A utilização, por Trotsky, da noção de “bonapartismo soviético” para caracterizar uma determinada fase da Revolução Russa faz parte de uma lógica interpretativa do processo revolucionário russo que tem nas analogias com a Revolução Francesa um de seus expedientes correntes. Após um bom período de discussão e polêmicas com seus companheiros da Oposição de Esquerda Internacional, Trotsky, por volta de meados dos anos 1930, chegou à conclusão de que o regime então vigente na URSS, mesmo não tendo lugar em um Estado capitalista (e sim em um “Estado Operário Burocraticamente Degenerado”), mereceria também receber o rótulo de bonapartista.[1] A consolidação bonapartista da burocracia soviética no poder seria, na perspectiva de Trotsky, um corolário do thermidor iniciado com a ascensão da fração estalinista ao controle do Estado quando da morte de Lênin, em 1924. Essa reação thermidoriana, por sua vez, teria se dado contra a ala revolucionária do partido bolchevique, a qual estivera à frente da condução política do país durante a fase jacobina do processo (1917-1924).
Produto, “em última instância”, de uma “aguda luta de classes entre o proletariado e a burguesia”, o bonapartismo de Stalin, tal como o Consulado ou o Império que encerraram o processo revolucionário francês, buscaria por fim ao momento dos radicalizados conflitos entre as várias frações políticas: “Com a ajuda dos aparatos burocrático e policial, o poder do ‘salvador’ do povo e árbitro da burocracia como casta dominante se elevou por cima da democracia soviética reduzindo-a a uma sombra de si mesma. A função objetiva do ‘salvador’ é proteger as novas formas de propriedade usurpando as funções políticas da classe dominante.”[2]
Cabe destacar, portanto, que em busca de uma caracterização sociopolítica do bonapartismo estalinista, Trotsky, distintamente de suas abordagens dos bonapartismos surgidos em Estados capitalistas,[3] recorre prioritariamente a uma comparação histórica com o período napoleônico clássico, e não com o Segundo Império, encabeçado por Luís Bonaparte.
Com efeito, o atual bonapartismo do Kremlin o comparamos com o da ascensão burguesa, não com o da decadência; com o Consulado e o Primeiro Império, não com Napoleão III, nem, muito menos, com Schleicher ou Doumergue. A propósito de tal analogia, não se tem a necessidade de atribuir a Stalin as características de Napoleão I; sempre que as condições sociais o exigem, o bonapartismo pode consolidar-se ao redor de figuras de calibres muito diversos.
Do ponto de vista que nos interessa, a distinta base social de ambos os bonapartismos, o de origem jacobina e o de origem soviética, é muito mais importante. No primeiro caso, se tratava da consolidação da revolução burguesa por meio da liquidação de seus princípios e instituições políticas. No segundo caso, se trata da consolidação de uma revolução operária e camponesa por meio do esmagamento do seu programa internacional, do seu partido dirigente, dos seus soviets. Levando até as últimas consequências a política do Thermidor, Napoleão combateu não só o mundo feudal como também a “plebe” e os círculos democráticos da pequena e média burguesia. Dessa forma concentrou os frutos do regime nascido da revolução nas mãos da nova aristocracia burguesa. Stalin não preserva as conquistas da revolução de Outubro só da contra-revolução feudal-burguesa, mas também contra os anseios dos operários, sua impaciência, seu descontentamento; esmaga a ala esquerda, que expressa as tendências históricas progressivas das massas trabalhadoras sem privilégios; cria uma nova aristocracia por meio da extrema diferenciação dos salários, dos privilégios, das hierarquias etc. Apoiando-se nos setores mais altos da nova hierarquia social contra os mais baixos – e às vezes fazendo o inverso –, Stalin conseguiu concentrar totalmente o poder em suas mãos. De que outra forma podemos chamar esse regime, senão de bonapartismo soviético?[4]
A “divinização” do líder (Stalin) e a técnica “plebiscitária” utilizada pela cúpula burocrática face às massas (que são convocadas a se posicionar “a favor ou contra o líder?”)[5] seriam alguns outros elementos que, para Trotsky, confirmariam a natureza bonapartista do estalinismo desde meados da década de 1930. Ampliando em demasia o leque de aplicação do conceito (bonapartismo), Trotsky esboça o argumento de que a estrutura básica do regime bonapartista é passível de se fazer presente em formações sociais as mais variadas, o que, em nossa concepção, acaba por conferir ao fenômeno uma dimensão histórico-temporal de proporções oceânicas:
O cesarismo – ou a sua forma burguesa, o bonapartismo – entra em cena na história quando a áspera luta entre dois adversários parece elevar o poder acima da nação e assegura aos governantes uma independência aparente relativamente às classes, não lhes deixando, na realidade, mais do que a liberdade de que precisam para defender os privilegiados. O regime estalinista, elevando-se acima de uma sociedade politicamente atomizada, apoiando-se na polícia e no corpo de oficiais, sem tolerar controle algum, é obviamente uma variação do bonapartismo – um bonapartismo de um novo tipo nunca visto antes na história. O cesarismo nasceu em uma sociedade baseada na escravatura e abalada por lutas intestinas. O bonapartismo foi um dos instrumentos do sistema capitalista nos seus períodos críticos. O estalinismo é uma variação, mas sobre as bases de um Estado operário, dilacerado pelo antagonismo entre a burocracia soviética organizada e armada e as massas laboriosas desarmadas.[6]
Fiel ao seu “internacionalismo metodológico”,[7] Trotsky considerava que, “em última análise”, o bonapartismo estalinista devia seu surgimento “ao atraso da revolução mundial”, ou, em outras palavras, “a demora do proletariado na solução dos problemas colocados a ele pela história”. Esperançoso, Trotsky apostava que um movimento revolucionário vitorioso na Europa balançaria não somente os regimes burgueses ultrarreacionários, como o fascismo, mas, também, o bonapartismo soviético. Como se sabe, contudo, o regime formatado pela burocracia estalinista desde a crise sucessória de 1924 ainda teria muitos anos de duração (1991), e seu fastígio político talvez não tenha se verificado nem mesmo na década de 1930 observada por Trotsky, e sim nos anos compreendidos entre a heróica vitória do Exército Vermelho sobre o nazi-fascismo e a morte do “Bonaparte” Stálin em 1953.
[1] Uma reconstituição analítica dos debates no interior da Oposição de Esquerda Internacional sobre o caráter do regime estalinista da URSS pode ser encontrada em DEUTSCHER, Isaac. Trotski. O profeta banido (1929-1940). 2ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984.
p. 310-340.
[2] TROTSKY. L. “Otra vez sobre la cuestión del bonapartismo. El bonapartismo burgués y el bonapartismo soviético” Extraído de http://www.marxists.org/espanol/trotsky/ceip/escritos/libro4/T06V203.htm. (acessado em 26/07/2011). Tradução nossa.
[3] Ver DEMIER, Felipe. O longo bonapartismo brasileiro (1930-1964): autonomização relativa do Estado, populismo, historiografia e movimento operário. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal Fluminense, ICHF/PPGH, Niterói, 2012. Mais precisamente, ver o capítulo “Trotsky e os vários bonapartismos” (http://www.historia.uff.br/stricto/td/1389.pdf).
[4] TROTSKY, L. “El Estado obrero, el Thermidor y el Bonapartismo”. Extraído de http://www.marxists.org/espanol/trotsky/ceip/escritos/libro4/T06V127.htm. (acessado em 26/07/2011). Tradução nossa.
[5] TROTSKY. L. A revolução traída. Op. cit., p. 244-245
[6] Idem. p. 244. Domenico Losurdo criticou duramente a caracterização feita por Trotsky do estalinismo como uma forma bonapartista de regime político. Segundo o filósofo italiano, a fonte do poder de Stalin não residiria em seu carisma pessoal ou em seu controle dos meios de comunicação de massa, e sim na atividade e na propaganda de “milhares ou milhões de ativistas e militantes de partido, convencidos, certa ou erradamente, de lutar pela realização de um determinado modelo de sociedade, em conformidade com o patrimônio de idéias de uma precisa tradição revolucionária”. Para Losurdo, tais aspectos, como a existência mediadora de um partido e de um programa políticos na relação entre o líder nacional e as massas populares, iriam de encontro à definição do modelo de bonapartismo por ele traçado. Poucas linhas adiante, Losurdo, mal disfarçando suas preferências políticas estalinistas, afirma que a vitória de Stalin representou a vitória de um “aparelho de partido e de Estado que se autonomiza progressivamente da base por ele ‘representada’ e que derrota uma possível alternativa de tipo bonapartista, que poderia facilmente encarnar-se no líder vitorioso do Exército Vermelho, dotado de um carisma desconhecido nos outros líderes bolcheviques e que, mais do que qualquer outro, parece encarnar a missão de exportação para o mundo de um modelo superior de sociedade e de civilização”. (LOSURDO, Domenico. Triunfo e decadência do sufrágio universal. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ/ São Paulo: Ed. UNESP, 2004, p. 199.). Na incrível ginástica factual/contra-factual de Losurdo, Stalin aparece como um representante (ainda que autonomizado) de um partido que encarna uma tradição revolucionária, enquanto o internacionalismo de Trotsky não passa de mais uma expressão de seus anseios bonapartistas-militaristas. Um pouco pesado, não acham?
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