Hélio Rodrigues
A foto do papa Francisco que viajou pelo Mundo mostrando-o no pé do muro que separa o espaço israelense do palestino, na Cidade de Belém, foi vendida como símbolo de repúdio à guerra, ao desamor, à intolerância religiosa (1). Todavia, a fotografia serve para reforçar a ideia de um futuro de paz na Terra Santa – quiçá porque basta a vontade dos homens de boa vontade das três religiões monoteístas. Este texto busca demonstrar que tal ação simbólica serve muito mais aos opressores e exploradores, do que para os oprimidos e explorados.
O simbolismo funcional dos exclusivos movimentos pela paz
Correndo na frente da principal crítica que se faz à igreja católica, de opulência, megalomania e extravagância, o Papa Francisco ao assumir o pontificado divulgou sua proximidade com o historicamente bem quisto Francisco de Assis, subliminarmente dizendo acerca de uma nova reforma da igreja em pleno século XXI, como por exemplo, enfrentando os padres pedófilos e os gestores do banco do Vaticano. Muito embora não se tenha efetivas notícias sobre esse enfrentamento, a divulgação é que as mudanças são silenciosas, discretas, cosméticas, preocupadas com a “boa comunicação” e “com o consumo das novas mídias”; e que vários padres foram apenas trocados de suas funções, conforme notícias dos próprios veículos de comunicação da igreja (2).
É nesse campo da comunicação e do consumo das novas mídias que o Papa Francisco pediu paz pelos palestinos, por meio de uma foto bem trabalhada na esfera do marketing. Logo, sob o simbolismo de uma oposição mais fiel ao imperialismo capitalista, se garante e se ajuda a estabilizar o que os economistas chamam de “demanda agregada”, aqui ironicamente transferida para a esfera política. Explica-se. Sob o keynesianismo e fordismo, protege-se o sistema capitalista das crises oriundas da demanda agregada, especialmente em recessões, ou seja, funcionalmente outros objetivos são buscados pelo sistema capitalista para torná-lo sustentável.
Assim, sabe-se que o sistema capitalista tem se beneficiado muito com a ascensão de estéreis contramovimentos aos governos do lucro e do mercado. E esses contramovimentos, representados pela camisa branca, grito de paz, pseudoausência de envolvimento político de alguns exclusivos movimentos pela paz, funcionalmente impede o capitalismo de destruir o seu não alicerce capitalista, a saber, confiança, boa-fé, altruísmo, solidariedade no meio da família e na comunidade, e assim por diante.
No caso em questão da opressão e exploração do Estado de Israel aos palestinos, a foto direciona o debate para “o respeito religioso”, a “convivência religiosa”, o repúdio “ao fundamentalismo religioso”, obscurecendo a exploração e a opressão ali existente. Trata-se, pois, do uso ideológico da religião e da paz para omitir a realidade posta. Essa realidade é de um Estado totalitário que esmaga os palestinos. Adiante se voltará a esse tema.
Aliás, as perguntas que não são feitas, mas que permanecem latentes pelo senso comum são: Quem são àqueles que não respeitam a religião alheia? Quem são os fundamentalistas religiosos? Quem são os que não “sabem conviver com a diferença religiosa”? Ora, a grande mídia internacional impregnou, dia após dias, o senso comum dos “cidadãos ocidentais” (no uso de um eurocentrismo), de que os palestinos, árabes, mulçumanos, islamitas (como se todos fossem iguais e tudo fosse a mesma coisa) são, genericamente, terroristas. Eles explodem crianças-bombas e não aceitam o Estado de Israel. Este apenas estar a se defender. Em algumas oportunidades, diante do paradoxo da realidade, aquela mesma mídia noticia de modo acrítico, e bastante higienizado, que centenas de crianças palestinas morreram ou que palestinos estão desabrigados pelas bombas que caíram.
Destaque-se aqui a sutileza da falsa existência de pluralismo político e midiático, uma vez que essas notícias novamente reforçam a tese (tão cara ao cristianismo da igreja católica) de que a “culpa” é do próprio palestino que escolhe o Hamas ou qualquer outro grupo religioso fundamentalista.
Existe, então, um círculo vicioso que retroalimenta a exploração e a opressão, porque mais uma vez se acusará, ou se culpará, os palestinos pobres, desabrigados, invadidos, com parentes/amigos/familiares mortos de serem violentos e fanáticos.
No âmbito dos instrumentos ambíguos do sistema capitalista, seria mais importante exercer uma pressão mundial real, de compromisso efetivo e coercitivo para forçar o fim da colonização da Palestina, similar ao patrocinado pelo finado Papa Karol Wojtyla, contra os então regimes totalitários do Leste Europeu, exemplificado na Polônia. Ou ainda no campo da comparação, contra o sistema do apartheid que vigorava na África do Sul, que então contou com a colaboração de alguns movimentos sociais. De modo mais simples e direto: se poderia exigir seriamente o cumprimento das regras internacionais de direitos humanos.
A ideologia do pedido de paz
Se a foto que representa uma preocupação com o conflito Israel versus Palestina, simbolizando que sua prioridade é a paz, e se, ao mesmo tempo, a única medida adotada é de reforço ao estigma dos palestinos como “todos os mulçumanos são fundamentalistas” e de que “eles escolheram errado seus representantes políticos”, evidentemente que aquela foto mais esconde a realidade do que revela. É uma mensagem que esconde o essencial, na verdade, inverte a realidade (4).
Por que a mensagem da foto é ideológica? Porque ao contrário da foto refletir a busca pela paz, ela omite a existência de um Estado que impõe um regime totalitário aos palestinos. Diversos fatos reforçam essa afirmativa, exemplifique-se: a existência de presos políticos palestino, a expropriação de terras, a limpeza étnica e o nacionalismo étnico que dirige o Estado de Israel.
Sabe-se que dezenas de palestino são presos políticos. Geralmente eles fazem greve de fome contra a chamada “detenção administrativa” ordenada por autoridades militares por suspeita de participação em atos contra o Estado de Israel. Dois pontos aqui são importantes:
(a) a prisão se faz por decreto e sem o devido processo legal e ampla defesa. Aliás, o grau de arbitrariedade é tão absurdo que basta o mando da autoridade militar sem nenhuma necessidade de fundamentação desse ato, sem exigências de prévias provas ou indícios e sem a capacidade do acusado explicar ou apresentar, ainda que de modo informal e oral, sua defesa. Não se garante nenhuma possibilidade do acusado eventualmente ter condições de provar sua inocência. Aliás, não existe nenhuma possibilidade do Estado de Israel provar a culpa dos acusados, pois não há processo.
Portanto, o mero pedido de paz como uma medida que deve ser adotada, igualmente, pelos dois lados do conflito esconde a desigualdade de direito e de fato entre palestinos e israelenses na solução do conflito. Israel é um Estado. A Palestina tem uma organização para a formação de um Estado. Israel é armado como uma potência militar e dispõe de armas nucleares e de destruição em massa. Os palestinos dispõem de seus corpos. Israel dispõe de estrutura político-administrativa-financeira, apoiado internacionalmente, enquanto a Palestina não dispõe de estrutura e depende da vontade de Israel para receber ajuda humanitária internacional. O Estado de Israel pode se valer do direito nacional e internacional e a Palestina, sequer no âmbito formal, dispõe de mecanismos para se valer dos fundamentos basilares de coerção – normativa e de formação de tratados internacionais. Israel apropriou-se da já sucateada infraestrutura dos palestinos (produção de energia, estradas, acesso ao mar, acesso ao espaço aéreo, comércio etc.), dispondo sobre o local de trabalho daquela população, bem como sobre a produção e prestação de serviços públicos.
(b) Que o Estado de Israel adotou legislação que permite que os grevistas tenham alimentação forçada. Nenhuma palavra que isso viola as regras de direito internacional está simbolizada na foto que ora é utilizada como representação dos exclusivos movimentos pela paz. É verdade que a união médica israelense (espécie similar ao Conselho Federal de Medicina no Brasil) circulou nota entre os médicos e hospitais dizendo que seu conselho de ética se posiciona contra a alimentação forçada, lembrando que o compromisso médico é com o paciente, de modo a tentar preservar a sua vida e saúde respeitando a sua vontade. Contudo, nada é dito que os que estão nos hospitais sob o comando da alimentação forçada estão, também, algemados à cama, sob vigilância e incomunicáveis, inclusive, com os próprios médicos, que recebem autorização, caso a caso e momento a momento, para ter acesso ao prontuário e ao paciente.
Lembre-se: vários desses presos são ativistas políticos palestinos que lutam pela libertação nacional, sequer comprovado que eles estejam envolvidos em ações violentas ou ilegais de algum tipo, sob a jurisdição israelense.
O mero pedido de paz, com flores, camisas brancas, pombas e orações, solicita que palestinos não sejam fundamentalistas e intolerantes. É um pedido vazio, estéril, que só não é inócuo porque favorece a manutenção do “status quo” do Estado de Israel.
É cada vez mais intensificada a expropriação das áreas agrícolas do território palestino ocupado militarmente desde 1967 por Israel. Há casos esdrúxulos em que pastores ou agricultores são desalojados de suas terras porque elas passaram a ser qualificadas como “zona de fogo”, isto é, área de treinamento de tropas. Igualmente é notório o caso de Hebron, onde colonos israelenses hostilizam abertamente os nativos palestinos com a cumplicidade da polícia-militar, enquanto que inspetores destoem antigas cisternas e canais de água, algumas delas que datam da época da ocupação romana, sem a devida autorização das autoridades israelenses responsáveis pelo “planejamento dos colonos”. (idem)
De qualquer modo, alguns políticos da coalizão do governo israelense ultradireitistas abertamente defendem que o extenso território palestino já ocupado e sob ocupação militar sejam anexados oficialmente (idem).
Por fim, mas que não significa a finalização de diversos outros exemplos possíveis de demonstrar o regime totalitário imposto por Israel aos palestinos, existe a clara identificação de um nacionalismo que prega a “limpeza étnica”. O governo de Israel produz cada vez mais políticas agressivas de ocupação militar, em fomento de construções de moradias nos territórios palestinos; além de uma ofensiva racista-nacionalista que tem como principal alvo os aproximadamente 20% dos cidadãos israelenses que são árabes – palestinos. Ou seja, o Estado de Israel defende, abertamente, que o Estado seja exclusivamente judeu.
Outro exemplo da caracterização de um Estado fundado na raça-religiosa: milhares de refugiados africanos, que fugiam da guerra civis no Sudão e Eritreia, estão presos em Negev, no sul do país. O crime cometido por tais refugiados é terem atravessado ilegalmente a fronteira para Israel em busca de abrigo, trabalho e pão, sem serem judeus, ou como carimbado em suas fichas, “sem qualificação para ser considerado digno de obter um estatuto jurídico suportável”, seja lá o que isso significa, senão a identificação de homens e mulheres de segunda ou até de terceira categoria.
O que se quer dizer é que parece que a sociedade israelense se voltou para a extrema direita e é governado por políticos que se orgulham de seu aberto racismo e vontade de guerra expansionista, em pleno apogeu do mito do nacionalismo sionista.
E os exclusivos movimentos pela paz que pedem paz aos dois lados, ocultam a relação de opressão e de exploração, justificando (deliberadamente ou não, consciente ou não, isso pouco importa) a belicosa e intolerante cruzada judaica-cristã de todas as idades e correntes sob o suposto mito do islã fundamentalista. A Palestina precisa que se diga, abertamente, sobre a barbárie que ela enfrenta.
Notas:
(1) Exemplos da foto que viajou o mundo: Papa Francisco pede fim de conflito ‘inaceitável’ entre Israel e Palestina. BBC, 25 mai. 2014. Disponível em:< http://bbc.in/1uBNaZzl>; Papa convida presidentes palestino e israelense a rezar no Vaticano pela paz. G1, 25 mai. 2014. Disponível em: < http://glo.bo/1phHYGS> e Papa Francisco reza em muro de Belém e pede por paz no Oriente Médio. Reuters Brasil, 25 mai. 2014. Disponível em: <http://bit.ly/1nWJVDS>
(2) REFORMAS: Vaticano apresenta mudanças na administração econômica. Canção Nova, 9 jul. 2014. Disponível em: <http://bit.ly/1m2fmNe>. Acesso em 10.jul.2014.
(3) DANTAS, Gilson. et.al. Brevíssima introdução à sociologia crítica. São Paulo: ISKRA/Centelha Cultural, 2013.
(4) Médio Oriente: ¿Qué dirá el santo padre? ¿Qué diran ustedes? Que Hacer? Disponível em: <http://bit.ly/1uBOsDW>. Acesso em 31 jul.2014.
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