Jorge Luiz Souto Maior
Os trabalhadores têm sofrido os males do denominado “choque de gestão empresarial”, que, baseado no argumento da necessidade competitiva, procura extrair maior produtividade no trabalho por meio da imposição de metas, quase sempre impossíveis de serem cumpridas. Tudo se faz ligado a uma estratégia que é de fato a de não permitir que os trabalhadores percebam que se trata na verdade da continuação da mesma lógica extrativa de mais valor relativo de sua “força de trabalho”, trazendo como benefícios paralelos, e talvez de forma ainda mais importante, o reforço da alienação e da reificação.
Ao se transferir para o trabalhador a responsabilidade plena pelo seu destino na empresa, visualizado a partir de sua aptidão para entregar a quantidade de serviço esperado, estimula-se uma atitude individualista e ao mesmo tempo concorrencial, vez que sua produção é posta em comparação com outros empregados submetidos às mesmas metas.
Para criar a aparência de um trabalho coletivo, os empregados são divididos em equipes, que também são comparadas a outras. Assim, cada membro se vê responsável pelo futuro de seu colega de equipe e sobre todos se debruça o peso do sucesso do empreendimento.
Ou seja, os trabalhadores são fragilizados e assim são mais facilmente explorados porque têm menor possibilidade de compreender o contexto do processo de trabalho, sobretudo depois que, historicamente, lhes foi retirado o poder do conhecimento tecnológico.
Na realidade atual do processo de produção operou-se a transferência para os trabalhadores do risco que é próprio do empreendedor.
Além de uma postura individual, os trabalhadores assumem a posição do capital, cobrando produção uns dos outros, o que facilita, sobremaneira, a tarefa dos chefes de equipe, do capitalista e do sistema produtivo como um todo.
Dentro da estratégia de gestão incluem-se táticas de dissimulação, como a difusão de que a empresa se preocupa com os Direitos Humanos e o bem-estar de seus empregados, que passam a ser chamados de “colaboradores”, para que não se vejam como explorados. Em contrapartida pelo cumprimento das metas oferece-se aos trabalhadores a promessa do recebimento de prêmios, sempre acompanhados de planos de saúde, notadamente para tratamentos psicológicos.
Tática importante neste contexto é a de vez por outra elogiar o trabalho do empregado, sem deixar de fazer menção à necessidade de que aquele resultado continue sendo alcançado, fazendo com que a “conquista” nunca tenha, de fato, um efeito conclusivo.
Tudo isso vem acompanhado do terrorismo da eterna crise econômica do capital, que deixa todos os trabalhadores sob constante ameaça do desemprego. “Mostrar a porta da rua” aos trabalhadores e, sobretudo falar da realidade daqueles que lá estão, é uma tática relevante para manter o rebaixamento moral dos trabalhadores, facilitando a submissão, que, sendo economicamente necessária, pode atingir padrões de maior perversidade, que permite ao empregador exigir metas mediante a mera promessa de preservação do emprego, que pode, até, se desenvolver com o desrespeito abertamente assumido dos direitos trabalhistas, vistos, despudoradamente, como encargos que dificultam a vida da “coitada” da empresa, que se apresenta como uma entidade que tem “responsabilidade social” porque cuida do meio-ambiente e que faz um grande bem para a “sociedade” – este ente abstratamente concebido e que quase sempre é referido para justificar repressões à classe trabalhadora – ao “dar empregos” e estimular o desenvolvimento econômico, ainda que sua lógica seja sempre a de privatizar os lucros e compartilhar os prejuízos.
Neste contexto, o sistema produtivo capitalista se apresenta como benfeitor, sem defeitos, dissimulando-se por completo a origem da reprodução do capital.
A conseqüência de tudo isso é que as análises em torno dos problemas sociais e econômicos são transferidas para os organismos produtivos e destes para os trabalhadores, onde, de fato, estaria a causa das patologias, tanto pessoais quanto sociais, sendo que apenas nesse momento e para essa finalidade, de serem culpabilizados, os trabalhadores são humanizados.
Esse é contexto no qual os ambientes de trabalho produzem, de fato, relações baseadas em assédio moral, que se apresenta como a pressão psicológica dissimulada, organizada estruturalmente, para dificultar a compreensão do processo produtivo e destruir toda forma de resistência dos trabalhadores, que restam fragilizados e desprovidos de auto-estima, sendo que quanto mais eficientes forem os métodos utilizados menor será a possibilidade de percepção do processo, que chega a atingir o ponto de o próprio trabalhador se declarar culpado pela situação, que não raramente se completa com a aquisição de doenças graves e, no extremo, pelo suicídio.
O que isso tem a ver com a recente eleição presidencial? Tudo!
Comecemos pelo fim. Qual o resultado concreto do processo eleitoral? O que se viu ao final foi uma distensão muito grande entre as pessoas, chegando mesmo a dividir famílias. Neste sentido pode-se perceber que foi eficiente a tática de transferir para os eleitores a responsabilidade pelos problemas do país, como se votar em um candidato ou outro tivesse o efeito de avalizar tudo que estes, ou seus Partidos, fizeram ou prometem fazer.
Para que as pessoas assumissem tal postura foi desenvolvida uma campanha midiática sem precedentes de um convencimento tal que na verdade cumpriu o papel de tornar cada eleitor uma espécie de cúmplice dos erros cometidos pelos governantes – já que os dois candidatos já assumiram essa posição e representam Partidos que estão no poder.
Foi assim, por exemplo, que os eleitores, dependendo do lado adotado, foram forçados a assumir para si lógicas das propagandas eleitorais, como as de que corrupção não é tão importante se algo de bom se fez; que corrupção não é grave, pois sempre existiu; que só é condenável a corrupção que os outros fazem; que o que se fez no passado não importa; que os erros do presente são irrelevantes diante das promessas para o futuro; que o desemprego é um problema de gestão (e não de estagnação do capitalismo); que o assistencialismo social é solução para o capitalismo (ou que o assistencialismo é a causa dos problemas do capitalismo); que o desenvolvimento econômico é uma questão de ajuste fiscal; que a troca dos governantes é essencial para a realização de mudanças (ou que a manutenção dos governantes é primordial para dar continuidade ao processo de mudanças que o país precisa) etc…
Discussões desenvolvidas na órbita da aparência, sem adentrar temas cruciais do debate para compreensão do modelo de sociedade, como, por exemplo, os que dizem respeito ao processo de produção (tratando, sobretudo, da questão da terceirização); à participação dos trabalhadores na renda produzida; à distribuição da riqueza; e, sobretudo, à titularidade dos meios de produção…
Os debates, desenvolvidos na linha da aparência, serviram, portanto, para dissimular a concretude dos problemas do capitalismo – que é, queiramos, ou não, gostemos, ou não, o modo de sociedade em que nos inserimos. A atuação política, que seria essencial para a produção do conhecimento e para a formação de convicções, ainda que relativas, serviu só para gerar preconceitos, ódios cegos e divisões fundamentalistas, baseadas não em argumentos, mas em factóides, em montagens e em versões parciais dos fatos e da história, que chegaram ao ponto de táticas de terrorismo bestializadas, tais como, “se o PT ganhar o Brasil vai virar Cuba”; “se o PSDB ganhar vai voltar o neoliberalismo da década de 90”; “que o PT está promovendo uma revolução socialista” (encarando-se isto de forma positiva por alguns e negativa por outros) etc.
A produção intelectual foi trocada pela arte do disfarce, conforme revelavam, a cada dia, de forma extremamente pertinente, as crônicas de José Simão na Folha de S. Paulo.
Dentro do contexto da dissimulação eleitoral, muitos eleitores se viram obrigados a assumir posições sem consciência e sem convicção. Viram-se, ainda, na contingência de expressar, publicamente, apoio a um ou a outro candidato, com desprezo da racionalidade, pautando-se unicamente pela lógica do mal menor, fingindo irrelevantes aspectos negativos que, em outro contexto, seriam muito graves, isto quando não, incorporando a lógica da dissimulação, aderiram a um lado, sem revelar os verdadeiros motivos. E, perceba-se, a expressão é esta mesma, “adesão”, vez que falidos os processos de construção democrática, participativa e coletiva, das diretrizes partidárias.
No geral, o processo eleitoral pretendeu nos tornar mais desinformados e mais distantes de análises imanentes, o que, no fundo, talvez seja mesmo a função da democracia burguesa.
Lembre-se, a propósito, o quanto os candidatos fizeram questão de pontuar suas falas na primeira pessoa, “eu”, vangloriando-se do que fizeram e destacando o que farão, se eleitos fossem, mas sempre em questões periféricas e com certo desprezo até mesmo à própria democracia, vez que se referiam a instituições que não criaram sozinhos e que não poderão criar sem as vias democráticas formalmente institucionalizadas, ao mesmo tempo em que, nas questões relevantes, despessoalizavam o discurso, dizendo que promoveriam um “amplo debate” com a “sociedade” a respeito.
Essa forma de diálogo serviu também para potencializar a fragilização da cidadania, que se viu reduzida a uma participação indireta no ato simbólico do voto, posto eletronicamente no contexto de um processo dissimulatório, correspondendo, no campo das relações de trabalho, que é central nesse modelo de sociedade, a um roubo do protagonismo da classe trabalhadora, ou, mais propriamente, da luta de classes, e pretendendo, por consequencia, o esvaziamento da relevância da ação política direta, como se verificou nas mobilizações de junho de 2013 e como sempre se vê nas greves dos trabalhadores.
Pois bem, passado o massacre da eleição, que neste sentido pode ser identificado mesmo como um assédio eleitoral, é hora de retomar o processo de construção da consciência em torno da lógica supressiva da condição humana a que todos estão submetidos no modo de produção capitalista, que se impulsiona pelo consumismo, pela concorrência, pela aparência (física e cultural), pela padronização, pelo individualismo, pela submissão, pela fragilização subjetiva, pela inviabilização da ação coletiva, pela desinformação, pela dissimulação, pela banalização da injustiça e pela repressão…
Ao contrário do que o assédio eleitoral tentou induzir, a racionalidade humana não deve ser conduzida pelo mal menor e os problemas da realidade social não decorrem de “defeitos intrínsecos” pessoais, situando-se, isto sim, em um modelo de sociedade que precisa ser questionado abertamente, com honestidade intelectual e coragem, dada a inafastável angústia que o processo de desalienação resulta.
Não se trata, aqui, de falar da relevância dos laços familiares, do amor ao próximo, ou coisa que o valha. Aponta-se, isto sim, para a emergência de, curado o trauma da eleição, superar, de uma vez por todas, o momento histórico dessa aparente dicotomia entre o PT e o PSDB e das cargas dissimulatórias que trazem, para passarmos a discussões concretas do modo de produção da sociedade capitalista, pois este é, afinal, o método necessário que a classe trabalhadora possui para se identificar enquanto tal e, assim, lutar contra o assédio estrutural a que está submetida.
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