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Brasil, vitória de Pirro e depois: nova polêmica jornalística com Atilio A. Borón

Betto della Santa

“Se ‘tamos todos juntos contra quem vamos lutar?” (Palavra-de-ordem da Liberdade e Luta – OSI, 1979)

Poucos dias antes do segundo turno das eleições brasileiras Atilio Borón – um prestigiado cientista social latinoamericano, membro do Partido Comunista Argentino e articulista regular do portal de notícias multiestatal Telesurtv.net – publicou um texto de comentário ao segundo turno das eleições do que ele chama “nosso irmão maior”; o Brasil. Poucos dias após seus resultados e, novamente, Borón volta à carga em tom absolutamente diferente do inicial. De-há pouco foi feita uma contextualização efetiva – de quem é Borón e qual seu lugar de fala – no portal Lamericas.org.[1] Se num primeiro escrito o autor carregava nas tintas ao evocar as prisões políticas, os campos de concentração e a trágica execução do dirigente comunista Ernst Thälmann, pelas SS nazistas, já, no segundo, desaparecem as analogias histórico-políticas passado-presente – e Europa-America –, deixando completamente de lado as alusões a nomes-de-guerra, como Karl Marx e Leon Trotsky. Os esforços nucleares da pena do publicista, que antes incorriam em excesso retórico, como para demarcar a distinção política entre o PT de Dilma Rousseff e o PSDB de Aecio Neves – os quais eram tacitamente comparados respectivamente à frente popular francesa de Leon Blum e ao nazi-fascismo alemão de Adolf Hitler –, agora não recorrem mais à formula política da frente unitária de todos os trabalhadores ou à história social e política do movimento antifascista internacional. Após soado alarme, depois de relativo alívio, a Coruja de Minerva logra alçar vôo, ao pôr-do-sol.

Brasil, victoria pírrica y después” é o novo enunciado formal de Borón.[2] O deslizamento de sentido ao sabor da aceleração de conjunturas – tal como pluma ao vento – parece ser a altura baixa por ora lograda por um pensamento que antes ambicionava alcançar à cimeira das nuvens. Nada de Lenin e Terceira Internacional. Nada de Gramsci ou Trotsky. Nada de Marx e Engels. Quando estava em jogo o que os portenhos chamam, por empréstimo ítalo-francófono, “balotaje” ou segundo turno, mobilizaram-se mundos e fundos do arsenal teórico-político. A história como tragédia humano-social e a filosofia como arma-da-crítica pintaram portentoso retrato tal qual o espectro do Manifesto do Partido Comunista, de 1848, e o vil assassinato de Ernst Thälmann, em 1944, dando notícia do quê a filosofia da práxis, de ontem e hoje, chamou revolução e contra-revolução na Alemanha. O escopo do novo artigo de Borón parace ser muitíssimo mais modesto. Trotsky escreveu certa feita que se Lenin pensava em termos de “épocas e continentes” Churchill por sua vez razonaria em termos de “fogos de artifício parlamentar e feuilletons.”[3] O passo das altitudes, típicas das ave de rapina, para altura própria das aves de quintal parece ter como móvel o centro ao redor da política exclusivamente institucional e, especialmente, o aparato de governo. Mas, como já dito, Borón não está pressionado tão prementemente pelo poder de apparatschik do Partido dos Trabalhadores que – em comum com o PT surgido dos anos 1980 – só manteve a sigla.

E é mais que isso. A concepção de política que traz, elucidada histórica e filosoficamente da maneira intelectualmente mais honesta possível, segue operosa e operante em desdobramento à sua análise da situação e das relações de força. Desfeitas as imperiosidades de ocasião, isto é, o caráter mais momentoso de suas caracterizações – “o alívio oferecido pelo veredicto das urnas” – pode enfim deixar de conjurar em seu auxílio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestado os nomes e as palavras-de-ordem, máscaras e indumentária, para apelar à linguagem do presente, da realpolitik de governança, por um lado, e reassumindo a Crítica-crítica que conferir-lhe-ia um capital simbólico, próprio do campo intelectual, para oferecer a direção moral e política exigida para o porvir imediato, à ordem do dia. O assunto que até aí assumia proporções épicas, ao redor de uma época histórica de guerras e lutas – revolução/contrarrevolução –, é ora dramaticamente reduzido ao tempo-espaço coetâneo da administração das crises econômica e política que geram abalos sísmicos ao substrato mais granítico do próprio poder. O embate entre distintos grupos políticos por dominação/direção, sem que nenhum seja capaz de uma solução de continuidade, é um dos traços mais marcantes de um segundo turno tão rezingado, “difícil e angustiante”, entre PT-PSDB. A pugna de transição entre o velho que resiste em morrer e o novo que luta por nascer traz à luz fenômenos ideológico-políticos mórbidos e bizarros. Por exemplo, para ficar com um só caso, a senadora Katia Abreu e seu voto em Dilma, contra o “fascismo” de colunistas da Veja!

Aderir criticando ou criticar aderindo?

De passagem da entonação mais vulgar à mais clássica, Borón se permite até mesmo uma alfinetada naqueles publicistas, que falam a respeito de “pós-neoliberalismo”, no Brasil. O quê antes sequer aparecia na tela pintada pelo autor agora ressurge com mais contraste e nitidez. O pensador explicita que o PT seria uma espécie de “cópia” do “original” neoliberal tucano, e que, em tempos de incerteza, “parte da cidadania optaria pelo PSDB”, por conta não do quão certo estaria o Partido da Socialdemocracia Brasileira mas, sobretudo, pelo quão equivocado estaria o Partido dos Trabalhadores. Longe da banalização do fascismo histórico e realmente existente que promovera no texto anterior Borón circunscreve o que antes parecia com a iminência do incêndio do Planalto brasileiro a tentativas de desestabilização via Bolsa de Valores, Wall Street e jornais. Também é sintomático, de sua nova postura, vis-à-vis à big-picture da cena política brasileira e latinoamericana, que recorra não mais a Gramsci mas a Maquiavel, para explicitar o que ele diz ser típico, das classes dirigentes e dominantes, qual seja, a sua predisposição à conspiração e à sedição. Borón tôa menos inclinado a crer que uma solução não-típica esteja, de fato, à espreita. “A tirania do capital financeiro e seu reverso, a fenomenal dívida pública…, unida ao raquitismo do orçamento social (aproximadamente a décima parte do que paga … de juros aos banqueiros!), a deliberada despolitização e desmobilização”, resultaram por empurrar o PT ao umbral da ruína.

Após afastar com uma mão o perigo do fascismo Borón aproxima, com a outra, algo que chama de “golpe insitucional”. Para isso o autor realiza uma movimentação de duplo caráter: na cena internacional, cita o caso de Manuel Zelaya, de Honduras, e Fernando Lugo, do Paraguai; e, no cenário nacional, alude ao Clube Militar, e o quê muitos analistas estão denominando uma suposta “onda conservadora”, no Brasil. O programa proposto orienta à mudança molecular no terreno econômico-social e evita o protagonismo direto das classes e grupos sociais subalternos no processo histórico-político, deslocando o sujeito coletivo da transformação radical e, ao fim e ao cabo, revitalizando aparelhos de Estado. Isto é, a combinação de inovação e conservação, ou a acepção positiva de “revolução passiva”, como o núcleo-duro reformador de grupos governantes. Vamos deixar de lado o fato de que Borón nomine o Bolsa-Família, o exemplo pronto e acabado de programa social focal-compensatório desenhado pelo Banco Mundial que garantiu ao lulismo ser chamado de “The Man” por B. Obama e toda Washington D.C., como uma “heterodoxia” ao projeto neoliberal já tradicional. Da mesma forma, vamos soslaiar o alarmismo de um argentino assustado pela grita de pijama de oficiais de caserna. Mas uma coisa precisa ser dita com todas as letras: não há perigo de golpe no Brasil. Não há base para tal. Não há fração burguesa afim. Nenhum movimento de massas apóia. A cúpula civil-militar é contra. O imperialismo desaprova. Tegucigalpa ou Asunción não são São Paulo e Brasília. Sua menção é, no mínimo, irresponsável.

«Com o fascismo não se discute: combate-se-o.»

Não poder-se-ia objetar à tradição política trotskista menoscabo em relação ao que se deu em termos de movimento antifascista internacional, já seja nas mais diversas manifestações que encarnou; mundo-afora. A política prática, exercida pelo movimento trotskista brasileiro, no episódio da Revoada das Galinhas Verdes – os combates armados, na Praça da Sé, em 1934 – ou as várias intervenções, teóricas e conceituais, do próprio Leon Trotsky, orientando a Oposição de Esquerda e a Quarta Internacional – para o frontline da frente única antifascista – falam de per se. E Borón sabe disso. E outra coisa que Borón sabe, mas não diz, é que a caracterização, de que a socialdemocracia e o nacional-socialismo seriam “não pólos opostos, mas gêmeos” é de autoria de Josef Stálin. Mas a pior tergiversação teórico-política levada a cabo por Atilio Borón no texto anterior é representar a ideia-programa de “frente popular” stalinista como a superação dialética do “socialfascismo” e continuidade política à estratégia-organização de “frente única” trotskiana. Não bastasse a bibliografia disponível, ou as evidências históricas, poderíamos apresentar tão-só um documento fundamental para subsidiar essa discussão. Antes de Thälmann cair prisioneiro do nazismo – e inspirar um destacamento alemão das Brigadas Internacionais antifascistas a adotar seu nome, no combate ao exércitdo franquista, no Estado espanhol – Trotsky publicara um texto chamado «Os Vinte e Um Equívocos de Thälmann», na imprensa revolucionária, debatendo mais precisamente a concepção thälmanniana de “frente única de todos trabalhadores”. E mais, ainda. Os governos de “frente popular”, aprovados pelo Komintern stalinizado, em plena meia-noite do século passado constituíram a antessala para a ascensão do fascismo (e bonapartismo) na Europa.

Ora! Borón tenta identificar a política stalinista de frente popular com a tese trotskiana da frente única, por um lado e, por outro, tenta dissociar o crasso equívoco da tese socialfascista (e antifrenteunitária) do quê foi seu sucedâneo histórico real, i.e.: a lógica campista da conciliação de classes. E, no bojo desta manobra, tenta mostrar que a oposição de esquerda atual, herdeira da tradição política trotskista restaria como a quê – puxando voto nulo e reclamando independência de classe – seria a corrente corresponsável por fazer um “sinal de igual” entre tendências distintas. Não fosse já a prestidigitação mistificadora contida nesta dialética rarefeita, de aproximação com distanciamento, a coisa se complica ainda mais quando a própria presidenta Dilma Rousseff, em seu discurso oficial, após o resultado do pleito, sugere explicitamente a plataforma duma política de “unidade nacional” (ou “estabelecer pontes”), por um lado, e o próprio Borón, tentando algo como revivificar às teses mais desgastadas de “disputar o governo”, acaba por adotar a máscara política do que passou para a história da luta de classes como “frentepopulismo de combate”, por outro. O “frentepopulismo de combate” era identificado por Leon Trotsky àquilo que ele chamou de “socialdemocracia de esquerda” (tipo “Ziromsky-Pivert-Just”, diz Trotsky, em artigo de 15 de julho de 1934). Não delimitar-se-ia o campo do governo e, qual nexo dinâmico-causal decorrente do assim-chamado ‘voto útil’ ou ‘voto crítico’, “para evitar mal maior”, trazer-se-ia conseqüente implicação em seu interior e a não-constituição de um pólo político-social opositor pela esquerda.

Marceau Pivert, nos anos 30, agrupou-se à ala esquerda do Partido Socialista Operário e Camponês, e alcunhou à expressão, aqui utilizada, de «frontpopulaire de combat», literalmente, “frentepopulismo de combate.” O “apoio crítico” ao governo de ‘frente popular’, de Leon Blum, deveria pressioná-lo para um deslocamento – gradual e progressivo – à esquerda, já a partir dos movimentos de massas. Acredito que as analogias históricas e políticas devem ser usadas com cautela mas, sem embargo, posso compreender porque Atilio Borón comparou Dilma Roussef a Leon Blum, e o PT da década de 2010 ao partido socialista francês dos anos 30 (ainda e quando nada justifique identificar, tacitamente, o PSDB brasileiro ao partido nazista alemão!). De resto, acredito que a formulação politicista do frentepopulismo de combate, seja nas urnas ou nas ruas, já esgotou historicamente seu ciclo político de legitimidade simbólica no país. Esta política de “disputar o governo”, a algo além de qualquer aquém, não levou, decididamente, a lugar algum. E pior. Impôs uma memória seletiva – ou amnésia coletiva? – sobre 12 anos de enfrentamento já teórico ou prático da oposição de esquerda a governos de coalizão liderados por PT e secundados pelo PCdoB desde 2003 até os dias de hoje. Não à-tôa Souto Maior, professor de Direito da USP, falou desse segundo turno como um “assédio eleitoral” (2014). O soar de alarme levou já longe. O que era para ser um “voto crítico” virou vestir camisa, usar avatar CoraçãoValente: campanha!

O que fazer? Por onde começar?

Borón sugere a redefinição do modelo econômico, o recorte de privilégios ao capital e a transformação radical na estrutura social a governo/Estado, por um lado, e, por outro, aconselha a “urgente reconstrução” de movimentos/classes desmobilizadas/desorganizadas/desmoralizadas … pelo próprio PT! “Mas para que o povo asuma e floresça movimento social e força política que dinamizem a mudança será preciso decisões e empoderamento.” Quê fazer? Por onde iniciar? “A reforma política é vital para a gobernabilidade do novo período, introduzindo institutos tais como a iniciativa popular e o plebiscito revogatório que permitirão, se é que o povo se organiza e conscientiza, pôr peia à ditadura de caciques/coronéis que fazem o Congresso bastião da reação.” A condição “para fazer Dilma embarcar” neste curso de ação “parece pouco provável”, a saber, “a irrupção de uma renovada dinâmica de massas precipitada pelo agravamento da crise geral do capital e enquanto resposta diante da revigorada ofensiva da direita (discreta, mas resolutamente, apoiada por Washington) a alteração da profunda propensão do Estado brasileiro a gestionar as questões públicas ‘de costas para o povo.’ Esta é uma velha tradição …, de raiz profundamente oligárquica, que procede desde a Época do Império, a mediados do Séc.XIX, e que se manteve, com ligeiras mudanças e esporádicas comoções, até hoje.” A escolha semântica não é inocente…

“Nada seria mais necessário para assegurar governabilidade a este novo curso do PT do que o vigoroso advento do que Alvaro García Linera chamou ‘a potência plebéia”, adormecida por décadas sem que o PT se atrevesse despertá-la.” Afora a referência a obra do vicepresidente sulamericano (2010) – versão dos trópicos para a forma multitudinária da teoria de Toni Negri –, a qual não poderemos aprofundar no espaço deste artigo, o conselho político de Atilio Borón soa inspirado pela palavra-de-ordem advinda dos ventos de junho. Aquela; o gigante que dormitava. A citação literária e a voz das ruas não são mais do que ziguezagues diversionistas ou adornos de ocasião à proposta do escriba. Trata-se de se dirigir, simultaneamente, aos palácios e às praças, ao poder e às ruas: aos de cima e aos de baixo. Representante da contestação vis-à-vis à ordem ou representante da ordem face-a-face com a contestação? A pergunta é uma armadilha política. O frentepopulismo de combate – ou a socialdemocracia de esquerda – já foi traduzida, no Brasil dos anos 1990, como «estratégia da pinça». Diz Juarez Guimarães, “a ruptura à ordem burguesa será resultado de um movimento articulado, em pinça, dos trabalhadores sobre o centro de poder burguês – isto é – combinação de avanço sobre a institucionalidade e criação de poder popular.” Continuou Corrêa Leite, “um movimento … que busque o poder tem que se equilibrar entre dois pólos, atuando dentro do sistema […] e fora dele – dentro das instituições […] – e contra elas”. A “estratégia da pinça” foi um passo, decisivo, para que a esquerda socialista brasileira iniciasse o mergulho profundo na institucionalidade do qual nunca mais emergiu. De gabinetes a prefeitura, cargos e verbas, até governos/ministérios. Gerações a fio, trituradas pela máquina de moer gente.

O argumento maior mas não necessariamente melhor de Borón é tal qual uma advertência sobre a geopolítica latinoamericana e o lugar que ocupa o Brasil na semiperiferia do capital e sua ordem mundial. Os amigos de Borón residentes no Brasil, Nildo Ouriques e Gonzalo Rojas, já lhe chamaram a atenção para algumas questões nevrálgicas do debate político brasileiro. A um, o autor lembrou que o Brasil está rodeado por 25 bases militares estadunidenses. A outro, o teórico objetou qual seria a estratégia insurrecional contraposta à ballotage eleitoral e sua razão dualista: “perpetuar a triste irrelevância da esquerda … – no Brasil, na Argentina e em tantos outros países – qual governo oporá menos obstáculos à tarefa de construir uma nova grande alternativa à esquerda dado a capitulação do PT (ou terá menos força para se opor a ela)? Que governo dará as costas a Cuba e Venezuela, Bolivia e Equador, promoverá tratados de livre-comércio com os EUA, acabará com a UnaSUR, Celac etc.?”. O reconhecimento e a intransigente condenação ao monumental fiasco do PT e sua defecção ante às classes dominantes, do Brasil e o Império, para Borón, deve vir junto a seu ‘apoio crítico’ a expensas de fazer-lhes o jogo à direita e ao império. A noite de 31 de dezembro de 1958, às vésperas do triunfo da revolução cubana, é a última carta na manga do autor. As crise do petróleo, estagflação mundial e derrota político-militar no Vietnã deram hora e lugar ao ciclo histórico de ditaduras empresariais-militares em toda América Latina. Não estaria um perigo renovado no ar? A nossa resposta é o decisivo e rotundo ene-a-ó-til: não!

Por fim, brevíssima nota para um jornalismo integral

Em carta à cunhada, A. Gramsci afirmou: “Nunca fui jornalista de profissão, que aluga a sua pena a quem pagar melhor e deve continuamente mentir, porque a mentira faz parte de suas qualificações. Fui jornalista absolutamente livre, sempre de uma só opinião (…).” (12 de Outubro de 1931). Esconder às convicções – para agradar a patrões ou prepostos –, à semelhança de K. Marx, não era a sua opção. Antes de publicar sua Nota de Demissão na Gazeta Renana (de 17 de março de 1843) Marx escreveu, colérico, ao camarada A. Ruge: “É lamentável testemunhar trabalhos servis, mesmo já em nome da liberdade, e lutar com alfinetadas, e não a cacetadas. Estou cansado: da hipocrisia, da estupidez, da autoridade brutal. Estou cansado dessa docilidade, obsequiosidade, recuos e querelas por meio de palavras.” Nada poder-se-ia fazer na Alemanha, dizia o mouro renano, lugar onde falsificar-se-ia a si mesmo. Aqui se faz notar – com força – um pressuposto vital das concepções marxiana e gramsciana sobre jornalismo integral. A liberdade e universalidade da expressão e comunicação humano-social têm necessariamente de configurar o jornalismo – assim como às artes e à ciência – como um fim, e não um meio. A pena a soldo ou a reversão do metiê a um trabalho assalariado seria algo em-si notadamente antijornalístico tal qual romancistas franceses já o observaram. Neste sentido fica cada vez mais clara a unidade entre o Outro-jornalismo reclamado e um Outro-mundo, i.e., a tradução de novo jornalismo/novo mundo.

O portal Lamericas, o blog Convergencia e o saite do PSTU se assemelham ao projeto editorial da Nova Gazeta Renana, de Marx, e o L’Ordine Nuovo, de Gramsci. O que a NGR fez pelas “revoluções quarenta-e-oitescas”, em Alemanha via Marx, e o que o LON foi capaz de vivificar, nos conselhos de fábrica – do bienio rosso –, na Itália através de Gramsci? Mais do quê uma mera República de Letras, essas revistas-tipo aspiram a fazer saltar, do encadeamento de textos, o con-texto efetivo de um novo senso comum teórico e político embasado na elevação intelectual e moral da educação de educadores, inscrita desde as suas teoria marxista e programa comunista. Reconstruir uma alternativa de grande política à esquerda envolve a necessidade vital de colocar de pé uma esquerda que não seja partidária de nenhum governo – Castro ou Maduro, Tabaré e Dilma –, que lute por ideias e não verbas, que ponha campanhas eleitorais a serviço das lutas diretas, e não o contrário: que sonhe mais que calcule. Para fazer isso, uma concepção total de mundo pressupõe a uma concepção integral de jornalismo, especialidade técnica + direção política, o saber-fazer e o fazer-saber. A batalha de ideias não escolhe seus adversários teóricos. Diferentemente do embate militar, a luta de hegemonias entre concepções filosóficas de mundo distintas deve se haver com os campeões mais destacados das tendências combatidas. Somente pelo elo mais vigoroso de cada ideia-força se faz possível avançar o bom combate da luta teórica.

«Um belo dia a Esquerda poderá descobrir que sua vitória parlamentar coincide com a sua derrota efetiva» (itálico original; negrito BdS). Mutatis mutandi, o que era prólogo e nos servia de abertura, em nosso texto anterior ora nos cabe como epílogo, e fechamento, ao presente ensaio. Karl Heinrich Marx – «Primeiro Processo da Nova Gazeta Renana», NGR, fevereiro de 1849 – foi o redator-chefe do comitê editorial do jornal NGR. Da mesma forma Nino Gramsci foi membro ativo do conselho de redação do jornal LON turinense, o que é notoriamente sabido. O início da elaboração extra-acadêmica do jovem Marx na velha Gazeta Renana e a coedição dos Anais Franco-Alemães, com Arnold Ruge, vai ser totalmente marcante para a práxis marxiana. Nos anos iniciados com as revoluções europeias de 1848 Marx sintetizou uma intensa atividade jornalística sendo que, em 1848-50 publicou, com F. Engels, o periódico Nova Gazeta Renana. “O objeto de minha formação inicial era o Direito, ao qual me dediquei como matéria acessória à filosofia e à história. Em 1842-1843, como redator da Rheinische Zeitung, encontrei-me pela primeira vez na difícil obrigação de dar opinião sobre o que sói chamar-se interesses materiais. … roubos de lenha e a divisão da propriedade … a situação dos camponeses de Mosela e, enfim, … livre-câmbio/proteccionismo, deram a razão incial para me ocupar de questões econômicas.” A passagem acima, extraída do Prefácio à Contribuição Crítica da Economia Política (1857), é já o bastante conhecida. Durante a graduação bacherado com habilitação em jornalismo na Unesp recordo-me que tivemos aulas de filosofia e estética com um respeitado marxista acadêmico do Brasil. À época era muito difícil ter aulas com marxistas e isso causou um admirável entusiasmo. Já nos primeiros encontros o trecho supra fez enorme sentido para nosso pequeno agrupamento. O jovem intelectual lukacsiano, em início de carreira, lecionava os textos de juventude de Marx. Sem muita parcimônia, soltou o chiste: “não fosse a filosofia e Marx seria tão-só um jornalista.” Um primeiranista varapau e desengonçado, do fundo da sala, retrucou-lhe com a voz mansa: mas não seria o revés, professor? Se o próprio Karl Marx diz que iniciou à crítica da economia política por meio da atividade jornalística e daí, então, à organização coletiva, no movimento operário… O correto é afirmar, fiel à letra de Karl, “não fosse o jornalismo e Marx seria tão-só um filósofo.”

(Se o fim da filosofia é a realização do proletariado e o fim do proletariado é a realização da filosofia, como afirmam Marx e Engels, a mesma relação pode se estabelecer entre a política e o jornalismo. Um jornalismo integral voltado para uma política socialista, e viceversa, parte de reconhecer o movimento dos trabalhadores como a força social e política autônoma que pode dar a vez e a voz a um jornalismo de hegemonia alternativa. A relação dialética entre razão crítica e revolução proletária ou, em miúdos, o quê se costuma chamar como o nexo de unidade-distinção entre teoria e prática, trata-se na verdade de fazimento histórico do movimento dos trabalhadores em um sentimento, de pertença, comum e uma identidade, coletiva, classista, muito diferente de algo já dado, pronto e acabado. A constante busca por mandatários, dirigentes ou uma referência que possa encarnar à processualidade história da autoemancipação social e política de todos os trabalhadores, a incessante procura pelo quê e com quem se alinhar nacional/internacionalmente, e a cruel perscrutação, ad nauseam / ad infinitum, do quê configura o Mal Menor da hora e lugar pode ser a pavimentação das trilhas para o inferno. Da falsa vitória ao depois real: Alea jacta est!)

Referências

BORÓN, Atilio A. “Brasil, victoria pírrica y después”, Telesurtv.net, Caracas, 27/10/2014.

GARCIA LINERA, Alvaro. A Potência Plebeia. Boitempo Ed. : SP, 2010.

GUIMARÃES, Juarez. “A estratégia da pinça”. Teoria e Debate, SP, Ed. 12, Nov./1990.

LEITE JUNIOR, José Corrêa. “Uma hipótese estratégica para o Brasil”. Revista à Esquerda, 2013, Nº1, SP, p.30.

Lamericas.org. “As esquerdas e a ballotage eleitoral no Brasil”, por Betto della Santa, 23/10/2014.

OURIQUES, Nildo. “Voto e conjuntura no Brasil de 2014”. Blog O Real Não Se Vê, Florianópolis, 23/Out./2014.

MARX, Karl. Prefácio à Contribuição Crítica da Economia Política. 1857, Paris, v/e.

SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. “Assédio Eleitoral”. Blog Convergencia, SP, 26/Out./2014.

TROTSKY, Leon. “Bonapartism and Fascism”. The New International, v.1, Nº2, Aug./1934. Disponível em: <https://www.marxists.org/archive/trotsky/germany/1934/340715.htm>.

 


[1] Lamericas.org. “As esquerdas e a ballotage eleitoral no Brasil.” Betto della Santa. 23/10/2014. Disponível em: <http://www.blogsintese.com.br/2014/10/as-esquerdas-e-ballotage-eleitoral-no.html>. Republicado no site do PSTU.

[2] Vitória de Pirro – ou vitória pírrica – é uma expressão usada para descrever conquistas obtidas a altíssimos custos. É uma alusão ao Rei Pirro, cujo exército havia sofrido perda irreparável, após a Batalha de Heracléia, em 280 a.C., e na Batalha de Ásculo, em 279 a.C., durante a Guerra Pírrica, contra os romanos. Da arte militar à ciência política se trata de mais um dos termos originados em campos de batalha e transpostos para o cenário atual da política moderna.

[3] TROTSKY apud Deutscher, Isaac. The Prophet Outcast 1929-1940. Oxford : Oxford University Press, N.º 2, p. 19.