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TEORIA

Levitando sapos: uma defesa da ciência das sextas-feiras à noite

Alvaro Bianchi

(Este artigo foi escrito durante sextas-feiras à noite.)

O conhecido Ig Nobel Prize é um evento sério. Em 2013 cientistas chineses foram premiados por um estudo sobre os efeitos da audição de óperas em ratos submetidos a transplante de coração (UCHIYAMA et al., 2012); franceses e americanos por terem comprovado experimentalmente que homens bêbados acreditam que são atraentes (BÈGUE et al., 2012); uma equipe italiana por descobrir que pessoas podem correr sobre a superfície de um lago, se as pessoas e o lago estiverem na lua (MINETTI et al., 2012); e cientistas tailandeses por desenvolverem técnicas para o tratamento de casos de pênis amputados, as quais eram altamente recomendadas, exceto nos casos nos quais o pênis tivesse sido parcialmente comido por um pato (BHANGANADA et al., 1983). O que estas pesquisas tem em comum é o fato de terem sido publicadas em algumas das mais importantes revistas acadêmicas do mundo.

Para os cientistas o Ig Nobel Prize é uma oportunidade imperdível para exercerem a autorreflexão necessária para a produção do conhecimento. Sua revista Annals of Improbable Research sumariza investigações das mais inusitadas, muitas vezes promovidas por importantes centros de pesquisa; a cerimônia de premiação atrai cientistas consagrados ao Sanders Theatre da Harvard University; e ela é transmitida ao vivo pela National Public Radio. O prêmio é entregue por ganhadores do Nobel e os vencedores expõem os resultados de suas pesquisa no prestigiado MIT. Os que não conseguem reconhecimento devido a suas descobertas científicas ainda tem a chance, como Albert Einstein, de fazer parte da galeria The Luxuriant Flowing Hair Club for Scientists (LFHCfS), do qual fazem parte cientistas que tem ou acreditam ter  “uma luxuriante cabeleira”.

Quem pensa que o Ig Nobel não é sério precisa mudar seu jeito de ver a ciência. Em 2000, Andre Geim, da University of Nijmegen (Holanda), e Sir Michael Berry, da Bristol University (Inglaterra), arrebataram o Prêmio Ig Nobel de Física com uma inusitada pesquisa a respeito da levitação de sapos utilizando magnetos, fato lhes deu notoriedade. O feito foi anunciado na revista European Journal of Physics, de 1997 e explicado pra um público mais amplo na Physics Today de 1998, na qual era demonstrada a levitação sapos, insetos e de uma bolha d`água.

Mas por que sapos e não objetos mais “científicos” como grafite, tubos plásticos ou mesmo um lápis? Segundo o Nijmegen High Field Magnet Laboratory, os sapos foram escolhidos para “chamar a atenção de um público mais amplo e na esperança de que pesquisadores de várias disciplinas, e não apenas físicos, nunca esqueça essa força frequentemente negligenciadas e as oportunidades que ela oferece.” E, é claro, para que os estudantes dos fenômenos magnéticos “não fiquem tão entediados”.

Além de brincar de mágico e chocar a audiência acadêmica com seu humor, Geim investigou o grafeno bidimensional, um componente extremamente flexível, forte, leve e quase transparente. Cientistas consideram esse material a chave para uma nova geração de supercondutores. O grafeno é composto por uma única camada de átomos de Carbono compactados em uma grade de duas dimensões. Geim e seu colega Novoselov obtiveram o grafeno de modo inesperado, quando analisaram as partículas que ficavam presas a uma fita adesiva que utilizavam para limpar a superfície de um bloco de grafite. Suas pesquisas com esse a material tornaram o levitador de sapos o vencedor do prêmio Nobel de 2010.

Em sua lecture por ocasião do recebimento do prêmio Nobel, Geim também narrou a descoberta da “fita lagartixa”. Lendo um artigo sobre as lagartixas, o físico descobriu que a aderência de suas patas às paredes era decorrente dos milhões de pequenos pelos que estas possuíam nos dedos. Cada pelo prendia-se à superfície oposta com uma diminuta força de van der Waals.[1] Milhões desses pequenos pelos, reunidos na ponta dos dedos das lagartixas eram capazes de criar uma força de atração impressionante. Geim usou esse princípio para criar uma fita que simulava as patas peludas da lagartixa. Embora tivessem conseguido produzir a fita e ela se comportasse da mesma maneira que as patas do pequeno réptil ela rapidamente perdia suas propriedades e a aderência desejada.

Sapos, grafeno e lagartixas são áreas de pesquisa independentes para Geim. Mas elas foram desenvolvidas a partir de uma prática científica comum, que o próprio físico denomina de Friday Night experiments. Trata-se de investigações realizadas à margem da área principal de especialização e de trabalho que podem levar a “resultados interessantes, mesmo que partindo de ideias extremamente básicas” (GEIM, 2010, p. 75) Contabilizando seus Friday Nights experiments, Geim listou quase duas dúzias deles. A maioria fracassou, mas a levitação de sapos, o grafeno e a “fita lagartixa” constituíram três estrondosos sucessos e conduziram seu autor ao topo da física contemporânea, ao Ig Nobel e, por fim, ao cobiçado Nobel de Física. Uma vida acadêmica extremamente produtiva, com uma taxa de sucesso superior a 10% e ao mesmo tempo divertida e estimulante nasceu nas ociosas noites de sexta-feira.

Ciência crítica e imaginação

O que faz das noites de sexta-feira mais criativas para a atividade científica? Fundamentalmente a ausência de pressões externas e a livre associação de ideias. Sem muitas contas a prestar, relatórios a redigir, papers a escrever e formulários a preencher, o cientista pode se concentrar naquilo que realmente gosta de fazer: ciência. Afastado voluntariamente de sua área de especialização ele toma distância dos procedimentos canônicos, dos experimentos rotineiros, da bibliografia básica e arrisca-se a pensar fora dos padrões previamente estabelecidos, atirando-se em direção ao desconhecido ou, simplesmente, brincar com sapos, fitas adesivas e lagartixas.

A sexta-feira permite fugir daquilo que Thomas Kuhn chamou de “ciência normal”, aquela atividade científica baseada em um paradigma solidamente estabelecido e cuja maior preocupação é mostrar pela enésima vez sua consistência ou descobrir novas e rentáveis aplicações para aquilo que já é conhecido. Permite, também, afastar-se da ciência guiada por uma razão instrumental, a qual só reconhece como legítimo o conhecimento que se converte em um meio para a obtenção de fins.

A razão instrumental está marcada pela capacidade de calcular probabilidades e desta forma decidir a respeito dos meios que devem ser utilizados par atingir um fim determinado. Mas essa razão diz pouco sobre os fins em si. Tanto faz se eles são racionais ou irracionais, justos ou injustos. Nessa perspectiva os fins estão isentos de toda justificativa moral. Onde estaria, então, a fonte de legitimidade dos fins? No capitalismo contemporâneo a razão instrumental encontraria sua legitimidade no mercado, no Estado ou em uma combinação de ambos. A mão invisível de Adam Smith e o Leviatã de Hobbes são as forças sociais que selecionam perdedores e ganhadores, fins legítimos e ilegítimos.  Acumulação de riqueza e poder. Estes são os fins últimos. É apenas como força produtiva de riqueza e poder, ou seja, como técnica, que a ciência encontraria sua legitimidade.

Um caminho diferente para a ciência é aquele apontado pela razão crítica, a qual se apoia na ideia de que os fins podem ser racionais por si mesmos e portanto legítimos. Para a razão crítica mercado e o Estado não são reconhecidos como os tribunais exclusivos da legitimidade do conhecimento. Este é legítimo devido a suas qualidades intrínsecas e independentemente de qualquer ganho ou lucro que se possa auferir no presente ou no futuro.

O senso comum contemporâneo professa uma razão instrumental e manifesta estranheza perante a razão crítica. Para este, a ciência e o conhecimento deveriam ter efeitos práticos imediatos, caso contrário não se justificaria tanto esforço. O senso comum vê a ciência e os cientistas com um misto de temor perante o desconhecido e desprezo pelo que não pode compreender. Mas esse senso comum não está muito longe das orientações das agências de fomento. Elas tem claramente apontado a direção, com editais específicos que estimulam o desenvolvimento de novas tecnologias aplicadas à solução de problemas práticos. A Plataforma Lattes incorporou essa orientação há muitos anos, incluindo um formulário sobre o “campo de aplicação” de pesquisas e artigos científicos.

O que essa orientação instrumental elimina é a ciência das sextas-feiras. Para o senso comum e a burocracia acadêmica, essa é uma medida importante para acabar com o desperdício de energias e recursos. Mas é também uma barreira à imaginação científica e ao desenvolvimento da ciência crítica. Sem os experimentos de sexta-feira, ou seja, sem a livre imaginação cientifica, não é possível ir muito longe. Se o objetivo for aplicar um conhecimento criado alhures, tudo bem. Mas se a intenção for criar um novo conhecimento cientifico e revolucionar um campo de conhecimento, então é preciso romper as amarras burocráticas e ousar.

Referências bibliográficas

BÈGUE, Laurent et al. “Beauty Is in the Eye of the Beer Holder”: People Who Think They Are Drunk Also Think They Are Attractive. British Journal of Psychology, epub May 15, 2012.

BERRY, Michael; GEIM, Andre.  Of Flying Frogs and Levitrons. European Journal of Physics, v. 18, n. 4, p. 307-313, 1997.

BHANGANADA, Kasian et al. Surgical Management of an Epidemic of Penile Amputations in Siam. American Journal of Surgery, n. 146, p. 376-382, 1983.

GEIM, Andre. Everyone’s Magnetism. Physics Today, v. 51, n. 9, p. 36-39, 1998.

GEIM, Andre. Random Walk to Graphene. Nobel Lecture, December 8, 2010. Disponível em: http://bit.ly/QrQzZP

IUPAC. Compendium of Chemical Terminology: Golden Book. Version 2.3.3. S. l.:  International Union of Pure and Applied Chemistry, 2014. Disponivel em: http://bit.ly/1k0yQ5J

MINETTI, Alberto E. et al.. Humans Running in Place on Water at Simulated Reduced Gravity. PLoS ONE, v. 7, n. 7, 2012, e37300.

UCHIYAMA, Masateru et al. Auditory stimulation of opera music induced prolongation of murine cardiac allograft survival and maintained generation of regulatory CD4+CD25+ cells. Journal of Cardiothoracic Surgery, v. 7, n. 26, epub. March 23, 2012



[1] Forças de van der Waals são todas aquelas forças que não são decorrência de ligações covalentes entre moléculas ou da interação eletroestática de íons (IUPAC, 2014, p. 1588).

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