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TEORIA

Trotsky: os ciclos do capitalismo em perspectiva histórica

Valerio Arcary

“A curva do progresso econômico põe em evidência dois tipos de movimento: um, fundamental, que expressa a elevação geral; outro, secundário, que corresponde às flutuações periódicas constantes, relativas aos dezesseis ciclos de um período de 138 anos. Nesse tempo, o capitalismo viveu aspirando e expirando de maneira diferente, de acordo com as épocas. Desde o ponto de vista do movimento de base, quer dizer, desde o ponto de vista do progresso e decadência do capitalismo, a época de 138 anos pode dividir-se em cinco períodos: de 1783 a 1815, o capitalismo se desenvolve lentamente, a curva sobe penosamente; depois da revolução de 1848, que amplia os limites do mercado europeu, assistimos a uma volta muito brusca. Entre 1851 e 1873, a curva sobe de repente. Em 1873, as forças produtivas desenvolvidas chocam-se com os limites do mercado. Produz-se um pânico financeiro. Em seguida, começa um período de depressão que se prolonga até 1894. As flutuações cíclicas têm lugar durante esse tempo; porém a curva básica cai aproximadamente no mesmo nível. A partir de 1894, começa uma época nova de prosperidade capitalista e, até a guerra, a curva vai subindo com vertiginosa rapidez. No fim, o fracasso da economia capitalista no curso do quinto período se realiza a partir de 1914.” [1]

 

Foi há setenta e quatro anos. No dia 21 de agosto, Ramón Mercader, agente da NKVD, assassinou Leon Trotsky. Para celebrar a importância da obra de um dos mais inspiradores marxistas do século XX, estas linhas recordam a contribuição de Trotsky ao tema da periodização dos ciclos do capitalismo.

A avaliação histórica do informe de Trotsky em 1921 ao Congresso da Terceira Internacional permanece poderosa para compreendermos a periodização do capitalismo. Merece especial atenção os dois momentos de passagem de fases de contração, ou depressão prolongada, para as fases de expansão, ou crescimento sustentado. A primeira, depois da derrota das revoluções democráticas de 1848. A segunda, depois da vitória antiescravista na Guerra Civil nos EUA, e durante a fase de conquista e partilha do mundo pelos imperialismos modernos.

Também é interessante como Trotsky vê a articulação dos ciclos curtos com as mudanças de época: identifica os dois movimentos e sugere que o movimento na longa duração das alternâncias de épocas seria o mais estrutural e decisivo, incidindo sobre as flutuações dos ciclos curtos. Mas, como podemos conferir no trecho que selecionamos de Chico Louçã, ao contrário de Kondratiev, Trotsky condiciona as passagens para a alta ou para a baixa às variações nas relações sociais de força entre as classes, ou seja, o impacto da determinação político-social sobre a economia, diminuindo as explicações que valorizavam os fatores endógenos:

“É porque Trotsky rejeitava a noção de uma capacidade de autorregulação da economia para uma fase de crescimento ou de queda, e o abandono, como em Kon­dratiev, de toda dimensão estratégica. Entretanto as posições sucessivas de Trotsky em 1921 e 1923 eram coerentes: para ele  são os grandes acontecimentos políticos (exógenos) que determinavam as passagens da onda longa, tanto para a contração quanto para a recuperação.” [2]

Talvez seja útil, em primeiro lugar, observar que não existe, a rigor, uma teoria das ondas longas, mas um debate quase “hemorrágico”, com muitas e variadas formulações diferentes. Embora ela esteja associada para sempre aos artigos que Kondratiev publicou em 1922, as primeiras apresentações da hipótese são anteriores, o que, em geral, é ignorado. Nas suas origens, a regularidade de ciclos longos atraiu o interesse de militantes da Segunda internacional como Parvus, na verdade, Helphand, militante russo emigrado, pioneiro também na análise da contradição entre o amadurecimento do mercado mundial, e a preservação exacerbada dos Estados nacionais. Ele estabeleceu uma estreita relação com Trotsky em torno das primeiras formulações da teoria da revolução permanente.

Outro socialista, o holandês Van Gelderen escreveu, em 1913, um trabalho sobre as ondas longas que, por força das circunstâncias de um destino trágico, que de resto foi o de sua geração – suicidou-se em 1940, quando da invasão nazi – só foi traduzido do holandês em 1996 e, portanto, sequer era do conhecimento de Kondratiev, ou dos outros participantes do debate russo de 1928 no Instituto da Conjuntura.

Exteriores ao movimento da II Internacional  pesquisadores, como Pareto, por exemplo, tinham um acordo em torno de uma periodização de longas fases de expansão e retração, e da necessidade de encontrar um quadro de explicação teórica que considerasse um conjunto de fatores sociais, políticos e econômicos.

Mas enquanto Pareto insistia na importância dos conflitos no interior da classe dominante, que se expressariam em uma alternância de hegemonia de especuladores e rentistas em cada fase histórica, para Parvus e Van Gelderen, as flutuações da luta de classes, e as variações da taxa média de lucro não podiam ser divorciadas. Posteriormente, Kondratiev, a quem o nome da teoria permanecerá vinculado, irá desenvolver as suas posições que, para o essencial do debate, repousavam na defesa de que a dinâmica das variações estava determinada por contradições econômicas endógenas: um movimento de rotação de capital mais lento do que o do ciclo curto, mas apoiado no mesmo padrão causal descoberto por Marx para o ciclo industrial: a operação da lei da queda tendencial da taxa média de lucro incidindo sobre a decisão burguesa de imobilizar capital em capacidade produtiva. Para o ciclo longo, Kondratiev associava a usura do capital às grandes mudanças de padrões industriais (substituição do carvão pela eletricidade, grandes infraestruturas, etc.)

As preocupações de Trotsky na polêmica contra Kondratiev parecem ter sido de dupla natureza, e ambas merecem atenção: uma teórico-metodológica, e outra política. A primeira questão remete ao perigo de critérios econômicos unilaterais, que ignorem a centralidade dos processos político-sociais em qualquer tentativa de periodização do capitalismo. O que, como sabemos, não é inocente porque a avaliação do passado contém uma perspectiva de quais são as possibilidades de futuro, do que resultaria uma formulação teórica que:

(a)   reconhecendo no sistema uma capacidade de autorregulação na longa duração, (para além da teoria do ciclo de renovação do capital fixo) colocava em questão o prognóstico do marxismo clássico de que o capitalismo teria um limite histórico, ou seja, os limites de valorização do próprio capital; Trotsky discordava, vigorosamente, desta avaliação.

(b)  estabelecia as premissas de uma passagem “indolor” para fases históricas de expansão, o que estava em irreconciliável contradição com a caracterização da Terceira Internacional sobre a natureza da época do imperialismo, definida como uma época de esgotamento da fase histórica “progressiva” e, portanto, analisada como uma época de agonia crônica em que a permanência do capitalismo teria que ser considerada como uma ameaça à sobrevivência da civilização.

Quanto à segunda questão, o problema era, também, o perigo oposto das generalizações catastrofistas que eram influentes na direção do KPD alemão, com o apoio dos húngaros, e que sustentavam o vaticíno de uma iminência da revolução, como se o capitalismo pudesse ter uma “morte natural”, sem que os desenlaces decisivos exigissem a entrada em cena dos sujeitos sociais, e também, uma vontade política consciente. Sobre este alerta encontraremos em Bensaïd uma nota interessante:

“Se não existe nenhuma lei simétrica à queda tendencial da taxa média de lucro, nada prova que o retorno ao crescimento seja inevitável e previsível. Quando Trotsky declara que ele é aleatório (provocado por fatores ‘exógenos’), a questão estratégica e o rigor teórico caminham de mãos dadas. Se depende de fatores sociais, políticos, militares, por que o ciclo de conjunto deveria conhecer uma periodicidade relativamente regular de sessenta anos? Marx, de resto, se encontrou confrontado a uma difi­culdade análoga a propósito do ciclo industrial, para o qual a rotação do capital fixo não oferece uma explicação suficiente. A usura deste capital não é na verdade somente técnica, mas moral, portanto, variável. Os conflitos de repar­tição entre as classes (e não a simples concorrência entre capitalistas) são, em última análise, a mola da própria mudança técnica. Fica então por determinar como a relativa regularidade do ciclo se impõe apesar de tudo, quando consideradas as incertezas da luta de classes.”[3]

O problema da hipótese que defende que os fatores exógenos seriam indispensáveis para uma explicação da retomada do crescimento econômico (grosso modo, derrota histórica dos trabalhadores para garantir uma estabilidade política do sistema que ofereça segurança na imobilização de grandes massas de capital por um longo período), reside na dificuldade de explicar a regularidade das ondas de aproximadamente meio século.

Se a ganância de classe está relacionada com as oscilações da luta de classes ou, em alguma medida, condicionada pelos processos sociais e políticos, seriam imprevisíveis as flutuações dos investimentos, porque as inversões das relações de forças seriam aleatórias. Logo, não existiria possibilidade séria de construir um modelo teórico para os ciclos longos de, aproximadamente, meio século. Estaríamos diante de uma coincidência estatística.

O debate sobre a existência ou não de uma fundamentação científica das ondas longas não é nem secundário, nem simples. Boa parte da querela em torno às ondas longas se concentra em torno desta ausência. Coincidências estatísticas, a rigor, não provam nada. E não só não são incomuns, como podem alimentar muitos mal entendidos, ou até mesmo conclusões, pelo menos, precipitadas. Claro que uma teoria científica exige, para além (na verdade, antes mesmo) de sustentação empírica incontroversa, uma hipótese de explicação que seja sustentável: a formulação de leis que permitam uma nova, reveladora e superior interpretação dos fenômenos em foco. Modelos matemáticos estão subordinados a esta exigência, e dela decorrem.

A teoria das ondas longas ainda está no estágio de uma hipótese em discussão, que não passou pelo crivo final de evidências inquestionáveis. O que não diminui a importância exploratória das possibilidades, e até novas perspectivas que ela abre. Porque esta teoria tenta unir de uma forma inovadora as possibilidades dos critérios de periodização econômicos aos de classificação históricos, em uma síntese complexa, em que os primeiros, quando é feita uma leitura marxista da teoria, se subordinam aos segundos.


[1] Trotski, Léon “La situacion económica mundial y las nuevas tareas de Ia Internacional”, in: Una escuela de estrategia revo!ucionaria, Buenos Aires, DeI Siglo, 1973, p. 57, Apud. COGGIOLA, Osvaldo, “O debate marxista sobre as crises econômicas” , manuscrito, 1999, p.34

[2] LOUÇÃ, Francisco, “Ernest Mandel et la pulsation de L’histoire”  In ACHCAR, Gilbert.  Le marxisme d”Ernest Mandel, Paris, PUF , 1999, p. 82/3.

[3] BENSAÏD, Daniel. La discordance des temps: essais sur les crises, les classes, l’histoire. Paris, Les Éditions de la Passion, 1995. p.72