Henrique Carneiro
A política de guerra às drogas vive um impasse global. Pela primeira vez dois estados dos Estados Unidos, Colorado e Washington, e um país, o Uruguai, legalizaram a maconha. Os usos medicinais dessa planta se consolidam em inúmeros países para diversos males, 21 estados norte-americanos já permitem isso e no Brasil cresce o clamor de mães com filhos portadores de epilepsias graves que tiveram seus quadros aliviados enormemente com o uso de extratos de maconha ricos em Canabidiol (CBD), um dos princípios ativos existentes.
Outras drogas ilícitas também demonstram promissores usos terapêuticos, como o ecstasy (MDMA) que vêm sendo usado para tratamento da síndrome do estresse pós-traumático, e o LSD para pacientes terminais. A ibogaína vem sendo empregada com grande êxito na recuperação de dependentes graves. E a DMT e Harmalina presentes na bebida ayahuasca também são substâncias com grande potencial de usos medicinais.
O uso recreacional de drogas é parte integral de praticamente todas as sociedades humanas e diz respeito a uma esfera de privacidade e intimidade que deve ser resguardada como um direito civil indispensável. Os danos decorrentes do uso crônico ou agudo de todas as drogas devem ser prevenidos por informação adequada, regras estritas de uso controlado e controle sanitário da qualidade e pureza das substâncias, como ocorre com qualquer outro medicamento ou alimento. Aos casos de uso problemático deve se oferecida assistência médica, psicoterapêutica e social em tratamentos voluntários em serviços públicos devidamente equipados, que hoje quase não existem na forma sequer dos Centros de Atenção Psicossocial-Álcool e Drogas (CAPS-AD), com o Estado preferindo financiar entidades privadas religiosas.
Mas, além do uso recreacional de milhões de pessoas, a maconha (e também outras drogas ilícitas, como os psicodélicos) tem um importante e crescente uso medicinal. A legalização em 21 estado norte-americanos do uso médico é uma prova de que essa demanda é um clamor social, por pacientes de doenças graves, que necessitam do direito de acesso aos seus meios de cura e apaziguamento do sofrimento.
O uso industrial, para produção de fibra, papel, alimentos, óleos e centenas ou milhares de produtos derivados oferece outra utilidade da maconha, com potencial econômico e ecologicamente vantajoso, para diversos ramos da economia.
A marcha da maconha ocorrida em 26 de abril de 2014 em São Paulo foi a maior até hoje realizada, contando com cerca de dez mil pessoas. As marchas da maconha no Brasil no decorrer deste semestre tendem a ser maiores do que as dos anos anteriores e o debate se espalha por toda a sociedade. Há dois projetos no Congresso e uma iniciativa popular no Senado, que, no entanto, foram apresentadas num período de final de legislaturas que vai, certamente, colocar o tema para após o resultado das eleições que definirão os novos parlamentos nacional e estaduais. Um dos desafios do movimento antiproibicionista é formular uma proposta unificada que seja um denominador comum para o debate no âmbito do parlamento, do judiciário e, sobretudo, da sociedade.
A criminalização das drogas é hoje uma das maiores fontes de lavagem de dinheiro e especulação financeira de grandes banqueiros, e o exemplo do helicóptero de um clã político mineiro carregado com quase 500 quilos de cocaína demonstra como o grande tráfico é abafado pela imprensa e pela polícia.
Embora a legislação atual defina que o consumo pessoal não deve ser penalizado, como não há definição clara em base a quantidades definidas, continuam sendo aprisionados consumidores e pequenos traficantes que alcançam hoje cerca de 150 mil pessoas aprisionadas sem crimes de violência, ou seja, 30% de todos os presos no sistema penal que triplicou na última década. Os condenados por drogas ilícitas que não tenham cometido outros crimes deveriam ser anistiados.
O pretexto para as abordagens mais brutais e para o acosso permanente dos jovens da periferia das grandes cidades é a perseguição às drogas. De Amarildo à Cláudia ou Douglas, os mortos diários nas favelas são sempre sob a justificativa da guerra às drogas. A proibição causou, como na época da Lei Seca nos Estados Unidos, entre 1919 e 1933, um aumento na renda do comércio clandestino que impulsionou o crime organizado e intensificou a violência na guerra das gangues entre si e com a polícia, que é também corrompida pela pressão do dinheiro fácil disponível. Países como México e Brasil reproduzem de forma ampliada máfias como as de Chicago nos anos 20 que fazem do tráfico um dos ramos mais lucrativos para si e para o sistema financeiro, cujos bancos lavam e usufruem desses enormes capitais.
A legalização é uma reivindicação urgente de grande importância social, não só para os muitos milhões de consumidores, mas para toda a população que sofre a violência da repressão ao tráfico e do próprio tráfico e a inexistência de acesso a um remédio útil, barato e sem riscos de letalidade ou fortes efeitos colaterais.
O modelo dessa legalização é um tema em debate, e o modelo uruguaio de fornecimento estatal surge como uma excelente proposta que pode limitar o risco de grandes oligopólios privados assumirem esse negócio como já ocorre com o tabaco e o álcool.
No entanto, o modelo uruguaio continua a proibir outras substâncias, estabelece um cadastro dos consumidores legais de maconha e ainda não definiu como exatamente será o sistema de produção. A adoção da internação involuntária para tratamento de dependentes também é um aspecto criticável do projeto uruguaio.
O direito do auto-cultivo surge como condição indispensável para que os usuários possam prescindir do mercado e se autoabastecerem. Um sistema de produtores cooperativados que pudesse fazer a distribuição em pequena escala seria, combinado com o auto-cultivo e o fornecimento atacadista pelo Estado uma solução interessante que se oporia ao domínio monopolístico privado, à publicidade incentivadora do uso e poderia destinar a verba arrecadada para fins sociais. No estado do Colorado, por exemplo, os primeiros 40 milhões obtidos na arrecadação de impostos com a maconha deverá ser destinada integralmente para a construção de escolas. Um projeto que destinasse a totalidade da renda da grande produção e distribuição de drogas para fins sociais reverteria o sentido atual, belicoso, corrupto e violento, do lucro das drogas, para um fundo social de interesse público.
Uma alternativa socialista deve, antes de tudo, considerar o respeito aos consumidores, recusar a discriminação opressiva e repressiva contra seus direitos humanos fundamentais, defendendo a plena legalização de todas as drogas, sob distintos mecanismos de regulação, e propor que os lucros do comércio de drogas sejam destinados a fins de interesse público. Isso não apenas com a maconha, mas também em relação ao tabaco, às bebidas alcoólicas e à indústria farmacêutica que deveriam ter a sua grande produção e comércio atacadista estatizado de forma a dirigir toda a renda para o interesse social.
Hoje o Brasil tem na cervejeira Ambev a maior empresa nacional e a maior exportação de tabaco do mundo nas mãos de multinacionais. O tabaco já foi estatal até mesmo na França, na Espanha e no Japão até a onda neoliberal das privatizações das última década do século XX, o que demonstra que esse modelo de controle estatal é viável, socialmente útil e capaz de reverter a renda do consumo de drogas para o interesse público.
O minifúndio camponês já fornece hoje grande parte do tabaco comprado pelos atacadistas das multinacionais. Se a maconha fosse legalizada, também haveria um enorme espaço de intervenção para o pequeno produtor agrícola rural e também urbano. As populações de comunidades carentes que hoje obtém parcelas ínfimas das rendas do tráfico sob os riscos de violência, poderiam ser estimuladas a se dedicar a plantios legais e de excelência, com venda varejista de micro-comerciantes e monopólio atacadista estatal.
A maconha possui enorme diversidade de cepas e composição em canabinóides. Algumas mais ricas em CBD são benéficas para tranquilização e analgesia, outras com mais THC, são aptas para excitação criativa estética e interação social. A identificação, como se faz nos coffee-shops holandeses, da composição exata em canabinóides permitirá a identificação e dosagem precisa das plantas mais adequadas às demandas dos usuários.
Como uma planta de cuidado intensivo, um cultivo pulverizado entre os próprios consumidores e um sistema de cooperativas e pequenos distribuidores poderia oferecer variedades peculiares e artesanais (como ocorre com as cervejas artesanais, por exemplo), retirando uma parte dos consumidores da própria dependência mercantil ou limitando a uma esfera de micro e pequenos empreendimentos, enquanto a distribuição atacadista poderia ser controlada por uma empresa estatal que garantiria a destinação social dessa renda, garantindo verbas destinadas com exclusividade à saúde, educação, etc.
As outras drogas hoje ilícitas devem ter cada uma regulamentação específica em termos de disponibilidade de acesso, com certas substâncias devendo ser objeto de maior controle, enquanto produtos como maconha e cerveja, devem apenas ser restritos a adultos e locais próprios de consumo.
Como eixos para a elaboração de um projeto de legalização e regulamentação do mercado de drogas, e particularmente da maconha, proponho os seguintes tópicos:
- Fim da repressão, legalização da maconha e demais drogas ilícitas.
- Destinação da renda do mercado de drogas para fins sociais, por meio do controle estatal da grande produção e do atacado, tanto para as atualmente ilícitas, como também para o tabaco, álcool e outras drogas lícitas.
- Os danos decorrentes do uso problemático ou crônico de drogas devem ser diminuídos por meio de prevenção e de tratamentos que deveriam ser financiados com a renda obtida pela estatização, cuja destinação deveria ser estabelecida por lei que fosse integralmente para áreas sociais como Saúde e Educação.
- Estímulo ao auto-cultivo, a cooperativas e ao pequeno comércio de maconha, como forma de viabilizar alternativas econômicas para comunidades carentes e para produtores de linhagens especiais de excelência.
- Incentivo ao uso medicinal da maconha, com estímulo à pesquisa científica e a adoção de tratamentos fitoterápicos com menos riscos e danos colaterais.
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