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TEORIA

Não é somente com batalhas campais que se luta uma guerra

Diego Braga

Como professor de literatura e escritor amador (no sentido de amar o que faço), talvez surpreenda-se o leitor com uma confissão minha: quase via de regra, detesto ler crítica literária. A ojeriza surge normalmente diante daquela de tipo mais comum, acessível e clara, encontrada nos jornais e revistas de grande circulação e determinando as escolhas dos organismos paralelos do mercado editorial: os prêmios e feiras literárias. Com frequência, também tenho asco diante da irmã mais nova da crítica literária porta-voz das editoras, ou seja, a menina mais problemática, com mais personalidade, mais escolarizada e também mais pobre materialmente que é a crítica acadêmica expressa nos Estudos Literários. É também nesta última que encontro quase todas as exceções, as valorosas e valiosas críticas que valem a pena ler. Estas são, em todo caso, muito raras. Sobretudo quando comparadas à imensa massa de papel, de tinta e, hoje em dia, de megabites produzida tanto pelos que praticam a crítica como arautos extraoficiais do mercado editorial na grande mídia quanto pelos pesquisadores das faculdades de letras do país, ansiosos por situarem-se bem em meio à lógica produtivista subjacente aos critérios quantitativos de avaliação da produção acadêmica do país. A qualidade, neste quesito, sempre foi tratada pelos governos como um detalhe.

Ambas as ramas da crítica literária, plantas bastante adequadas para monocultura de latifúndio no solo brasileiro por razões históricas diversas, também são ervas daninhas em nível mundial. As contradições em que elas se encontram emaranhadas e que as atravessam manifestam-se, com variações de foco e intensidade, onde quer que estas duas formas de crítica existam no mundo, este grande mercado global em que também se vende cultura e literatura. Obviamente, o mercado editorial brasileiro é bastante modesto se considerado no quadro de sua população absoluta e de seu peso econômico. Ainda assim, tem relevância. É o 9º do mundo, muito embora isto seja pouco para a quinta economia do planeta. Tal como a crítica de mercado, a crítica acadêmica também é representativa na vida cultural nacional, feitas as ressalvas cabíveis para um país com ilhas de vegetação universitária em meio a vastas planícies de analfabetismo funcional.

Como porta-voz do mercado editoral, o debate acerca da literatura é um dos elementos fundamentais em que se sustenta o sistema de vendas das obras, de prestígio e desprestígio dos autores e de distribuição de fatias do mercado através das premiações. Além de alavancar o lucro das grandes editoras e dar estofo cultural para conversas em jantares e eventos sociais da classe média alta para cima, esta crítica também traça os limites da sociedade literária, determinando quem está dentro e quem está fora. Precisa, evidentemente, sustentar o mito da mobilidade social democrática, de modo não muito diferente de sua contraparte no mercado de trabalho, incorporando alguns membros oriundos da classe explorada e dos setores oprimidos, o que tende a camuflar a exclusão sistemática da maioria dos indivíduos daquela classe e destes setores.

Nestes marcos, o condicionamento de classe é mais claro. A rigor, cabe até evidenciá-lo. Lidando com a literatura como uma preciosa, única, universal, humana, esteticamente elaborada e profundamente existencial mercadoria, a crítica que dinamiza o consumo dos produtos da indústria editoral não se diferencia muito dos ditames das tendências da moda sobre o jeito de se vestir com “bom gosto”. Ocorre que o produto em questão, a literatura, requer o uso do cérebro para ser consumido, não bastando um corpo. É um produto que, pelo menos em tese, confere ao seu consumidor os fumos de um QI alto. Quiçá por isso não seja o seu consumo criticado como futilidade, pois trata-se de cultura e mais, de Alta Cultura. Literatura com “L” maiúsculo devidamente incensada pela intelectualidade crítica, por sua vez ungida como porta-voz da cultura oficial. A leitura de livros requer tempo livre e presume boa escolarização. De fundo, fica demonstrado que a leitura de certos livros pode funcionar socialmente como afirmação de um status social e do “bom gosto” correspondente, evidente também no terno Armani, na escolha dos melhores vinhos, do melhor charuto e da decoração apropriada da casa.

Já a crítica acadêmica sofre de uma neurose de infância. Quando nasce, toda disciplina precisa estabelecer de modo minimamente objetivo qual o seu campo e qual o seu método de estudo. Ora, a literatura não é um campo delimitável objetivamente. Não apenas porque o que é literatura digna de leitura e de estudos para uns pode não ser para outros, mas porque o que é considerado socialmente como literatura é condicionado cultural, histórica e politicamente. O livro “Cultura Letrada”, de Márcia Abreu[1], é muito interessante no que tange esta questão. A autora conduz uma lúcida discussão sobre os contrastes entre leitores de “alta literatura” e leitores de literatura “comercial”, mostrando que há muito pouco de objetivo e nada de universal no juízo estético. O juízo estético é expressão de valores sociais e pessoais. Não apenas o juízo estético, como também a própria obra ajuizada. Costuma-se afirmar, nas discussões mais lúcidas sobre o tema, que a literatura “reflete” ou “contém” ideologias, quando na verdade é muito mais que isso. Afinal, se assim fosse, se a literatura refletisse ou contivesse ideologias, de certa forma a literatura em si estaria fora do campo da ideologia, uma vez que ela o refletiria como algo alheio, ou o conteria como algo que é apenas parte uma parte de si. A verdade, porém, é que a própria literatura é, ela mesma, ideologia. Em outras palavras, o que é e o que não é normalmente tido como literatura em uma determinada sociedade faz parte da constelação que forma a ideologia dominante desta sociedade. Há muito pouco de objetivo no “objeto literário” e nos métodos recomendados para sua abordagem.

Ainda assim, os Estudos Literários existem como disciplina acadêmica, para a tristeza de alguns jovens excêntricos que ingressam no curso de Letras porque adoram Gramática. Até quando os governos brasileiros pagarão gente para ler romances e poemas e falar sobre eles, não se sabe. Muitos críticos já vaticinaram a morte da Literatura, diante dos e-books. Escutam na gritante indigência estética das massas educadas pela indústria cultural os estertores da Alta Cultura, não os do capitalismo. Como é verdade que se fez semelhante alarde quando do surgimento do cinema e, antes disso, do livro de bolso e, antes dele, da imprensa industrial, nós, professores, escritores e amantes da literatura, podemos ficar despreocupados por ora. Ficaremos desempregados por cortes de verbas, não por falta de demanda. A verdade é que os Estudos Literários seguem fortes porque têm um papel fundamental na sociedade, como renovadores e perpetuadores de valores e instituições importantes, que têm certo peso na hegemonia de classes mesmo num país de parco letramento como o Brasil. Reconhecer este papel não implica ignorar que, no seio da crítica acadêmica e, em menor escala, até mesmo na crítica de mercado, haja movimentos e linhas de força alternativas e, mais raramente, dissidentes ou contra-hegemônicas.

Majoritariamente, como área especializada, com seus jargões, suas polêmicas internas por vezes altamente herméticas e suas formalidades pseudocientíficas, em parte a crítica acadêmica se enclausura numa torre de marfim, tornando-se o debate sobre literatura assunto de interesse quase exclusivo de estudiosos da área. No máximo, também de alguns escritores que são, além de escritores, pasmem: estudiosos da área. Aprendi a desconfiar de críticos que tornam a discussão sobre literatura um tema cabalístico tanto quanto de políticos que obscurecem as suas posições ao discursar. Em geral, ambos tem muito pouco a dizer ou defendem ideias tenebrosas, que melhor ficam se incompreensíveis para a maioria de nós.

Na medida em que se empenha em ser assunto restrito a especialistas, a Literatura precisa estar configurada como um objeto, ainda que ao preço de muita fumaça metafísica para borrar a silhueta ideológica do suposto objeto. O tratamento da literatura como objeto autônomo, infenso à luta de classes, aproxima a vertente acadêmica dos Estudos Literários à crítica que funciona como relações-públicas do mercado editorial. Não à toa, ambas comumente hostilizam a defesa de uma perspectiva de crítica literária politicamente informada e direcionada. Em termos teóricos, o carro-chefe de tal hostilização é a premissa de que a cultura e as artes de um modo geral habitam um terreno onde aflora a realização daquilo que há de universal e eterno no homem. Em outras palavras, a crítica comercial ou acadêmica em suas mais corriqueiras variedades opera sobre o pressuposto de que a literatura, ou melhor, a Literatura, é um terreno onde a humanidade não está cindida em classes sociais, nem em raças, gêneros, sexualidades e nacionalidades.

O que, de certa forma, é até bem verdadeiro. Se levarmos em conta o que é a Literatura, com “L” maiúsculo – o cânone consagrado das Grandes Obras, produzidas pelos Grandes Homens –  veremos que ela é quase exclusivamente de uma raça, a branca, de um gênero, o masculino, de uma sexualidade, a heterossexual, de uma classe, a dominante, e de uma só nacionalidade por sobre as possíveis nacionalidades oprimidas. Não apenas seus autores, mas também seus leitores, seus personagens principais, os valores veiculados e as línguas em que são escrita as Literaturas com “L” maiúsculo. Isso, não apenas no Brasil. Portanto, querer dizer que a discussão sobre literatura não deve envolver questões de classe é uma forma de se esquivar teoreticamente de qualquer menção explícita à classe que domina a literatura (e a cultura em geral), ocultando assim esta dominação. Não falar de raça, por exemplo, considerando um absurdo o uso do termo “literatura negra” no Brasil, é uma forma de desqualificar qualquer discussão que evidencie que a literatura canonizada no Brasil é quase totalmente branca. É também uma forma de negar o sentido da obra de uma poetisa do quilate de Miram Alves, por exemplo, que se reivindica uma escritora de literatura negra. Assim o argumento segue, passando por gênero, sexualidade e nacionalidades oprimidas.

O empenho por uma crítica literária que articule forma estética e processo social, mostra-se, neste horizonte, uma luta política de grande importância, que pode insuflar valor de uso no debate sobre literatura. Insuflar valor de uso em uma luta política no terreno da cultura, por sua vez, é considerado pelo pensamento que informa a crítica majoritária da academia e sua variedade mercadológica como a mais diabólica das heresias. Alega-se representar esta postura a violência do esquecimento da arte em nome da política, a morte da cultura como arte, substituída pela propaganda e assim por diante. Os que recitam tais mantras da religião estética tentam converter quem os ouve à crença de que toda crítica política marxista é jdanovismo encubado. Jdanov foi o lacaio cultural de Stalin que esteve à frente da confusão proposital de uma proposta de cultura politicamente informada e direcionada, própria dos revolucionários, com uma cultura burocraticamente controlada e oficializada como braço ideológico da contrarrevolução.

Entre cultura e política existem diferenças e identidades. A tarefa da crítica deve ser evidenciar tanto umas quanto outras. Não se pode no cumprimento desta tarefa entrar no beco em que se meteu certa crítica de orientação supostamente marxista, marcada por visões mecânicas e não dialéticas do materialismo, que consideravam a expressão literária como superestrutura que refletiria mais ou menos diretamente a realidade material. Qualquer leitura pouco minuciosa de uma obra como Grande Sertão: Veredas, por notável exemplo, é suficiente para desbancar o materialismo mecanicista. Com base neste, desqualifica-se a crítica marxista como um todo e não apenas sua versão vulgar. Eu mesmo fui vítima disto na academia. O fato é que submeter a cultura aos ditames do partido único é uma violência tão grande quanto deixá-la reger-se pelas leis do mercado. Se por um lado subentende-se, na cantilena cultural da estética burguesa, uma antinomia ilusória entre literatura e política, por outro lado, no hino da cultura stalinista, a literatura é mostrada como uma emanação direta da política oficial. Ambos os extremos são perigosamente ideológicos, no sentido negativo do termo.

Em suma, o que é preciso debater são os parâmetros de uma crítica política que não deixe de ser a crítica de uma prática cultural específica, capaz de evidenciar as linhas constitutivas e distintivas da obra literária de modo minucioso e específico. Capaz, igualmente, de problematizar o conceito de literatura e o cânone, em nome do que a história literária dos vencedores calou e cala, bem como em compromisso com a construção de uma sociedade mais livre. Portanto, de uma sociedade na qual a literatura possa existir como prática cultural para todos que dela queiram participar. Enfim, uma crítica que reconheça que em literatura a política está na forma expressiva tal como no conteúdo expresso. Almeja-se a uma crítica capaz de lidar tanto com a autonomia relativa da arte em relação à política quanto com a autonomia relativa da arte em relação à política. Não se pode confundir crítica política com a crítica que se limita a classificar a literatura segundo categorias gerais ou que utiliza as obras literárias como ilustrações ou motes para discutir assuntos “propriamente políticos”. Tampouco com a crítica que trata a literatura como mero reflexo superestrutural, mais ou menos direto, de uma superestrutura tomada como algo dado.

E isto não basta. Uma crítica política que tenha valor deve ir além da mediação entre as obras e os leitores. Deve se diferenciar da crítica acadêmica majoritária e da crítica de mercado também neste ponto, porquanto a crítica como mediação não transcende, por si, os limites do que vou chamar aqui de uma “propedêutica do consumo”. Uma das marcas características das vertentes de crítica literária mais comuns que viemos discutindo e, em boa parte, também de algumas tendências que manifestam resistência a tal hegemonia é que elas se limitam a orientar e estimular o público para a recepção/consumo das obras. Ou seja, trata-se de explicar os mecanismos das obras literárias para viabilizar ou ampliar-lhes a compreensão enquanto objetos, no caso da crítica acadêmica, ou de comentar suas qualidades para estimular-lhes o consumo enquanto valor de troca, no caso da crítica de mercado.

Em ambos os casos, a obra é um objeto consumido por sujeitos, que são os leitores. A leitura, tratada como consumo, é vista como uma atividade individual isolada, tal como se acredita ser a produção do objeto literário pelo escritor. Nestes limites, qualquer eventual declaração de que a literatura, como toda manifestação cultural, não é apenas um reflexo superestrutural da vida social objetivado em obras a serem consumidas tende a ser mera petição de princípio. Ir além da propedêutica do consumo permite a crítica não apenas afirmar, mas demonstrar que a literatura é uma prática social, no sentido de ser parte da produção e da reprodução do modo de vida dos homens em sua interação social. Uma crítica literária politicamente informada e direcionada deve adrede se ocupar e se colocar como participante desta prática social, como um dos elementos necessários a esta prática, e não apenas como uma atividade de explicação ou de valoração do objeto para o consumo do sujeito individual. Como propedêutica do consumo, a atividade crítica invisibiliza a prática na qual o objeto “obra literária” existe dinamicamente, produzido e reproduzido por sujeitos sociais cuja ação influi nos rumos e constitui o teor de tal prática. Esta prática é mais conhecida como política. Não é por não ser este aspecto da prática política o mais decisivo na luta pela emancipação da humanidade que devemos entregá-lo de mãos beijadas ao inimigo de classe. Marx, se ele pode nos servir de exemplo neste assunto, no círculo de trabalhadores que fundou em Bruxelas reservava um dia na semana para a discussão de literatura e teatro.

Concluindo, porquanto veiculada como propedêutica do consumo de um objeto inerte, a discussão sobre estilos, gêneros, temática, estruturas, movimentos e escolas, interessantíssima para um apreciador de literatura, perde todo o valor e quase todo o sabor, desprovida de qualquer densidade, própria da dinâmica social. A crítica da obra literária como um objeto isolado da vida social, supostamente elevado acima dos conflitos reais, circulando em torno de uma humanidade genérica e abstrata, teria o mesmo valor dos elétrons que pudessem existir em um átomo sem núcleo, girando em torno do vazio. Ademais, o problema não está apenas no fato de que o poder de abrir horizontes e de intensificar experiências se perde quando a discussão sobre a forma literária é feita como propedêutica para o consumo. Outro grande motivo para evitar esta forma de crítica é que, discutida e estudada como objeto, assunto restrito a especialistas, ou como mercadoria, escamoteia-se o fato de que tanto a literatura quanto qualquer forma de se a tratar criticamente são práticas condicionadas por critérios de classe, de raça, de nacionalidade, de gênero, etc. Portanto, a literatura, ao contrário do normalmente se afirma, não é uma forma de se escapar dos conflitos mundo, nem apenas uma forma de vesti-los ou desnudá-los. É uma forma de participar deles e influenciá-los, embora talvez seja mais semelhante a uma série de escaramuças que à grande e decisiva batalha campal de uma revolução de massas.

 


[1]ABREU, Márcia. Cultura Letrada. São Paulo: UNESP, 2006.

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