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TEORIA

Duas interpretações clássicas sobre o coronelismo

 Alvaro Bianchi

Nesta breve resenha procura-se apresentar duas interpretações clássicas do fenômeno do coronelismo. A primeira delas é a realizada por Victor Nunes Leal, Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. Publicado pela primeira vez em 1948, pela Editora Forense, o livro de Nunes Leal tem merecido várias reedições, a última delas em 2012 pela editora Companhia das Letras. A segunda é o ensaio “O coronelismo numa interpretação sociológica”, de Maria Isaura Pereira de Queiroz, publicada em 1975 como parte da monumental obra organizada por Boris Fausto, História geral da civilização brasileira: o Brasil republicano.

Separada da obra de Nunes Leal por 27 anos, o artigo de Maria Isaura Pereira de Queiroz estabelece com ele um diálogo informal, ora concordando com ele, ora apresentando diferentes formulações para um mesmo problema; realizando movimentos sucessivos que constituem o que, utilizando a linguagem da autora, poderíamos chamar de dialética da aproximação-afastamento.

Chamamos este diálogo de informal porque as citações de Pereira de Queiroz à obra de Nunes Leal são bastante escassas: apenas duas, sendo uma delas à nota de rodapé elaborada por Basílio de Magalhães a respeito do tema. Mas o seu artigo está organizado de forma a apresentar as várias facetas do coronelismo que teriam escapado a Nunes Leal ao definir o coronelismo como uma forma de adaptação entre o poder privado e um regime político de extensa base representativa (PEREIRA DE QUEIROZ, 1975: 157)

O coronelismo em chave política

Nunes Leal considerou o coronelismo como o resultado da “superposição de formas desenvolvidas do regime representativo a uma estrutura econômica e social inadequada” (NUNES LEAL, 1948: 8). Não o considerava, pois, como uma sobrevivência do poder privado hipertrofiado, característico do período colonial. Contrapunha-se, assim, aqueles que viam no coronelismo a continuidade de um fenômeno há muito identificado pela historiografia. A abordagem de Nunes Leal é extremamente sofisticada, uma vez que superando as visões dualistas da sociedade brasileira procurou estabelecer as relações de coexistência e de mútua determinação entre o arcaico e o moderno.

Para Nunes Leal, o coronelismo seria “uma forma peculiar de manifestação do poder privado, ou seja, uma adaptação em virtude da qual os resíduos do nosso antigo e exorbitante poder privado têm conseguido coexistir com um regime político de extensa base representativa” (IDEM). Como já vimos, foi justamente esta tese que Maria Isaura Pereira de Queiroz tentou refutar. Essa adaptação se tornaria necessária, na medida em que o poder dos chefes locais e a influência social dos senhores de terra encontrar-se-ia em decadência. Mesmo decadente, o privatismo característico destes agentes seria alimentado pelo poder público que, com a extensão do sufrágio, teria se tornado dependente destes.

Uma vez apresentado o coronelismo, Nunes Leal passou a examinar os traços principais da vida política dos municípios do interior. O aspecto mais evidente do coronelismo seria o da liderança, em cuja posição mais destacada encontrar-se-ia o coronel. Os chefes políticos locais nem sempre seriam coronéis, mas na maioria das vezes seriam parentes ou aliados políticos dos coronéis. Ainda assim, o elemento primário dessa liderança seria o coronel, que comandaria um lote considerável de votos de cabresto. Este comando lhe daria um prestígio político que coroaria sua situação social e econômica privilegiada.

A posição ocupada pelo coronel resultaria, segundo Nunes Leal, de sua qualidade de proprietário rural (IDEM, p. 10). Sua riqueza, entretanto, seria relativa. Ela se apresentaria como tal se comparada com o estado de pobreza, ignorância e abandono no qual vive a “massa humana que tira a subsistência de suas terras” (IDEM, p. 10-11). Para entender melhor a influência política dos fazendeiros, Nunes Leal recorreu a análises estatísticas sobre a distribuição da propriedade e a composição de classes na sociedade brasileira. Desta análise, o autor em questão concluiu que a concentração de propriedade seria o fato dominante da vida rural brasileira. De acordo com o censo de 1940, o número de proprietários com mais de 200 hectares não passava de 148.622, considerando que cada proprietário possuía apenas um estabelecimento. O autor também concluiu que a miséria na qual se encontram os proletários rurais, parceiros e pequenos proprietários seria praticamente a mesma, o que provocaria a dependência destes com relação aos grandes proprietários.

A reforçar esta dependência estariam, segundo Nunes Leal, as despesas eleitorais, financiadas para uma população paupérrima pelos fazendeiros e chefes locais. “É portanto, perfeitamente compreensível que o eleitor da roça obedeça a orientação de quem tudo lhe paga, e com insistência, para praticar um ato que lhe é completamente indiferente” (Idem, p. 20-21). Estavam, também, os favores pessoais, o filhotismo e a perseguição aos adversários, o mandonismo.

Para esta estrutura funcionar seria vital que o chefe local alcançasse a vitória política e obtivesse o apoio da situação estadual. Esta, por sua vez, em troca do apoio aos candidatos do oficialismo, daria ao líder político local, liberdade para agir em todos os assuntos relativos ao município, inclusive na nomeação dos funcionários estaduais do local.

O habitat do coronel, concluiu Nunes Leal, seriam os municípios do interior. Sua vitalidade seria, portanto, inversamente proporcional à urbanização. O isolamento seria um fator importante na manutenção do fenômeno. Este seria, por sua vez, causa da ausência ou rarefação do poder público. O coronelismo, não poderia, entretanto, ser definido como uma simples hipertrofia do poder privado. Ele seria, antes de mais nada, o resultado de um compromisso entre o poder privado e o poder público.

Segundo Nunes Leal,  extensão do sufrágio universal e a abolição do regime servil teriam dado grande importância ao voto dos trabalhadores rurais. Sendo os trabalhadores rurais dependentes do proprietário de terras, devido à estrutura agrária brasileira, cresceu a influência política deste:

“A superposição do regime representativo, em base ampla, a essa inadequada estrutura econômica e social, havendo incorporado à cidadania ativa um volumoso contingente de eleitores incapacitados para o consciente desempenho de sua missão política, vinculou os detentores do poder público, em larga medida, aos condutores do rebanho eleitoral” (Nunes Leal, 1948: 184).

O fenômeno, assim estudado, seria característico do período Republicano e não mera continuidade do verificado no Império.

O coronelismo em chave sociológica 

Para Maria Isaura Pereira de Queiroz (1975), considerar o coronelismo unicamente do ponto de vista político, mutilava um conjunto complexo, impedindo uma compreensão mais ampla do objeto e de sua evolução histórico social e política. Assim, sua análise procurou preencher as lacunas deixadas por aquela investigação de Nunes Leal, estudando, além da bases políticas seus fundamentos socioeconômicos.

Pereira de Queiroz, cita estudo realizado por Jean Blondel, que pesquisou entre 1950 e 1960 a estrutura coronelista vigente no estado da Paraíba. Blondel definiu  o “coronel” pelo poder político. Este poder seria medido pela quantidade de votos de que disporia um chefe no momento das eleições. Além do coronel e da massa de votantes, fariam parte desta estrutura os cabos-eleitorais, que funcionariam como um elo de ligação entre o coronel e os eleitores.

Blondel distinguiu três tipos de estruturas coronelísticas:

1)   O coronel exerce seu mando pessoal, dominando através de um sistema de cabos-eleitorais.

2)   O chefe político domina indivíduos de nível e poder, que por sua vez dominam o eleitorado.

3)   Cada chefe da família domina uma zona, formando um “colegiado”.

Evidentemente, o poder se encontra mais concentrado no primeiro caso. Nos outros dois, a existência de “subchefes” torna o poder mais flutuante. Encarado como fato político, o estudo do coronelismo exigiria, também, que fosse apreendida a estrutura coronelística de uma região. Segundo Blondel, seria preciso verificar, dado um caso concreto, se o coronel ou uma parentela exerceriam um poder único, ou se várias famílias disputariam o poder. Quando apenas duas famílias disputassem o poder, este segundo arranjo daria margem a terríveis lutas entre elas.

Blondel considerava que a multiplicidade de coronéis era o aspecto essencial da estrutura política do Brasil na Primeira República. Este aspecto decorria da estrutura socioeconômica tradicional do país, fundada em grupos de parentela que seriam, concomitantemente, grupos de parentesco com suas alianças e grupos de associados econômicos e políticos. Maria Isaura Pereira de Queiroz acrescentou à análise de Blondel, que o coronelismo “se integra, pois, como um aspecto específico e datado dentro do conjunto formado pelos chefes que compõem o mandonismo local brasileiro” (1975: 159).

Além deste aspecto essencial, Blondel acrescentou outro: a possibilidade de barganha e a consideração do voto como um posse. Os políticos estariam, assim, na dependência de seus eleitores. Deveriam servi-los, para obter em troca os votos. A cessão destes, por sua vez, poderia se dar através da barganha. Mas a opressão e a violência também faziam a sua parte.

A ampliação da base eleitoral, conquista republicana, teria ampliado o sistema no qual o voto era um bem de troca. A ampliação não foi, entretanto, total. Ela apenas abarcou os alfabetizados. A mão-de-obra analfabeta não votava; formava os grupos de capangas. A massa de eleitores era composta por pequenos sitiantes das zonas rurais, pequenos funcionários, artífices e vendeiros. Esta massa estava dispersa pelos pequenos povoados e vilarejos do interior do país.

Os eleitores sempre foram homens livres. Desenvolveram, por isso mesmo, a consciência de sua “igualdade” para com os fazendeiros. Este sentimento de “igualdade” tornaria ambíguas e complexas as relações entre os componentes da pirâmide social brasileira. Era este sentimento o que traria instabilidade às relações de dominação-subordinação.

Maria Isaura Pereira de Queiroz considera que a origem da estrutura coronelística poderia ser encontra nos grupos de parentela. Por “parentela”, a autora entende “um grupo de parentesco de sangue formado por várias famílias nucleares e algumas famílias grandes (isto é, que ultrapassam, o grupo pai-mãe-filhos), vivendo cada qual em sua moradia, regra geral economicamente independentes)” (PEREIRA DE QUEIROZ, 1975: 165).

As parentelas propiciariam vantagens econômicas tanto para os chefes como para os demais componentes, por maio da oferta de apoio a estas, amparando os membros que passassem por dificuldades econômicas. A parentela seria, assim, um grupo econômico formado por unidades econômicas independentes. Seria, também, um grupo político, cuja solidariedade interna garantiria a lealdade dos membros para com os chefes.

A pirâmide da parentela não seria, como se poderia pensar, estável, estática ou imóvel. No seu interior haveria camadas socioeconômicas e uma dinâmica de ascensões e declinios. Para ascender no seu interior, um de seus membros precisaria ter reconhecidas as suas qualidades pessoais para a liderança. Estas qualidades poderiam ser reforçadas por fortuna, instrução ou casamento. O posto de coronel não seria, portanto, hereditário.

Se a origem da estrutura coronelística poderia ser encontrada nos grupos de parentela, seu fundamento residiria na posse de bens de fortuna, ou seja, na capacidade do coronel fazer favores. Quanto maior esta capacidade, maior o eleitorado por ele controlado.  A autora destacou que não utilizava o termo “grande proprietário” para definir o coronel. No Brasil o poder decorrente da posse de outros bens que não a terra poderia superar o poder proveniente da posse desta. Seria o caso, por exemplo, da ascensão do coronel Delmiro Gouveia, mediante a aquisição de bens de fortuna no comércio.

Conclusão   

A estrutura do coronelismo foi corroída, segundo Nunes Leal, pela industrialização e urbanização do país. Mas foi preciso uma revolução (a de 1930), para transpor ao plano político as modificações que vinham se processando. Esta revolução, entretanto, não atingiu a base de sustentação do coronelismo: a estrutura agrária. O resultado foi a subsistência do coronelismo.

Para Maria Isaura Pereira de Queiroz, não houve um único fator o responsável para decadência da estrutura coronelística. Urbanização, crescimento demográfico e industrialização foram responsáveis por essa decadência. Mas o peso de cada um destes fatores e seu impacto sobre a estrutura de poder em questão variaram de região para região e de acordo com o momento histórico vivido. O fim do coronelismo não teria, portanto, uma data. Seria um processo que apresenta vários ritmos conforme a região do país estudada.

A diferença de enfoques entre os dois autores estudados é evidente. Também é evidente as diferentes conclusões a que chegam sobre o fim ou a decadência do coronelismo. A aproximação de Nunes Leal à questão do coronelismo é feita em chave política. Mas para ele o coronelismo está fundado numa estrutura agrária que concentrou a propriedade de terras em poucas mãos.

Para Maria Isaura Pereira de Queiroz, entretanto, o poder dos coronéis não adviria da condição de proprietários de terras. Seria, antes de mais nada, conseqüência da posse de fortuna. Além da propriedade de terras a autora acrescentou a herança, o casamento e o comércio como possíveis origens do enriquecimento. Ao colocar a ênfase na fortuna e não na propriedade, esta autora consegue explicar um dos casos mais conhecidos de coronelismo, o de Delmiro Gouveia. Explica não só o seu poder político como também sua vinculação a atividades econômicas não-tradicionais, como o comércio e a indústria..

A abordagem de Maria Isaura Pereira de Queiroz mais abrangente e, por isso mesmo, mais rica. Ela permite compreender as diferentes facetas do coronelismo e o modo como estas se articulavam. Não é, entretanto, uma abordagem eclética. Ela se encontra internamente hierarquizada de forma que o fundamento do poder do coronelismo — a posse de bens de fortuna — torna-se a chave para a compreensão do fenômeno coronelista. Não é, entretanto, esta posse o que define para a autora o coronelismo. Sua definição é muito mais rica e acurada. A liderança coronelista é econômica — e por isso a necessidade de bens de fortuna —, mas também é uma liderança de parentelas que requer um do chefe qualidades carismáticas de forma a que a obediência por parte dos demais estratos da pirâmide da estrutura coronelística seja espontânea.

“Pode-se dizer, pois, que o mando político do coronel era resultante de sua posição econômica, em primeiro lugar, que dava ao indivíduo a possibilidade de exercício do poder colocando-o em situação de fazer favores; a existência de parentela era condição importante de apoio para a conservação do poder dentro do conjunto de parentes; mas entre os parentes, o chefe, por excelência era aquele que apresentasse as qualidades indispensáveis: o grande coronel era sempre um primus inter pares” (PEREIRA DE QUEIROZ, 1975: 178).

Referências bibliográficas 

PEREIRA DE QUEIROZ, Maria Isaura.  O coronelismo numa interpretação sociológica. In: FAUSTO, Boris. História geral da civilização brasileira. O Brasil republicano. São Paulo, Difel, 1975, t. III, v. 1, pp. 153-190.

NUNES LEAL, Victor. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. Rio de Janeiro, Forense, 1948.