Ilan Pappé, o mais conhecido dos “novos historiadores” israelitas, visitou recentemente a África do Sul para impulsionar a campanha internacional de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS). Deu esta entrevista ao jornalista Shaun de Waal do semanário Mail &Guardian.
Caracteriza Israel como um estado-colono e estabelece uma diferença entre o colonialismo e o estado-colono. Basicamente, no estado-colono, o colono não tem uma casa de origem à qual possa voltar. Isto é o que nós, sul-africanos, chamamos “colonialismo de tipo especial”.
Sim! O primeiro sionismo utiliza a palavra “colonialismo” para descrever o que o sionismo queria, porque a imagem do colonialismo no século XIX era muito boa. Estavam orgulhosos de qualificar o sionismo como um projeto colonial de sucesso.
Mas na década de 1930, e após a fundação do Estado de Israel, a imagem do colonialismo tinha mudado.
Os primeiros estudiosos do sionismo inventaram uma nova palavra – nem sequer posso pronunciá-la, uma espécie de corrupção ortográfica de “colonização” em hebraico – para demonstrar que este projeto era único.
O sionismo começou a falar da volta a uma antiga pátria, da redenção de uma terra vazia. Isto significava que não podia descrever o movimento anticolonialista palestiniano como tal, mas sim como terroristas que tentavam destruir um estado democrático moderno.
Israel e os seus partidários usam o argumento de que Israel é um exemplo de democracia: o único estado democrático na região.
Há dois Israel: o Israel não ocupado, que é uma democracia, e depois há o Israel com ocupação temporária. É como se Israel dissesse: “Não podemos ser julgados pela ocupação, porque é temporária.” Mas a ocupação tem lugar desde 1967! E, evidentemente, os árabes em Israel estavam submetidos a um regime militar até 1967 que depois se estendeu aos territórios ocupados.
Israel escapa a qualquer definição de uma sociedade democrática, especialmente pela sua atitude em relação aos povos autóctones. Este argumento de que é uma democracia não funcionou no caso da África do Sul do apartheid, por que deveria funcionar no caso de Israel?
Houve um momento da Primavera árabe, quando esta parecia muito promissora, muito democrática, que foi muito preocupante para Israel, como se refletiu nos meios de comunicação israelitas. A possibilidade de que pudesse haver uma democracia alternativa ou uma verdadeira democracia no Médio Oriente parecia abalar os fundamentos estratégicos do Estado de Israel.
Israel também afirma que o Hamas, que é o partido dirigente em Gaza, diz no seu programa que quer acabar com o estado de Israel. Esta é uma poderosa arma ideológica que permite aos sionistas mobilizar apoio a Israel, porque podem acusar a Hamas de querer outro Holocausto.
Sim, estou a ver. Mas não se pode utilizar os direitos humanos para julgar os movimentos anticolonialistas no apogeu das suas lutas contra o colonialismo. O Hamas é uma reação palestiniana determinada num momento histórico específico. Não posso ir ter com a população de Gaza, estrangulada por Israel, e dizer que deixem de lançar foguetes contra Israel, que se deixem matar em Gaza. Preciso ter uma conversa séria com eles, num ambiente que lhes permita ver as diferentes opções.
Por isso o movimento BDS é tão importante. É preciso dar uma opção às pessoas. Muitas vezes digo aos meus amigos que propõem ações mais radicais contra Israel: cem mil mísseis lançados de Gaza não teriam o mesmo efeito que um único governo no mundo que estivesse disposto a romper relações com Israel.
Isto seria bem mais eficaz, e seria não-violento. Permitir-nos-ia construir algo novo, sem o legado de fundo da violência. Digo aos meus amigos palestinianos: a era do nacionalismo acabou. Temos de impulsionar a mobilização em relação aos direitos humanos.
O governo israelita não fez reuniões de emergência sobre a ocupação durante muitos anos: até que o movimento BDS começou a ter alguns êxitos. E é por este motivo que a reação do governo da África do Sul perante a última crise em Gaza foi tão dececionante. Pelo menos poderia ter pedido a retirada do embaixador de Israel.
O fundador do Hamas, que foi assassinado por Israel, disse que se o seu opressor tivesse sido muçulmano ou árabe, ou mesmo palestiniano, teria resistido da mesma forma.
O programa da Fatah costumava dizer que os judeus que chegaram após 1918 deviam voltar aos seus países de origem. Mas no momento em que a Fatah pensou que tinha uma possibilidade de diálogo, em Oslo, admitiu que isto era absurdo. Disseram que nem sequer exigem que os russos voltem para casa, os russos que chegaram ontem.
Eu não sou partidário do Hamas, mas precisamos de um longo diálogo entre pessoas de diferentes religiões e origens, porque no final encontrar-nos-emos com um estado de diálogo. Desejo começar esta viagem com os meus amigos muçulmanos.
E que dizer da recente iniciativa dos Estados Unidos liderada pelo secretário de Estado, John Kerry?
A solução dos dois estados está morta há anos. O corpo está na morgue. De vez em quando aparece um secretário de estado dos EUA entusiasta que retira o cadáver da morgue e finge que o ressuscita e que está vivo. Mas quando deixa de funcionar, devolve o cadáver à morgue. Acho que deveríamos enterrá-lo já.
Não sei como poderemos desenvolver um novo estado de Israel-Palestina, mas nem sequer posso começar este diálogo se toda a gente está cativa de um falso paradigma.
A solução dos dois estados reduz o que seria a Palestina a 20% do território. Não se pode dizer que a Palestina é só a Cisjordânia e Gaza. E não se pode reduzir o povo palestiniano à população de Gaza e da Cisjordânia. Se não se abordar o problema de 5,5 milhões de refugiados, seja como for, a solução dos dois estados será pura quimera.
As elites políticas são bem mais produto da inércia do que admitem. Uma mudança de paradigma requer estudo e aprendizagem, e são preguiçosas. Significa pôr em risco a sua popularidade. Implica uma grande incerteza.
Precisamos desta mudança de paradigma, e temos de preparar o terreno para esse momento.
Ilan Pappé é o mais conhecido dos “novos historiadores” israelitas, autor entre outros de A Limpeza Étnica da Palestina (2006). Expulso das universidades israelitas, ensina atualmente na Universidade de Exeter, no Reino Unido, e impulsiona internacionalmente o movimento BDS. Shaun de Waal é jornalista do semanário sul-africano Mail & Guardian desde 1989.
Tradução para o português de Luis Leiria para o Esquerda.net
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