Diego Braga
1. A tradição oral e o domínio otomano
Os romances do albanês Ismail Kadaré são material privilegiado para a compreensão das potencialidades e limitações políticas da prática cultural literária. Isso se deve ao grau de elaboração e à forma como sua obra se insere no quadro histórico, cultural e político do seu país e da contemporaneidade. Por mil anos, entre o cisma do Império Romano e a queda de Constantinopla, a Albânia marcou os limites aproximados entre o oriente e o ocidente, função geopolítica e cultural que continuou desempenhando durante o domínio otomano logo em seguida. Foi também o limite sudoeste entre o bloco soviético o capitalismo europeu. Influenciada por nações e Estados vizinhos poderosos, a Albânia tem heterogeneidade cultural notável, que se aprofunda pelas divisões internas. Desde o século XV o território albanês se divide em três esferas culturais, linguísticas e religiosas: a turca muçulmana, a grega ortodoxa e a católica “latina” (ELSIE, 2006: 283). Os albaneses habitam, em sua maioria, os territórios atuais da Albânia, do Kosovo e da Macedônia, e minoritariamente o Montenegro, a Sérvia e antigos assentamentos no sul da Itália e na Grécia.
Entre o século XV e o início do século XX, quase todo os territórios balcânicos habitados por albaneses estiveram sob domínio dos otomanos, que proibiram o uso escrito do albanês. Assim, o conto folclórico e a epopeia oral permaneceram fortes como matriz cultural albanesa que ainda hoje expressa a resistência diante da força homogenizadora das formas cultuais do capitalismo tal como ao longo história diante das diversas ameaças de dominação por outras nações e Estados (ELSIE, 2008: 23). Esta tradição fornece até hoje conteúdos e formas que nutrem a inovação da literatura propriamente dita. Notável é sua heterogeneidade: as estórias incorporam elementos dos diversos povos – turcos, gregos, eslavos – com que os albaneses se relacionaram ao longo de sua história (ELSIE, 2001: 5).
Além de nutriz de inovações, a tradição oral é uma força cultural conservadora. Na Albânia ainda sobrevive até hoje a tradição de ouvir os rapsodos cantando as baladas e canções tradicionais, costume que talvez remonte aos tempos de Homero. Tal ligação foi evidenciada principalmente por PARRY (1987) e LORD (2005) que, em contato com rapsodos no contexto da cultura ágrafa da Bósnia e da Albânia no início do século XX que cultivavam a capacidade de cantar épicos durante horas, analisaram as gravações de diversas “variantes” da mesma epopeia chegando à compreensão dos mecanismos da poesia oral épica, em que a interpretação não pode ser separada da criação. Pode-se dizer, com segurança, que os rapsodos albaneses são os últimos remanescentes de uma antiquíssima tradição épica europeia passada de geração em geração (ELSIE, 2003: 8).
Em contraste com a vigorosa tradição oral, os frutos da literatura foram arrancados ainda imaturos até recentemente. O fluxo das primeiras manifestações literárias dos séculos XVI e XVII – com destaque para o Missal de 1555 do monge Gjon Buzuku, personalidade histórica ficcionalizada como narrador em A Ponte dos Três Arcos, de Kadaré – sucumbiu diante da invasão otomana (ELSIE, 1996: 1). Aos poucos, no entanto, autores albaneses muçulmanos voltam-se para sua língua nativa como meio de expressão literária (ELSIE, 2006: 287) e, no século XIX, surge o movimento de renascimento nacionalista da literatura albanesa (chamado Rilindja) no contexto da luta pela libertação do país do domínio do então decadente Império Otomano, apesar de muitos dos escritores envolvidos serem albaneses com fortes laços com a cultura e até mesmo com o Estado Otomano (ELSIE, 2006: 290-2). Contraditoriamente, o avanço representado por esta luta se manifesta numa linguagem que retoma tradições arcaizantes (ELSIE, 2007: p. 335) transformadas em linhas de força que impulsionam o desenvolvimento da consciência de uma nacionalidade oprimida.
A literatura relativamente autóctone que surge com a Rilindja, porém, logo é suprimida. No início do século XX, entre o fim do Império Otomano e o início da Segunda Guerra Mundial, a cidade de Shkodra tornou-se o centro de uma literatura formalmente mais elaborada sob influência da Áustria, como parte do projeto educativo dos jesuítas e franciscanos (ELSIE, 1996: 2-3). Então, dá-se a instauração do socialismo burocrático de tipo stalinista na Albânia, regime no qual e contra o qual vai florescer a obra de Ismail Kadaré.
2. A literatura no Estado operário burocratizado.
Uma das evidências do potencial revolucionário da literatura, que contraria certo senso comum de que esta é politicamente inócua, é a importância atribuída por regimes políticos totalitários à censura de certas formas literárias. O caso da Albânia é muito sugestivo. Com o advento do socialismo, o primeiro ministro da educação e da cultura do regime albanês, Sejfullah Malëshova adotou uma postura liberal e permissiva no âmbito da política cultural e foi logo acusado de um desvio “oportunista” pelo ditador Enver Hoxha. Malëshova sobreviveu apenas por ter feito voto de eterno silêncio e aceitado passar o resto de sua vida como um humilde estoquista. Os escritores e intelectuais que não deixaram o país em 1944 tiveram todos destinos semelhantes ao do ministro: morte, trabalhos forçados e/ou exílio interno (ELSIE, 1996: p. 4).
Nos anos 50, com a integração da Albânia ao bloco soviético, os ditames culturais do Realismo Socialismo se impuseram (ELSIE, 2006: 297). Muitos autores, negando-se a praticar a literatura “oficial” eram impedidos de publicar. Outros adaptaram sua obra – muitas das quais plágios descarados de obras soviéticas – às exigências do regime, de que resultaram grande uniformidade e consequente pobreza na produção literária do país no período. O didatismo e a filiação ideológica eram impostos à revelia das qualidades literárias. Os temas recomendados incluíam a luta pela libertação nacional, a celebração dos avanços do socialismo e outros assuntos ligados a um oficial e oficioso “marxismo” (ELSIE, 1996: 5-7).
Em 1961, a Albânia rompe com a URSS e um grupo de poetas, que incluía Kadaré (além de escrever romances ele é autor de vários livros de poemas), aproveita a consequente flexibilização do cânone de origem soviética para transgredir algumas de suas imposições, sofrendo com a oposição de escritores “celebrados” pelo regime e com a rigorosa censura punitiva, posterior à publicação, e não preventiva, anterior à publicação. Uma obra costumava passar por dez (no caso de poesia) e até por mais de trinta (no caso de teatro) examinadores ligados ao regime depois de publicada (ELSIE, 1996: 7-8, 22). Talvez não seja à toa que tenha surgido este movimento de renovação justamente na poesia, que é um gênero no qual o conteúdo tende a ser expresso mais metaforicamente, a linguagem, a ser mais elaborada e o sentido, a não ser muito explícito.
No início da década de 70, Hoxha inicia uma repressiva e sangrenta campanha contra as tendências “liberais” e estrangeiras na cultura que durou até 1978, com auge entre 1973-75. O terror foi proporcional ao das grandes purgas de Stalin nos anos trinta. Novamente, o vigor literário da Albânia foi tolhida: medo inibia a ousadia dos autores ou os levava a uma humilhante exaltação do regime. As amarras culturais permanecem apertadas até a queda do regime no início dos anos 90 (ELSIE, 1996: 9-11)
3. Ismail Kadaré e o Realismo Socialista
Ismail Kadaré começou escrevendo poesia nos anos 50 sob influência de poetas russos como Yevtushenko e Voznesensky. Esta influência é significativa, pois estes poetas aproveitaram a limitada “liberdade artística” do período de Kruschev para fazer uma arte crítica ao regime em plena vigência do Realismo Socialista. O mesmo vale para Kadaré, pois há aspectos de Realismo Socialista em alguns de seus melhores romances (COX, 2005)[1]. Desde o início de sua carreira Kadaré pôde ousar mais que seus compatriotas colegas de pena. Ele gozava de uma relação mais próxima com Enver Hoxha (MITCHELL, 1990), também nascido em Gjirokastra , mas a relativa “boa situação” de Kadaré no regime de Hoxha se devia não à sua colaboração com ao governo, mas graças à fama internacional precocemente atingida (ELSIE, 2005:167) e ao fato de ele realizar o Realismo Socialista de forma muito criativa, com conflitos e resistências, mas em geral procurando fazer com que alguns de seus romances, sobretudo os iniciais, fossem “aprováveis” pelo regime (cf. PIPA, 1991).
O ex-diretor dos arquivos do Estado na Albânia, publicou documentos revelando punições do regime a Kadaré, que teria passado um período em “internação” (isolamento no interior) por conta da publicação do poema “Os Paxás Vermelhos”, e acusações de cunho ideológico e estético. O nome de Kadaré estava quase sempre envolvido nas discussões sobre a linha do partido para a cultura e os desvios ideológicos da arte (SINANI, 2006, p. 25). Seu primeiro romance escrito enquanto ainda completava os estudos em Moscou foi retirado de circulação logo após a publicação de suas trinta primeiras páginas num jornal albanês (cf. SINANI, 2004).
Contrabandeando manuscritos para publicá-los na França, Kadaré obtém fama internacional com o aclamado O General do Exército Morto, que narra a incursão de um general italiano à Albânia do segundo pós-guerra, acompanhado por um padre, para exumar e repatriar os restos mortais de seus soldados. Desde 1970, o livro logo foi traduzido para mais de 13 idiomas. Com o acirramento da perseguição aos escritores na década de 70, Kadaré busca explorar o romance histórico para fugir de referências contemporâneos explícitas (ESCUDIER, 2003). Os Tambores da Chuva (O Castelo), desta época, nos leva ao século XV do herói nacional Scanderberg, em meio ao cerco de uma fortaleza medieval albanesa pelos otomanos. Aqui, a fortaleza é um símbolo da própria Albânia – fechada em si mesma – e que os turcos representam a possibilidade iminente de invasão soviética (que já ocorrera na Checoslováquia, em 1968). Do período da grande perseguição dos anos setenta são também Abril Despedaçado e A Ponte dos Três Arcos, que assinalam um retorno às origens míticas e lendárias do país, com os temas mais recorrentes nas lendas balcânicas: a vendeta de sangue e o emparedamento.
Já Dossiê H e O Palácio dos Sonhos são do período de transição rumo a uma maior liberdade de criação, nos anos oitenta. Neste último, o Império Otomano aparece como um gigantesco e opressor sistema burocrático cuja opressão, cerceamento e controle se estendem até o domínio onírico. A Filha de Agamenon, Três Cantos Fúnebres para o Kosovo e O Sucessor são obras posteriores à queda do regime que, surpreendentemente, ainda mantêm como tema central a opressão pelos sistemas de dominação do homem e da realidade. Esta permanência parece surgir que a crítica presente nos romances de Kadaré transcende a contingência da ditadura contra a qual floresceu, sendo ressignificada no contexto da democracia burguesa. Afinal, que sentido faria escrever um livro engajado contra um regime que já não existe?
Referências bibliográficas
COX, John K. “The Albanian Experience of Communism in the Fiction of Ismail Kadaré”, in: East European Studies Noon Discussion, Meetin Report 319 (summary), 25 de fevereiro, 2005. Disponível em <http://www.wilsoncenter.org/publication/319-the-albanian-experience-communism-the-fiction-ismail-kadare# >, acesso em 10/10/2012.
ELSIE, Robert. Studies in Modern Albanian Literature and Culture. Nova Iorque: East European Monographs, Boulder Columbia University Press, 1996.
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__________. ““The Songs of the Frontier Warriors” Albanian Oral Epic Verse“, in: Illyria, the Only Albanian-American Newspaper. Nova Iorque, vol. 13, nº 1247, 6-9 de junho, 2003, p. 8.
__________. Albanian Literature: a short history. Londres: I. B. Tauris/Centre for Albanian Studies, 2005.
__________. “The Hybrid Soil of the Balkans: A Topography of Albanian literature”, in: CORNIS-POPE, Marcel e NEUBAUER, John (ed.). History of the literary cultures of East-Central Europe: junctures and disjunctures in the 19th and 20th centuries. Volume II. Amsterdã & Filadélfia: John Benjamins, 2006, p. 283-301.
__________. “The Rediscovery of Folk Literature in Albania”, in: CORNIS-POPE, Marcel & NEUBAUER, John (ed.). History of the literary cultures of East-Central Europe: junctures and disjunctures in the 19th and 20th centuries. Volume III. Amsterdã & Filadélfia: John Benjamins, 2007, p. 335-338.
__________. “Albanian Tales”, in: HAASE, Donald(ed.): The Greenwood Encyclopedia of Folktales and Fairy Tales. Vol. 1. Westport CT: Greenwood Press, 2008, p. 23-25.
ESCUDIER, Alexandre. La logique de l’engagement politique d’Ismaïl Kadaré. Dissertação de Mestrado: Institut d’Etudes Politique de Paris, 1993;
KADARÉ, Ismail. O palácio dos sonhos. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1992.
__________. A ponte dos três arcos. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999.
__________. Três Cantos Fúnebres para o Kosovo. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999 (b).
__________. Abril despedaçado. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
__________. Os Tambores da Chuva (O Castelo). São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
__________. O General do Exército Morto. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.
__________. A filha de Agamenon & O Sucessor. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
LORD, Albert. The Singer of Tales (editado por Stephen Mitchell e Gregory Nagy). Harvard: Harvard University Press, 2005, 2ª edição.
7/5/2013.
MITCHELL, Anne Marie. Un Rhapsode albanais, Ismail Kadaré. Marselha: Le Temps Parallèle, 1990.
PARRY, Milman. “Ćor Huso: a Study of Southslavic Song. Extracts (CH)”, in: PARRY, Adam (ed). The Making of Homeric Verse: The Collected Papers of Milman Parry. Nova Iorque & Oxford: Oxford University Press, 1987.
PIPA, Arshi. Contemporary Albanian Literature. Nova Iorque: Columbia University Press, 1991.
SINANI, Shaban. [opinião sobre as referências de Ismail Kadaré nos Arquivos Nacionais Albaneses]. Entrevista a Fiqiri Seidjaj, in: Trepça Net, jan. 2004. Disponível em <http://bjoerna.net/Kadare/Sinani-2004.pdf >, acesso em 8/5/2013.
__________. Le Dossier Kadaré. Paris: Odile Jacob, 2006.
Notas:
[1] Portanto, o principal problema do Realismo Socialista não era exatamente estético, mas político: o fato de ser uma estética oficial imposta. Afinal, A Mãe, de Gorki, e o romance A semana santa, de Aragon, são verdadeiras obras-primas da literatura no estilo do Realismo Socialista. Muitos escritores o adotaram livremente fora da URSS. É verdade que o Realismo Socialista produziu uma imensa quantidade de obras medíocres, mas o mesmo se pode dizer de praticamente todos os movimentos estéticos desenvolvidos fora dos Estados operários burocratizados.
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