “democracia” dos ricos, só que com o partido do tucano em vez do partido da estrelinha à frente.

Ocorre que, na confusa cabeça de Gullar, o PT estaria ameaçando esta “maravilhosa” democracia que temos. Nas atormentadas ideias do velho poeta passam, provavelmente, os mesmos delírios que povoam a mente daqueles que falam em golpe bolivariano e em Brasil tornando-se uma Cuba. Gente, não é o Brasil que está caminhando ruma a ser Cuba! É Cuba que há um tempo está caminhando rumo a ser Brasil! Findo o socialismo naquele país, em breve sua educação de primeira será de quinta, como a nossa. A saúde será assassina, como a nossa. O trabalho dos cubanos já voltou a enriquecer grandes empresários estrangeiros, como faz o trabalho dos milhões de brasileiros. O pleno emprego – este privilégio do socialismo – já não existe na ilha de Fidel, graças à Fidel. Ocorre que, em Cuba, não se pode nem mesmo votar para decidir quem vai administrar a exploração e a opressão, nem haver organização política dos trabalhadores em partidos. E esse direito, com todas as suas limitações, foi duramente conquistado no Brasil. Estamos em vantagem, porque com nossa organização e luta podemos conquistar o socialismo e a verdadeira democracia.

O texto de Gullar reflete, em seu delírio político, a propaganda alucinada dos setores conservadores da sociedade, sem o menor lastro de realidade. Ele não pede, contudo, um golpe militar. As acusações da militância petista, que grita “golpe militar!” diante de toda crítica, são tão infundadas quanto os rumores de bolivarianismo e cubanização. Os fatos estão aí. O governo do PT aprofunda cada vez mais a privatização, a precarização, a entrega do patrimônio público do país às multinacionais, continuando a obra dos governos FHC. Existe, também, um enorme repúdio popular, da juventude e da classe trabalhadora, a este processo, repúdio que explodiu em junho. A resposta histérica a esta explosão se mostra tanto nos minoritários pedidos de intervenção militar quanto nas infundadas acusações governistas de apoio ao golpe lançadas contra todos os que se opõem ao governo. São dois lados da mesma histeria que, de fundo, querem a mesma coisa: calar qualquer oposição.

O pior é ver que esta histeria tem espaço em um dos maiores jornais do país, pela pena de um poeta que faz ecoar estas loucuras, dando-lhes o peso de seu prestígio, que se deve, porém, à sua primorosa poesia e não às suas horrorosas elaborações políticas. Volta a escrever poesia, Gullar!

 


[1]    http://www1.folha.uol.com.br/colunas/ferreiragullar/2014/11/1548992-comecou-a-mudar.shtml

[2]    Segundo pesquisa do Ibope, registrada na Justiça eleitoral com o número BR-00755/2014.