Engels e o fenômeno do bonapartismo

Felipe Demier

 “Assim, Bismarck deu o audaz passo do sufrágio universal, ainda que sem Lassalle, ainda que sem seu Lassalle. Ao que parece, depois de certa resistência o burguês alemão se conformou com isto, pois o bonapartismo é a verdadeira religião da burguesia contemporânea. Cada vez mais fica claro para mim que a burguesia é incapaz de governar diretamente, e por isso ali onde não existe uma oligarquia que em troca de uma boa remuneração (como se faz aqui na Inglaterra) pode-se encarregar de dirigir o Estado e a sociedade no interesse da burguesia, a forma normal é a semiditadura bonapartista. Esta defende os interesses materiais essenciais da burguesia até contra sua própria vontade, mas ao mesmo tempo, não lhe concede acesso ao poder (político). Do outro lado, esta mesma ditadura, por sua vez, se vê obrigada, contra a sua vontade, a fazer seus os interesses materiais da burguesia.” (ENGELS, F. “Carta de Engels a Marx (13 de abril de 1866)

Foi sob o impacto da recente emergência de um regime bonapartista na Alemanha que então se unificava, e da ousada instauração por aquele do sufrágio universal masculino para as eleições do Reichstag (1866), que Engels escreveu a carta a Marx da qual retiramos o fragmento acima. A nosso ver, a sugestiva (porém hiperbólica) idéia trazida por aquela missiva, que diz ser o bonapartismo a “religião da burguesia contemporânea” (isto é, a “forma normal” de regime político burguês), inspirou-se no impressionante fato de que, além da França, outra importante nação européia, a Alemanha – na verdade, ainda em seu processo de formação nacional – adotava um regime político no qual se destacava uma máquina estatal burocrático-militar que surgia como uma força independente e localizada acima da sociedade.

Afora essa definição um tanto quanto impressionista do bonapartismo,[1] Engels, em termos gerais, abordaria tal fenômeno por uma perspectiva interpretativa muito similar à elaborada por Marx no caso “clássico” francês. Se Marx lançara as bases de uma teoria do bonapartismo a partir de uma inigualável análise jornalística de uma situação histórica concreta, a trama política francesa de 1848-185, Engels, por sua vez, pôde aproveitar-se dos subsídios teórico-analíticos gerados por aquela análise para interpretar a nova ocorrência do fenômeno bonapartista, desta vez em terras germânicas: o regime bismarckista alemão.

Indubitavelmente, a maior contribuição de Engels para o desenvolvimento de uma teoria do bonapartismo foram suas poucas, mas perspicazes, elaborações relativas à formatação política do Segundo Império alemão (Segundo Reich), arquitetada pelo chanceler de ferro Otto Von Bismarck. Nessas elaborações, nas quais as peculiaridades da variante bonapartista alemã foram habilmente percebidas e destacadas, Engels sistematizou e desenvolveu um conjunto de idéias sobre o bonapartismo que Marx havia proposto em seus escritos sobre a França, sobretudo em O 18 brumário.[2] 

Bonapartismo: as revoluções “de cima para baixo”

Em sua conhecida “Introdução” de 1895 a As lutas de classes na França, Engels, em um pequeno parágrafo, captou a essência da conjuntura política que desembocara no golpe de Estado de Luís Bonaparte: a existência de uma profunda divisão política da burguesia em um momento no qual o proletariado aparecia como uma ameaça, ainda que potencial, à ordem social (em termos gramscianos, uma verdadeira “crise de hegemonia”). Engels consideraria que o desfecho golpista daquela conturbada crise social e política aberta pela Revolução de Fevereiro de 1848 teria marcado o encerramento das revoluções “democrático-burguesas” na Europa; consequentemente, se teria inaugurado na velha Europa a etapa das modernizações capitalistas dirigidas pelo Estado – as quais tenderiam a assumir formas bonapartistas:

“Uma burguesia dividida em duas frações monarco-dinásticas, mas que solicitava sobretudo calma e segurança para seus negócios financeiros e diante dela um proletariado vencido, é verdade, mas sempre ameaçador e em cuja volta agrupavam-se, cada vez mais, pequenos burgueses e camponeses; a ameaça contínua de uma exploração violenta que, apesar de tudo, não oferecia nenhuma perspectiva de solução definitiva, tal era a situação que se podia considerar como feita especialmente para o golpe de Estado do terceiro pretendente, o pretendente pseudodemocrata Luís Bonaparte. Servindo-se do exército, este pôs termo, a 2 de dezembro de 1851, àquela situação tensa, assegurando à Europa a tranqüilidade interior mas presenteando-a, por outro lado, como um novo período de guerras. Encerrava-se momentaneamente o período das revoluções de baixo pra cima; sucedeu-lhe um período das revoluções de cima para baixo.”[3]

Bem antes, em um artigo escrito por volta de 1865 e intitulado “A questão militar prussiana e o partido operário alemão” (que tinha como objeto central o regime bismarckista que então se erigia no antigo Império Prussiano), Engels já havia oferecido uma ilustrativa síntese do bonapartismo francês, destacando vários de seus aspectos constituintes, entre os quais, o forte peso político da burocracia, a política estatal de cooptação de uma parcela do proletariado, o cerceamento das “liberdades democráticas” e, naturalmente, a existência de um poder governamental alocado acima das classes sociais antagônicas da sociedade moderna. Referindo-se à configuração política do Segundo Império francês, afirmara:

“A forma natural desta dominação era naturalmente o despotismo militar e o seu chefe natural Luís Napoleão, seu herdeiro legítimo. O bonapartismo se coloca tanto acima dos operários quanto dos capitalistas, impedindo o choque entre eles. Dito de outro modo, defende a burguesia contra os ataques violentos dos operários, favorece as pequenas escaramuças pacíficas entre as duas classes, sempre tirando tanto de uma quanto da outra qualquer espécie de poder político. Nenhum direito de associação, nenhum direito de reunião, nada de liberdade de imprensa. O sufrágio universal, sob pressão da burocracia, torna impossível qualquer eleição da oposição; e um regime policial jamais atingido anteriormente, inclusive na França com tudo que possui de policial. Aliás, uma parte da burguesia, assim como dos operários, está diretamente comprada. Uma pelos roubos colossais do crédito, através dos quais o dinheiro dos pequenos capitalistas é jogado no bolso dos grandes; a outra pelas grandes obras nacionais constituindo-se num proletariado artificial e imperial submetido ao governo, que se desenvolve nas grandes cidades ao lado do proletariado real e independente. Enfim, o bonapartismo ilude a coragem nacional através de guerras aparentemente heróicas, mas que na realidade são realizadas com a autorização da Europa contra o bode expiatório comum no momento – e em condições tais que a vitória está de antemão assegurada.[4] O principal resultado que um regime assim pode trazer aos operários e à burguesia é que eles descansem da luta e que a indústria se desenvolva fortemente (se as condições se adequarem), e portanto os elementos de uma nova luta, mais violenta se desenvolvem, até que estoure assim que a necessidade do repouso despareça. O cúmulo da estupidez seria esperar mais para os operários de um regime que existe exatamente para tê-los presos diante da burguesia…”[5]

Além dos elementos presentes nesse trecho os quais já havíamos antecipado acima, chamam a atenção, particularmente, dois outros: a formação de um proletariado “artificial” pelo regime bonapartista francês e a idéia de um “descanso” da luta de classes sob a vigência do bonapartismo.

Quanto ao primeiro, afora uma visão talvez um pouco idealizada (positivada) do proletariado (o “proletariado real e independente”), consideramos que ele lança luz sobre um traço característico do tipo bonapartista de regime político: a particular relação estabelecida pelo Estado com as massas populares. Ao impulsionar inúmeras obras públicas, que proporcionavam trabalho para os desempregados, e atendendo a pequenas demandas do proletariado, o bonapartismo francês lograva angariar o apoio político de uma parcela massiva dos setores sociais explorados.

No que tange ao segundo elemento, pode-se dizer que Engels apreendeu o real movimento que se processava nas camadas mais profundas da sociedade francesa sob o comando arbitral de Luís Bonaparte. A percepção dialética de uma luta de classes que, mesmo amainada temporariamente sob o bonapartismo, continuava a se desenvolver constante e silenciosamente até o momento em que irromperia novamente não tardou a se mostrar acertada: em 1871, o movimento operário, que já vinha se reorganizando na década de 1860, abalaria de forma inaudita os alicerces da sociedade burguesa com o advento da Comuna de Paris, fundada sob os destroços do Segundo Império.

Essa luta de classes “congelada” – ou “imobilizada em equilíbrio”, para lembrarmos as palavras de Draper (que se referiu à sociedade civil sob o bonapartismo como um sociedade “engessada”[6]) –, como o próprio Engels assinalou ao final do último trecho citado, se constituiria na base política para o desenvolvimento industrial capitalista da França. Essa relação causal entre a formatação política bonapartista e o progresso do capitalismo francês seria apontada de uma maneira mais contundente por Marx em sua A guerra civil na França (1871). Aliás, seria justamente em uma “introdução” de 1891 para a terceira edição alemã desta obra de Marx (portanto, vinte anos depois de sua primeira publicação) que Engels exporia novamente tal nexo entre poder bonapartista e crescimento capitalista, retomando também à caracterização feita à época por Marx do regime francês como expressão política de um momento de equilíbrio entre as classes fundamentais da sociedade moderna:

 “Se o proletariado não estava ainda em condições de governar a França, a burguesia já não podia seguir governando-a. Pelo menos naquele momento, em que sua maioria era ainda de tendências monárquicas e se encontrava dividida em três partidos dinásticos [orleanistas, legitimistas e bonapartistas] e o quarto republicano. Suas discórdias intestinas permitiram ao aventureiro Luís Bonaparte apoderar-se de todos os postos de mando – exército, polícia, aparato administrativo – e fazer saltar, a 2 de dezembro de 1851, o último baluarte da sociedade burguesa: a Assembléia Nacional. Assim começou o Segundo Império, a exploração da França por uma quadrilha de aventureiros políticos e financeiros, mas também, ao mesmo tempo, um desenvolvimento industrial como jamais teria sido possível conceber-se sob o sistema mesquinho e pusilânime de Luís Felipe, no qual a dominação exclusiva se encontrava em mãos de um pequeno setor da grande burguesia. Luís Bonaparte retirou dos capitalistas o poder político com o pretexto de lhes defender, de defender os burgueses contra os operários, e, por outro lado, de defender os operários contra a burguesia; mas, ao invés disso, seu regime estimulou a especulação e as atividades industriais: em uma palavra, o auge e o enriquecimento de toda a burguesia em proporções até então desconhecidas. Certo é que foram ainda maiores as proporções em que se desenvolveram a corrupção e o roubo em massa, que pululavam em torno da corte imperial e retiravam bons dividendos deste enriquecimento.”[7]

A observação conjunta dos bonapartismos existentes nos dois lados do Reno possibilitou a Engels, abstraindo os traços comuns a ambos, forjar uma definição conceitual que extrapolasse uma experiência concreta em particular. No supracitado artigo “A questão militar prussiana…”, aproximando o Segundo Reich alemão do Segundo Império francês, apresentou uma interpretação do fenômeno bonapartista que, embora fundamentalmente baseada na situação histórica concreta analisada por Marx em O 18 brumário, poderia ser extensiva à experiência alemã em curso. O bonapartismo era tomado, assim, como “a forma necessária de Estado num país onde a classe operária, ainda que tenha atingido um alto nível de desenvolvimento nas cidades, mas numericamente inferior aos pequenos camponeses no campo, foi vencida num grande combate revolucionário pela classe dos capitalistas, a pequena-burguesia e o exército”.[8]



[1] Embora, ao que consta, não tenha sido sequer utilizada outra vez pelo próprio Engels, essa exagerada definição do bonapartismo (“religião da burguesia”) embasaria as elaborações de Poulantzas acerca da estrutural (permanente) “autonomia relativa do Estado capitalista” face às classes sociais. Do mesmo modo, essa noção do bonapartismo como a “forma normal” de regime político adotado pela burguesia contemporânea parece estar também na base da ampla acepção do conceito proposta por Domenico Losurdo (ainda que o filósofo italiano, diferentemente de Poulantzas, não se refira às palavras de Engels em questão).

[2] Uma interessante discussão acerca dos escritos de Engels (e Marx) sobre o bismarckismo pode ser encontrada em DRAPER, Hall. Karl Marx’s theory of revolucion (volume I: State and bureaucracy. Chapter 15: Bonapartism:The Bismarckian extension”). New York: Monthly Review, 1977.

[3] ENGELS, Friedrich. “Introdução (de 1895)” a MARX. K. As lutas de classes na França (1848-1850). in ____. e ENGELS, F. Obras escolhidas, volume I. São Paulo: Alfa-ômega, s. d., p. 99-100. Muito possivelmente, acreditamos, foi nesta conhecida e polêmica “Introdução” de Engels que Gramsci buscou inspiração para suas formulações teóricas para “hegemonia” e, sobretudo, “guerra de posição”.

[4] Provavelmente, Engels se refere aqui ao envio de tropas francesas à China (1857-1860), então em processo de partilha pelas potências européias. Sob Napoleão III, a França, entre outros conflitos internacionais, participou também das guerras da Criméia (1854-1856), da invasão do México (1862-1867) e da guerra franco-prussiana (1870-1871), a qual resultaria no fim do regime bonapartista e do Segundo Império (1852-1870).

[5] ENGELS, F. “A questão militar prussiana e o partido operário alemão” apud BARSOTTI, Paulo. Op. cit., p. 101-102.

[6] “Bonapartism: society in a plaster cast” (cuja tradução mais adequada talvez seja “a sociedade em um molde de gesso”). DRAPER, Hal. Op. cit., p. 407.

[7] ENGELS, F. “Introdução (de 1891)” a MARX, K. La guerra civil em Francia. Op. cit., p. 8-9.

[8] ENGELS, F. “A questão militar prussiana e o partido operário alemão” apud BARSOTTI, Paulo. Op. cit., p. 101.