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TEORIA

As necessidades humanas são limitadas ou ilimitadas?

Valério Arcary

“Devemos tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade” (Aristóteles)

“O projeto socialista é o de uma gradual satis­fação de mais e mais necessidades, e não uma restrição a requisitos básicos. Marx nunca foi um defensor do ascetismo ou da austeridade. Ao contrário, o conceito da personalidade totalmente desenvolvida, que é o próprio coração de sua visão de comunismo, implica a satisfação de uma grande variedade de necessidades humanas, e não um estreitamento decrescente de nossas necessidades a alimentos básicos e mora­dias. O desaparecimento gradual do mercado e das relações monetárias concebido por Marx, envolveria a extensão gradativa do princípio de alocação de recursos ex-ante para a satisfação destas necessidades em um número cada vez maior de bens e serviços, engendrando uma variedade mais ampla, e não menor, do que a existente sob o capitalismo hoje em dia.”[1] (Ernest Mandel)

Em 2011 a humanidade atingiu a impressionante cifra de sete mil milhões de seres humanos.[2] A propaganda a favor do capitalismo argumenta que, apesar da pobreza e da desigualdade que permanecem, vivemos no melhor mundo possível. A natureza humana seria um obstáculo intransponível. O egoísmo, a avareza, a cobiça, a voracidade, a ambição seriam naturais e ingovernáveis.

Afirmam que o capitalismo estaria criando uma nova classe média no Brasil, na Colômbia, em Angola, na China, por toda a parte. Além da pobreza, a desigualdade social estaria, surpreendentemente, diminuindo também. A conclusão, desesperadamente, otimista é que o direito à propriedade privada e a regulação mercantil teriam provado diante da história sua superioridade.

A publicação do livro de Piketty sobre a preservação da desigualdade social na longa duração, O capitalismo no século XXI, produziu, portanto, grande controvérsia. Nas suas palavras categóricas: “É um fato: todos os rankings de riqueza indicam que os mais ricos estão cada vez mais ricos, e cada vez mais rápido.” [3]

A alocação de recursos por um mercado desregulado; os ajustes feitos pela oferta e procura sem intervenção estatal; o direito irrestrito ao entesouramento; o direito de herança inviolável; a redução do custo fiscal dos Estados; as privatizações dos serviços públicos; a flexibilização das relações trabalhistas; a redução da proteção ao desemprego; a privatização das aposentadorias. Eis a receita mundial para defender as condições que favoreceriam a volta ao crescimento econômico. Só a blindagem dos interesses dos capitalistas poderia favorecer investimentos necessários para o desenvolvimento. Esta é bíblia.

Nenhuma destas conclusões é correta.[4] Como definir o que é a pobreza no mundo contemporâneo é um tema envolvido em uma hemorrágica discussão sobre critérios. Quais devem ser as linhas de corte? Entretanto, não é controverso que ainda hoje pelo menos um bilhão de seres humanos vivem com até US$1,00 por dia. Outro bilhão com até US$2,00. O mais importante é compreendermos que a miséria material que condena dois terços dos sete bilhões a viver com até US$8,00 por dia não é uma fatalidade. Não é verdade que o mundo não disponha de recursos para libertar esta maioria do flagelo da penúria extrema. Ela já poderia ter sido erradicada.[5] Mas os propagandistas do capitalismo defendem que não é possível. O que parece mais ou menos incontestável é que o capitalismo não o fará.

Entremos, portanto, de frente em uma discussão teórica chave do marxismo que poderíamos enunciar como a teoria das necessidades em Marx. Expliquemo-nos: o socialismo se fundamenta na defesa que as necessidades humanas mais intensas são homogêneas, ou seja, são as mesmas para todos e, portanto, poderiam ser aferidas a priori antes da produção. Logo a produção poderia ser organizada em função de uma alocação de recursos pelo planejamento.

Em última análise, a discussão sobre a possibilidade da satisfação das necessidades remete aos fundamentos. É a própria ideia de socialismo que está em questão. Está em debate a superioridade ou não de um planejamento democrático. O que envolve a discussão da participação das amplas massas nas decisões de uma esfera pública alargada e complexa, que exige muitas decisões (e o tempo e a educação para querer e poder tomar decisões). Mas está em primeiro lugar em discussão definir se as necessidades são limitadas e previsíveis, ou se elas são ilimitadas. Da aceitação do postulado de necessidades ilimitadas decorreria que a premissa de que a abundância é possível desmoronaria, e a humanidade estaria condenada à escassez, com as suas inseparáveis sequelas: a mesquinhez, a propriedade privada, as classes e suas lutas, o Estado, etc. Todo o edifício da hipótese marxista de uma transição para uma sociedade sem classes vem abaixo.

O marxismo sempre defendeu que a satisfação das necessidades mais intensamente sentidas é possível, e que a abundância pode ser construída, progressivamente, como um processo. O que não significa que as necessidades não se alterem com o surgimento de novas demandas que resultam do progresso econômico e cultural, não necessariamente nessa ordem. Mas as necessidades que têm uma maior exigência foram em uma mesma época histórica sempre as mesmas.

A experiência histórica do século XX deu razão a Marx de uma forma indiscutível: o boom do pós-guerra nos países centrais, a partir de 1945, revelou que o acesso a padrões materiais e culturais mais elevados de vida, permitidos pelo pleno emprego e pela elevação do salário médio, produzia-se com uniformidade nos padrões de consumo. A constância na demanda não surpreendeu os marxistas. Quando melhoram as condições de vida, o cidadão médio tem as mesmas prioridades: primeiro o aumento do consumo de alimentos, com maior variação e mais fontes de proteína.  Ou a aquisição de eletroeletrônicos que definem o conforto da vida doméstica e o lazer mais barato. Depois a busca do acesso à compra da casa própria, para se libertar do aluguel, e a preocupação com a maior escolaridade dos filhos, e a reivindicação por mais e melhores serviços públicos. Por último, as férias, as viagens, etc. Em algum momento, o transporte individual.

Reconhecer que o padrão de consumo é homogêneo, uniforme, constante e previsível não deve obscurecer o fato de que: (a) ele muda; e (b) de que existe uma parcela de consumo idiossincrático. As necessidades mais intensas são as mesmas para todos que vivem a mesma etapa da história, mas as dos jovens do início do século XXI não são iguais aquelas de cem anos atrás. Nem sequer iguais aquelas de quarenta anos atrás. O conteúdo do progresso foi, justamente, o aumento das necessidades. Também é verdade que existe uma margem de consumo pessoal que não é previsível e que obedece a preferências subjetivas, muito peculiares, até íntimas.

O importante é que pelo menos 90% do consumo de pelo menos 90% da população é homogêneo. Sendo assim, é perfeitamente previsível. De todas essas considerações se deve, portanto, concluir que não existe hoje nenhuma argumentação sólida, nem na economia, nem na sociologia, que desqualifique o planejamento como o método mais eficaz de alocação de recursos. Mais eficaz não significa infalível. A alocação pelo planejamento é susceptível, também, de erros e, portanto, de desperdício de recursos que permanecem escassos. Porém, é mais eficiente que a alocação pelo mercado. Porque o papel do mercado é maximizar as condições favoráveis para que os proprietários do capital possam ganhar dinheiro. O papel do planejamento é maximizar as condições para que as necessidades mais intensas possam ser satisfeitas.

Os apologistas do capitalismo defendem que as necessidades são incertas, impossíveis de ser calculadas e, a rigor, ilimitadas, cabendo ao mercado revelar a posteriori se a demanda efetiva foi satisfeita, ou se ocorreu subprodução ou superprodução. No pós-guerra de 1945 a utilização de políticas anticíclicas de inspiração keynesiana deslocou a influência das premissas liberais clássicas, e a ideia de que o Estado poderia através de sua intervenção, dentro de certos limites, e até certo ponto, definir a demanda estabelecendo uma regulação sobre o mercado, se afirmou como pensamento burguês dominante. A crise depressiva prolongada aberta em 1973/74 trouxe de volta ao poder os fundamentalistas da “regulação mercantil pura”, e esta tem sido a política hegemônica nos últimos trinta e cinco anos ( 1979/2014).

Nos círculos de esquerda a pressão neoliberal não passou impune. As teorizações que estrategizam a ideia de um socialismo de mercado são moeda corrente. Os termos da questão não são simples, é certo. Mas a aceitação do mercado como a forma fundamental de regulação econômica apunhala no coração de forma irreversível o projeto socialista. É importante assinalar que a maioria esmagadora das elaborações que teorizam a defesa do socialismo de mercado, ou de um controle social do mercado nas suas versões ainda mais recuadas, não faz a defesa da troca de mercadorias como uma concessão transitória, dentro de um sistema híbrido de alocação de recursos, mas estão questionando a própria vigência histórica da perspectiva de uma produção mundial autorregulada, ou seja, subordinada ao planejamento.

Os recursos hoje disponíveis pelo desenvolvimento das forças produtivas, mesmo considerando que a permanência obsoleta do imperialismo bloqueie o potencial libertador nelas contido, permitiria arrancar das condições de miséria biológica, em pouco tempo, os cerca de um bilhão e meio de seres humanos que ainda vivem com até um dólar por dia como renda. A miséria material já poderia ter sido erradicada. A permanência senil do capitalismo é a explicação da sua perpetuação.


[1]  MANDEL, Ernest, Socialismo versus mercado, São Paulo, Ensaio, 1991, p.56.

[2]  Relatório sobre a Situação da População Mundial 2011 do Fundo de População das Nações Unidas . Disponível em:  www.un.cv/files/PT-SWOP11-WEB.pdf Consulta em 10/07/2014

[3] Piketty é insuspeito de simpatias pelo socialismo. Eis as suas palavras: “Eu acredito no capitalismo, no livre mercado e na propriedade privada, não apenas como origem de eficácia e crescimento, mas também como elemento de liberdade individual. Sou muito positivo quanto a isso”. http://veja.abril.com.br/noticia/economia/piketty-para-que-o-processo-virtuso-do-capitalismo-continue-e-preciso-cuidar-da-desigualdade  Consulta em 10/07/2014

[4] A fome no mundo ainda atinge um em cada oito seres humanos, segundo os dados da FAO. A região do mundo com maior número de pessoas que passam fome continua sendo a África subsaariana (24,8%), segundo o relatório. A grande maioria das pessoas que passam fome vive em países da periferia, enquanto 15,7 milhões estão nos países centrais http://g1.globo.com/mundo/noticia/2013/10/uma-em-cada-oito-pessoas-no-mundo-passa-fome-1.html Consulta em 10/07/2014

[5] A Organização Internacional do Trabalho (OIT) relatou, em 2010, que 81 milhões dos 620 milhões de jovens economicamente ativos na faixa etária de 15 a 24 anos em todo o mundo – ou 13% daquela faixa etária – estavam desempregados no ano anterior, em grande parte devido à crise financeira e econômica mundial. No pico da crise econômica, a taxa global de desemprego entre jovens teve o maior aumento anual jamais visto – de 11,9 %para 13%, entre 2007 e 2009. www.un.cv/files/PT-SWOP11-WEB.pdf Consulta em 10/07/2014