Diego Braga
O anúncio do Prêmio Nobel de Literatura de 2014 para o francês Patrick Modiano não causou muito espanto. É dos autores mais populares na França, embora quando do anúncio do prêmio seus livros estivessem fora de catálogo no Brasil. Nada estranho. Não somos um país de muitos leitores, ainda que com a quinta população mundial[1]. Muito menos de leitores de literatura. Menos ainda de literatura de qualidade. Com certeza, os modianos voltarão às livrarias e o setor social capaz de comprar livros no país vai adquiri-los, declarando amor eterno a este autor até então meio esquecido entre nós. O Nobel tem este efeito: movimenta cifras no mercado literário e declarações de amor nem sempre muito sinceras. Com isso não quero dizer que os densos romances de Modiano sejam ruins, mas que muita gente passa a declarar apreço por uma literatura mais elaborada apenas depois que ela é reconhecida com selos internacionais de qualidade, mais ou menos como se dá com os vinhos e charutos.
A falta de surpresa diante da premiação tem outro lastro além da popularidade de Modiano. Com sua premiação, sem querer lhe tirar o mérito, mais um autor branco, homem e de um país imperialista acaba de ser declarado um dos melhores do mundo. As críticas que levantaremos a seguir não implicam desmerecimento do valor literário dos autores mencionados. Pelo contrário, se dá nos marcos do reconhecimento de que pelo menos uma parte deles, cuja obra é minimamente de nosso conhecimento, deu contribuições fundamentais à humanidade com sua literatura. O que está em debate, ao se levantarem questões de cunho político a respeito dos critérios de decisão para um prêmio literário com o peso do Nobel, é quais são os valores que ancoram a decisão sobre quem dentre os tantos escritores que merecem levará o prêmio. E muitos foram os merecedores que não receberam: Kafka, Nicolás Guillén Batista, Clarice Lispector, Mahmoud Darwish, Alfonsina Storni, Henry Miller…
A distribuição do Nobel de Literatura em geral segue a mesma lógica opressiva subjacente à distribuição da riqueza mundial, dos cargos políticos e do reconhecimento intelectual no capitalismo. Dos 111 agraciados com o prêmio, 98 são homens e apenas 13 são mulheres. Apenas uma mulher negra até hoje recebeu o prêmio, a estadunidense Toni Morrison. No total de homens e mulheres 101 são brancos e apenas 3 são negros. Dentre os demais não-brancos, há dois japoneses, dois chineses, 2 hindus (o trinitário-tobagense Naipaul é descendente de indianos) e 1 árabe. No total, são 82 prêmios dados a escritores de países imperialistas ou àqueles que produziram parte significativa de sua obra nestes países, em que moravam quando premiados, quinze deles na França e onze nos Estados Unidos. Por outro lado, apenas três escritores da União Soviética receberam o prêmio.
Uma história de explosões e interesses
Os prêmios literários existem há muito tempo. Na época dos regimes absolutistas, os grandes prêmios eram dados conforme as afinidades, preferências e interesses das famílias reais (já o Nobel é entregue pelo monarca sueco, mas não é decidido por ele). Outros, de pequena expressão, eram distribuídos em feiras de província, normalmente por júri popular ou por alguma autoridade local. Em geral, estabelecia-se um tema a ser tratado por todos os autores. Os prêmios literários se tornaram extremamente comuns ao final do século XIX e início do século XX, implicando geralmente grande remuneração, prestígio e publicidade para o autor. Rapidamente associaram-se ao crescente mercado literário, premiando quase que exclusivamente autores que publicavam por grandes editoras.
Embora o fim alegado da remuneração do Nobel seja o de incentivar a continuidade do trabalho de um grande criador, normalmente, ao terem-no recebido, todos os agraciados já eram escritores famosos, economicamente estabelecidos, capazes, quase sempre, de viver de sua literatura. Com seu sarcasmo marcante, Bernard Shaw, que aceitou o prêmio, mas renunciou ao dinheiro, disse que o Nobel era “um salva-vidas atirado a um nadador que já chegou à terra firme”. Se a finalidade fosse realmente promover a inovação e fomentar carreiras, a cifra superior a um milhão de dólares do prêmio poderia financiar todo ano o trabalho de centenas de jovens talentos que têm dificuldade de produzir sua obra por esta não atender às necessidades de lucro das grandes editoras. O que a história do Prêmio Nobel de Literatura revela é a ligação de sua finalidade a interesses políticos, além do efeito de aumentar os lucros dos gigantes do mercado literário mundial.
Alfred Nobel, inventor da dinamite, fez grande fortuna nos negócios, como tantos de seus coetâneos: Rockefeller, Krupp, Rothschild e J. P. Morgan. Quase todos estes capitalistas deixaram algum legado “beneficente” financiado com as imensas riquezas que acumularam explorando os trabalhadores do mundo, pilhando recursos de nações periféricas e fomentando guerras e genocídios. Mais do que mera forma de apaziguar suas consciências, este tipo de “caridade”, comum entre grandes empresários, é uma tentativa de limpar suas imagens e de divulgar suas marcas, como fazem as grandes empresas hoje em suas propagandas inseridas sob o título filantrópico de, por exemplo, financiamentos de produtos culturais. Há também grandes empresários que enriquecem muito destruindo o meio ambiente e doam uma parte ínfima da fortuna que acumulam com seus crimes contra a humanidade a iniciativas ecológicas, que pouco ou nada alteram do dano que provocaram, mas sobre as quais fazem, obviamente, muita propaganda que os retrate como empresários “responsáveis”.
O criador do Nobel, cuja fortuna financia, dentre outros, o prêmio por serviços prestados à “paz”, enriqueceu muito vendendo dinamites para fins de exploração de minas e de trabalho humano, bem como para uso bélico. Seu irmão, Robert, era um dos principais produtores de armamento que fornecia para o exército do czar. Portanto, Alfred Nobel não era exatamente um idealista, como querem pintá-lo os responsáveis pelo Nobel hoje em dia. As palavras finais de Alfred Nobel, em 1895, que em teoria servem de critério para a distribuição do prêmio de literatura para “aquele que tiver produzido no campo da literatura a mais notável obra de tendência idealista”, são problemáticas e vagas. O que é “o campo da literatura”? As dificuldades em se estabelecer o que seja “literatura” são evidentes. Winston Churchill e Theodor Mommsen receberam o Nobel de Literatura por trabalhos de historiografia e Bertrand Russell por sua ensaística filosófica.
Como se decide que uma obra é notável e, mais difícil ainda, como se decide qual é a mais notável? O que é “tendência idealista”? Será idealista uma literatura que expressa ideais, ou será uma literatura que veicula sentidos distantes da realidade prática e dos conflitos materiais? A resposta está em que alguns alguns ideais tenham sido mais valorizados que outros pelo Nobel. Knut Hamsun, Noruguês que recebeu o prêmio em 1920, tornou-se um defensor dos ideais nazistas pouco depois. T. S. Eliot era monarquista convicto e confesso, com inclinações fascistas evidentes, quando foi agraciado em 1948. Já Pirandello não mero era admirador de Mussolini, mas membro do partido fascista italiano e defensor da invasão da Abissínia quando foi premiado em 1934. No ano seguinte, doou a medalha do prêmio para que fosse fundida em nome “da causa”. Revelando uma certa queda por ditadores, Pablo Neruda celebrou Stalin, Fulgêncio Batista e depois Fidel Castro com sua poesia. Quando seu amigo stalinista Octavio Paz (que muito depois também seria vencedor do Nobel) rompeu com Stalin por conta do pacto Molotov-Ribbentrop, Neruda manteve-se fiel ao ditador. Arrependeu-se de ter alimentado o culto à personalidade do líder contrarrevolucionário apenas quando Kruschev fez o reconhecimento “oficial” dos crimes da musa bigoduda de Neruda (crimes que já eram de relativo conhecimento mundial), mas o poeta ainda manteve-se fiel ao partido. Então, de que idealismo estamos falando, se até o niilismo do genial Beckett fora premiado em 1969 como se fosse um idealismo, justo quando toda a juventude se levantava no mundo com muita esperança e longe da afirmação niilista do vazio da existência?
Há, de fato, idealismos que parecem condenáveis aos olhos dos responsáveis pelo Nobel. Quando o prêmio foi instituído, o velho Tolstoi era, com pouca margem de dúvida, o escritor mais aclamado do mundo. Em seu aniversário de 80 anos, em 1908, cerca de 700 mensagens de parabéns lhe chegaram de todo o mundo. Pouco antes, em 1897, quando o prêmio ainda estava sendo idealizado, Tolstoi soube que a Academia pensava em agraciá-lo. Ele então escreveu a um jornal de Estocolmo, em 29 de agosto de 1897, sugerindo que o prêmio em dinheiro fosse dado aos Doukhobors, uma seita russa pacifista que se negava a servir às forças armadas. Tolstoi pretendia inclusive doar o dinheiro de seu romance Ressurreição para financiar a imigração dos Doukhobors para o Canadá. Como a família Nobel fizera fortuna vendendo armas para o Czar, o autor do monumental Guerra e Paz, apesar de seu idealismo e de sua indiscutível genialidade como escritor, acabou não recebendo o prêmio nas edições em que poderiam lhe ter dado.
Também por idealismo e um pouco por conselho de Simone de Beauvoir, Sartre declarou publicamente que não aceitaria o prêmio. Alegou que o prêmio condenaria sua liberdade como escritor, porquanto representaria a sua “celebração” e institucionalização pela burguesia. “É uma forma de [a burguesia] dizer: – Finalmente ele está do nosso lado!”, dissera o autor de A náusea, que também declarava ser o Nobel um prêmio alinhado politicamente contra a União Soviética: “uma honra restrita aos escritores ocidentais e aos rebeldes do leste”. Afinal, argumentava Sartre, até então o Nobel só fora dado a um único autor soviético, Pasternak, sendo que ele criticava o regime e fora censurado em seu país. Disse isso sem acrescentar um único comentário crítico à censura stalinista e à humilhação a que fora submetido Pasternak. Para um defensor da liberdade, é uma lacuna imperdoável. A defesa da URSS deveria implicar, se coerente, a crítica irreconciliável à burocracia stalinista que seria responsável, em pouco mais de 20 anos dali, por dirigir a restauração do capitalismo no leste europeu.
O Prêmio Nobel durante a existência da União Soviética
O “idealismo” um tanto seletivo que justifica a escolha dos vencedores do Prêmio Nobel revela uma parcialidade bastante evidente. Os autores soviéticos premiados foram quase sempre aqueles que criticaram a revolução ou o regime stalinista como decorrência da revolução, corroborando com a ideologia da Guerra Fria que equalizava socialismo a stalinismo. Boris Pasternak, que publicara o maravilhoso Doutor Jivago fora da Rússia, foi “incentivado” pela burocracia da União Soviética a recusar o Prêmio Nobel de 1958. Assediado moral e politicamente por Kruschev, foi expulso do Sindicato dos Escritores, que exigiu a cassação de sua cidadania. Com medo, Pasternak renunciou, fez autocrítica e logo depois morreu, humilhado. A premiação do grande romancista Iugoslavo Ivo Andrić se deu justamente no ano em que foi iniciado por Tito o movimento de não-alinhamento, que aumentava a ruptura e o conflito dentro do bloco soviético iniciado em 1948. Talvez como reconhecimento pela crítica aberta de Kruschev a Stalin que, além de desmoralizar o socialismo mundialmente, ainda reforçava a política stalinista de convivência pacífica com o imperialismo, ou para acenar com uma retratação com o stalinistmo pelo caso Pasternak, a Academia premiou em 1965 Mikhail Sholokhov, escritor celebrado pela burocracia do PCUS e autor do épico O Don tranquilo. A trilogia narra a saga do povo cossaco desde a Primeira Guerra, passando pela Revolução Russa e a Guerra Civil. A obra tem a política como pano de fundo, mas sua essência é a narração em tom nacionalista de painéis grandiloquentes sobre os feitos heroicos do povo do Don em batalhas históricas. Logo depois, a Academia voltou a premiar autores que denunciavam os crimes stalinistas contra os gulags, como Soljenitsyn, um dos críticos mais severos ao regime contrarrevolucionário instaurado na União Soviética. Seu discurso de recepção do prêmio divulgava a brutal censura intelectual existente nesse país ainda depois da “desestalinização” de Kruschev. Os outros escritores do leste europeu premiados com o Nobel também eram críticos do socialismo: o tcheco Jaroslav Seifert e o polaco Miłosz, mas este migrara para os Estados Unidos. Já Bertolt Brecht, sem dúvida um dos maiores escritores do século, tinha uma atitude ambígua em relação à burocracia e nunca recebeu o Prêmio Nobel.
Nos limites deste alinhamento geral, houve momentos, é claro, em que uma pequena oscilação aconteceu na orientação do Nobel. Neruda, quando recebeu o prêmio em 1971, ainda era comunista confesso, embora tivesse feito autocrítica por ter celebrado Stalin. Já o caso do mexicano Octavio Paz confirma a regra, porque ele se tornara um crítico feroz do marxismo, enquanto seu “rival” literário e político Carlos Fuentes seguia um defensor do socialismo. Paz levou o prêmio em 1990, como era de se esperar. Carlos Fuentes, nunca. Outras exceções são guatemalteco Asturias, agraciado em 1967, e Gabo, premiado em 82. Crítico ferrenho do imperialismo norte-americano e amigo íntimo de Fidel Castro, proibido muitas vezes de entrar nos Estados Unidos, Garcia Márquez laureado significou muito, com todas as críticas que se devam fazer ao castrismo e ao Nobel.
O caso do egípcio Nagib Mahfouz é emblemático da premiação posterior à mudança de alinhamento. Seu mais importante trabalho é a Trilogia do Cairo. Concluída antes da Revolução de Julho, conta uma saga de família e é ambientada entre a Primeira Guerra e a queda do Rei Faruq I na década de 50. Inicialmente um entusiasta do nacionalismo burguês egípcio de Nasser, Mahfouz logo se decepcionou com o nasserismo e começou a escrever contra o regime, apresentando críticas ao marxismo e ao socialismo em seus romances a partir de 1960, com destaque para À deriva no Nilo, de 1966 e Miramar, de 1967. Nos anos 1980, o foco da crítica de Mahfouz (que sempre fora inimigo da Irmandade Muçulmana) passa para o fundamentalismo no Islã. Assim, seu trabalho de literatura crítica política ganha o tipo de idealismo prezado pela Academia Sueca, que lhe dá o merecido prêmio de 88, em respeito à imensa capacidade de Nagib de misturar tramas movimentadas com diálogos de grande poder de expressão da angústia psicológica dos homens envolvidos nas causas políticas e em conflitos religiosos.
Em breve, escreveremos sobre como o viés político do Nobel permanece depois da queda do socialismo no leste europeu, quando se abre a fase da celebração dos países periféricos.
[1]Errata: em nosso outro artigo neste blog <http://blogconvergencia.org/blogconvergencia/?p=2599> , escrevemos “quinta economia mundial” quando nos referíamos à quinta população mundial, que é o tamanho potencial do mercado literário no Brasil.
Comentários