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TEORIA

Ditadura militar: contra os revisionismos

Vitor Henriques de Macedo

Considerando a disseminação crescente do reacionário revisionismo historiográfico acerca do Golpe de 1964, notadamente a partir das inversões interpretativas inauguradas pelo livro de Argelina Figueiredo (1993) e cuja devida crítica não é o objetivo aqui, tendo em vista também ser este o ano em que se completam 50 anos desse terrível período da nossa história e considerando, ainda, o recrudescimento da repressão contra as manifestações populares contestatórias, gostaria de recuperar a interpretação historiográfica do Golpe elaborada por Dreifuss (2008), no livro A conquista do Estado, deixada cada vez mais de lado pela pretensa constelação de intelectuais sem luz que fazem sucesso no mercado editorial.

Sua obra foi baseada tanto numa pesquisa empírica quanto num cabedal teórico muito superiores aos usados nas interpretações revisionistas posteriores, por mim conhecidas, e relembrar esse trabalho tem por finalidade destacar o que foi, no meu entendimento, a obra mais completa sobre a luta de classes por trás do processo histórico em questão, servindo, desta maneira, como base historiográfica e como “vacina” contra a miríade de títulos sobre o período que vem tomando conta de badaladas livrarias, em vitrines reluzentes, contendocapas bem produzidas e explicações medíocres.

O livro de Derifuss foi publicado a partir de sua tese de doutorado apresentada na Universidade de Glasgow (Escócia), no ano de 1980.

De início o autor analisa a formação do populismo no Brasil, a partir da queda de Getúlio. Segundo o mesmo, o pacto populista teria sido a maneira pela qual a burguesia tentou, a partir de meados da década de 1940, impor sua hegemonia sobre o Estado e teria sido conformado por uma limitada convergência de classe no poder (burguesia nacional, setores oligárquicos e trabalhadores) e pela estrutura sindical controlada, que restringia de forma autoritária a autonomia do movimento operário e limitava a mobilização das massas urbanas, tendo essa estrutura um alinhamento ideológico nacionalista, herdado do período getulista (idem, p. 36).

O populismo brasileiro, portanto, se manifestou pela “integração e articulação de diferentes classes sociais sob a liderança de um bloco de poder oligárquico-industrial” (idem, p. 53).

Sob esse Estado populista, em meados da década de 1940, após a 2ª Guerra, forjou-se uma identificação de interesse entre a burguesia nacional e parcela dos trabalhadores, identificação que tinha como uma de suas motivações a contenção do sindicalismo independente, assim, a burguesia nacional apresentava-se como nacionalista, em função de simular comunhão de interesses com os trabalhadores urbanos e por exigir o desenvolvimento nacional em oposição aos interesses imperialistas.

No entanto, o autor demonstra, mais adiante, que o real objetivo dos empresários “nacionalistas” girava em torno de exigências que pleiteavam produção industrial em solo brasileiro, eles não estavam preocupados com a origem do capital ou da tecnologia envolvidos.

Ao se estimular a produção industrial em solo brasileiro com financiamento multinacional gerou-se acumulação de capital vinculada à internacionalização da economia (Idem, p. 42), tendo em vista os interesses estrangeiros que haviam se renovado após a 2ª Guerra.

Em confluência com a internacionalização da economia, ainda em fins da década de 1940, grupos militares brasileiros (da Força Expedicionária Brasileira – FEB) aproximaram-se de militares norte-americanos, tendo sido influenciados por ideias de desenvolvimento industrial e de organização política (idem, p 35), formando-se, em 1948, a Escola Superior de Guerra (ESG) com militares anti-Vargas e alinhados com o partido de centro-direita UDN.

No governo de JK, adotou-se uma conduta econômica segundo a qual se contava com a tecnologia e técnicas gerenciais estrangeiras e com o capital transnacional para a superação do nosso atraso industrial, assim, segundo Dreifuss, JK “estabelecia as condições para a proeminência econômica do capital oligopolista multinacional e associado” (idem, p. 43).

Com o aprofundamento dessa política econômica, o pacto populista, na década de 1960, sofria dupla pressão em decorrência do acirramento do conflito de classes (idem, p. 157), de um lado os grupos multinacionais e associados pressionavam para que fossem extintas as intervenções no sentido de se alcançar um desenvolvimento pautado pelo nacionalismo, por outro, as classes trabalhadoras, cada vez mais organizadas, exerciam pressão para ampliação de direitos políticos e para que o Estado fosse mais atuante na regulação da relação entre capital e trabalho no campo e na cidade.

Quanto à questão da penetração dos interesses do capital multinacional e associado, ocorrida principalmente durante o governo de JK, o autor nos mostra como a burguesia imperialista, apesar de não conseguir, num primeiro momento, a inserção direta no Estado populista, o seu peso econômico por si só já a tornava um fator político central em fins da década de 1950 (idem, p. 58-73).

Com o objetivo de exercerem politicamente seu poder econômico, a despeito dos entraves burocráticos apresentados pelo Estado populista, os empresários e militares ligados aos grupos multinacionais teriam formado, inicialmente, os anéis burocrático-empresariais1, escritórios técnicos e centros burocráticos e militares de doutrinação e disseminação ideológica, educando os novos intelectuais orgânicos do bloco de poder multinacional e associado em desenvolvimento (idem, p. 116).

Essa primeira incursão política desses grupos, que constituiu, segundo Dreifuss, uma “administração paralela”, transformou-se em governo durante a gestão de Jânio Quadros, com diversos representantes empresariais e de membros da ESG em ministérios (idem. p. 138).

Após a renúncia de Jânio Quadros e ascensão de João Goulart, temerosa com possíveis aproximações de Goulart com as classes trabalhadoras a elite orgânica2 dos interesses multinacionais e associados partiram para a ação política propriamente dita.

Para explicar o êxito de tais grupos sobre o bloco populista e sobre as classes trabalhadoras, Dreifuss tenta entender como os intelectuais orgânicos da nova elite econômica se envolveram na luta política da década de 1960.

Nesse contexto passa a atuar o complexo IPES/IBAD de abrangência nacional, liderado e organizado por empresários e militares ligados à ESG e unificado por suas relações econômicas multinacionais, pelo seu posicionamento anticomunista e por sua ambição em readequar e reformular o Estado brasileiro (idem, p. 175).

Conforme nos mostra Dreifuss, esse complexo conseguiu, ao longo dos anos de governo de João Goulart, exercer influências no parlamento, em várias associações de classe empresariais, sobre os diferentes grupos militares, entre setores oligárquicos e sobre setores da classe média. Tentou ainda, não sendo bem-sucedido, exercer algum tipo de liderança sobre o movimento camponês, operário e estudantil, estando presente, portanto, em toda área social relevante de disputa e conflito, tendo sido imprescindível para o desenvolvimento da crise do modelo populista e consolidação do governo pós 1964.

Finalizando seu trabalho, Dreifuss demonstra como agentes ligados ao complexo IPES/IBAD e à ESG passaram a exercer influência e cargos de poder no Estado ditatorial que se instaurou (idem, p. 437-479).

Dessa forma, segundo o autor, o Golpe foi resultado da ação dos interesses multinacionais e associados contra a velha estrutura populista e uma reação desses mesmos interesses aos avanços das classes trabalhadoras urbanas e camponesas.

Crítica e anticrítica

Em sua crítica histórica, Dreifuss estabelece uma relação entre as ações dos personagens históricos mais relevantes com um contexto maior que os condiciona, além de expor as ligações entre os diferentes agentes com as classes sociais as quais representavam, demonstrando, dessa forma, a luta de classes por trás do movimento que culminou com o Golpe.

Para Dreifuss, Mourão Filho, notório sabotador desde o Plano Cohen até o boato que desencadeou o Golpe propriamente dito, não foi um “raio caído de um céu azul”, sua atitude foi o desfecho, embora espontâneo, de uma articulação (ou conspiração como alguns gostam de falar) que se formou ao longo dos anos de 1961/1964 e cujas bases foram lançadas no pós 2ª Guerra, quando os grupos multinacionais e associados renovaram seus interesses pelo Brasil, exercendo pressão desde então sobre o Estado para que fosse quebrado o pacto populista.

Embora alguns autores critiquem sua obra, após sua leitura, verificamos que várias críticas não se sustentam, uma vez que o que nos é apresentado é um imenso levantamento empírico, analisado e articulado com elementos individuais e de classe, o que permite que sejam verificadas estruturas políticas (como o populismo) e econômicas (interesses multinacionais e associados) em relação com a dinâmica social, que dá vida e movimento e essas estruturas.

Uma das críticas que se faz a Dreifuss diz respeito ao uso do conceito de “populismo” para caracterizar a estrutura política dominante no Brasil que ruiu com o Golpe.

As críticas ao uso desse conceito são diversas, Carlos Fico (2004, p. 61), por exemplo, alega que “Embora algumas pesquisas tenham utilizado a noção [de populismo] como norte analítico, o caráter enovelado e genérico do pretenso conceito não permitiu maiores esclarecimentos” (idem, p. 28).

Portanto, com o fito de legitimar o uso do termo na obra de Dreifuss, vamos compará-lo ao conceito de “trabalhismo” que, segundo uma parte dos críticos, seria o mais adequado para identificar a relação política dominante entre Estado de 1945-1964 e trabalhadores.

Para definir o “trabalhismo” vamos nos referir inicialmente a Ângela de Castro Gomes (2005, p. 211-233).

A autora, dentre outras fontes, pesquisou as idéias contidas nos discursos radiofônicos do Ministro do Trabalho Marcondes Filho (1942-1945), a fim de entender a política de “aproximação” com os trabalhadores, inaugurada a partir de então.

O ministro dirigia-se principalmente aos trabalhadores e a suas famílias com discursos sobre as novidades advindas da legislação social e sobre a implementação dessa legislação “outorgada” pelo Estado getulista, que, segundo as falas, seria clarividente e capaz de se antecipar aos conflitos sociais.

O Estado Novo tinha como um de seus objetivos esvaziar o movimento autônomo dos trabalhadores e colocar Getúlio na posição de líder das massas operárias. Para isso o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), em conjunto com a CLT (a legislação trabalhista) e com os aparelhos repressivos, exercia papel fundamental no estabelecimento do pacto trabalhista.

Esse projeto político denominado de “trabalhismo” e traduzido nos discursos do Ministro, segundo a autora, teria sido fundamental para a instituição de uma forte e perene tradição política no Brasil.

Para Ângela de C. Gomes o eixo orientador dessa tradição seria a lógica da reciprocidade, na qual o Estado, personificado em Vargas, assumia o papel de mediador de conflitos entre capital e trabalho, antecipando-se a esses conflitos pela concessão da tão demandada legislação social, cabendo à classe trabalhadora receber essa “dádiva” e retribuir ao Estado com trabalho e paz social, entregando-se ao seu poder ordenador.

É importante destacar, assim como feito pela autora, a dimensão tanto econômica, quanto política e principalmente moral deste pacto, que estabelecia uma relação na qual

“Ser cidadão – integrar o mundo definido como da política – era pertencer a uma totalidade econômica (trabalhar = produzir riquezas); jurídica (possuir carteira de trabalho) e moral (compreender o trabalho como um dever/direito).” (idem, p. 229)

A dimensão moral do contrato, tão ressaltada nos discursos do ministro, atribuía-lhe valores fora e acima dos valores que norteiam as trocas mercantis, residindo aí, segundo tese da autora, a força e a especificidade do pacto trabalhista, no qual o Estado como chefe e como pai, numa relação familiar e hierárquica com a população trabalhadora, conduzia a grande “família” nacional rumo ao progresso.

O trabalhismo, portanto, é um conceito que se propõe a esclarecer um status político próprio do período entre Getúlio e o Golpe de 1964, levando-se em conta a relação entre Estado e a crescente massa de trabalhadores urbanos e, se considerarmos como verdadeira a premissa de que as determinações contidas na CLT eram aplicadas como a parte que caberia ao Estado na lógica da reciprocidade trabalhista, o conceito teria grande pertinência na caracterização de um padrão político supostamente predominante no Brasil da época, mas sobre isso comentaremos adiante, por enquanto fiquemos com a noção elaborada por Ângela Gomes para o que se denominou de “pacto trabalhista”.

Após essa acepção de “pacto trabalhista”, consideremos o uso da expressão “sindicalismo populista” discutido por Marcelo B. Mattos. O autor nos indica o uso desse termo em Francisco Weffort que caracterizava no negativo a classe operária e sua ação sindical, enxergando nos indicadores de mobilização operária, como as greves, “manifestações conduzidas pelo alto, a partir das cúpulas do sindicalismo” (MATTOS, , 2003, p. 20) populista que, de acordo com Weffort, ideologicamente subordinava-se ao nacionalismo e ao colaboracionismo entre as classes e no plano organizacional era principalmente orientado pelo corporativismo de origem fascista e ligado a organizações paralelas menos tuteladas pelo Estado.

Diante disso, Marcelo B. Mattos faz a seguinte crítica à tradição analítica de Weffort e outros autores que compartilham dessa ideia de “sindicalismo populista”:

“A organização sindical, marcada pelo modelo do sindicato único, criado no primeiro governo Vargas, foi tomada, por essa tradição analítica, como uma estrutura tão rígida que capaz de, por princípio, determinar a inviabilidade de rumos contestatórios pelo movimento operário. Uma estrutura que sabidamente restritiva, teria sido aceita sem maiores resistências – por fraqueza ou oportunismo – pelas lideranças comunistas, que contribuiriam assim para uma acomodação operária, ansiosas que estariam pelas oportunidades de aproximação direta com as lideranças populistas ou iludidas pela ideologia nacional-desenvolvimentista.” (Idem, p. 20-21).

Em sua crítica, o autor alega, citando outros trabalhos com novos dados empíricos, que a ação operária não se pautava unicamente nos limites impostos pelo sindicalismo oficial, existiram outras instâncias organizativas e atuantes somadas àquelas ditadas pelo corporativismo estatal, além do fato de que as relações entre as bases e lideranças sindicais eram mais complexas do que se supôs, o que torna errôneo aplicar a noção simplista de movimentos puxados “pelo alto”. Segundo o autor, decepções com o desfecho histórico do governo de João Goulart teriam embalado análises redutoras do movimento operário, caracterizando-o negativamente sob o nome de “sindicalismo populista” (idem, p. 21-22).

Não obstante tais críticas, que se dirigem ao conceito de “sindicalismo populista”, e não ao de “populismo” diretamente, optamos pelo uso de “populismo” como norte analítico em vez de “trabalhismo” pelas razões que seguem.

Voltando ao trabalhismo, além de todas as críticas de ordem teórica elaboradas por Marcelo Mattos e dirigidas principalmente contra Jorge Ferreira que se propõe a abolir o uso de “populismo” colocando em seu lugar a novidade “trabalhista”, comparando-a equivocadamente à socialdemocracia europeia e opondo também de forma errônea teóricos marxistas como Antonio Gramsci e E. P. Thompson (idem, p. 303-35), esse pretenso conceito, por considerar como uma realidade a aplicação da CLT na mediação das relações entre trabalhadores urbanos e patrões, parte de uma fragilidade empírica fundamental, conforme comentou Marcelo Mattos, citando John French (idem, p. 30).

Tal fragilidade diz respeito ao fato de que a CLT constituía muito mais um objetivo a ser alcançado do que uma prática e, diante disso, o “pacto trabalhista” tem sua suposta existência e predominância seriamente questionadas, consequentemente o “trabalhismo” deixa de constituir um norte analítico funcional, pois seria aplicado a situações muito estritas no tempo e no espaço.

Soma-se a isso outro fator relacionado a essa troca de termos (de “populismo” por “trabalhismo”), apontado por Demian Melo (2009, p. 27-29), pois, essa substituição de conceitos, inaugurada por Ângela Gomes e reiterada por outros autores, guarda em si uma tendência reacionária da historiografia, porque, ao se negar o caráter passivo das classes trabalhadoras, anteriormente a elas atribuído pelo conceito de “sindicalismo populista”, os defensores do “trabalhismo” têm positivado as relações classistas da época, negligenciando tanto “as formas autoritárias e violentas com que as relações entre as classes se processaram sob aquele regime [populista]”, quanto a desigualdade de condições entre os atores políticos em jogo. Dessa maneira, nos explica Melo:

 “o que antes era entendido como exemplo de “limites” ao desenvolvimento da consciência de classe dos trabalhadores brasileiros é agora positivado, como estratégias da classe trabalhadora, “estratégias” estas que não visavam, de nenhum modo, superar o estranhamento das relações capitalistas” (idem, p. 28).

Deste modo, devido aos motivos acima comentados consideramos mais pertinente o uso de “populismo” ao de “trabalhismo”, desde que haja a atualização necessária daquele conceito, viabilizada por novos trabalhos a respeito das ações das classes operárias, a fim de que não seja repetida a ilusão de que houve classes trabalhadoras apáticas, inertes e totalmente enquadradas nos limites dados pelo “sindicalismo populista” e corporativista.

Portanto, o “populismo” a que Dreifuss se refere pretende dar conta do status político antecedente ao golpe, principalmente com base na difícil e instável relação entre Estado, burguesia nacional e trabalhadores urbanos (Dreifuss, p. 36).

O uso desse conceito na obra de Dreifuss não negligencia a necessidade do Estado em conter os movimentos autônomos dos trabalhadores pelos mecanismos de controle e repressão, enxergando-se as classes trabalhadoras como co-agentes do processo histórico com autonomia crescente ao longo dos anos que vão de Getúlio ao Golpe.

Dreifuss ainda considera até que ponto o estado populista interessava às burguesias nacionais e por que motivos ao longo do governo de Jango elas perderam seus interesses nesse padrão político, além disso, é delimitado na obra o uso desse termo ao contexto brasileiro.

Dessa forma, independentemente das críticas, Dreifuss utiliza a categoria de “populismo” como norte analítico de uma maneira bem operacional e satisfatória para o entendimento do período.

Além da censura ao uso desse termo, encontramos, dentre outras, a seguinte crítica a Dreifuss, cujo conteúdo também pretendemos discutir, feita por Argelina Figueiredo:

“Este tipo de análise [a de Dreifuss], no entanto, falha em fornecer uma explicação real, pois toma a mera existência de uma conspiração como condição suficiente para o sucesso do golpe político. Os conspiradores são vistos como onipotentes. Consequentemente a ação empreendida por eles não é analisada em relação a outros grupos, nem vista como sendo limitada por quaisquer constrangimentos externos” (Figueiredo, 1993, p. 27-28).

Após uma leitura atenta de Dreifuss, verificamos que tais assertivas não têm fundamento. Em momento nenhum a existência de uma conspiração é considerada como condição única para o sucesso do Golpe. Conforme acima comentado, o autor analisa a atuação do complexo IPES-IBAD nos principais pontos de conflito político – parlamento, classes empresariais, classes médias, movimento operário, estudantil e do campo, e, diferentemente da autora, sua visão da arena política é muito mais ampla, pois o mesmo não considera as pressões vindas de fora do parlamento como meros “constrangimentos externos” (idem, p. 28).

Além disso, Dreifuss enxerga as ligações que os grupos conspiradores começaram a estabelecer com o Estado desde o fim da 1ª Guerra, o que os levou a ter uma inserção temporária no governo, durante o período de Jânio Quadros e foi essencial para o sucesso da intervenção mais agressiva a partir de sua queda.

Portanto, as críticas de que os conspiradores são vistos como onipotentes e de que a ação empreendida pelos mesmos não é vista em relação a outros grupos ou limitada por quaisquer fatores externos não procedem e mais uma vez cabe ressaltar que para Dreifuss o Golpe foi simultaneamente uma ação e uma reação, ação dos conspiradores contra o Estado populista e uma reação contra os avanços dos movimentos de esquerda, deste modo, as ações dos conspiradores estavam relacionadas com diversas classes e grupos sociais e limitadas pelas condições políticas nas quais se davam tais relações.

Contra o revisionismo historiográfico

Parece-nos que o ponto fraco da interpretação canônica, apontado por Marcelo Badaró, decorre do fato de o autor focar sua análise sobre os grupos em articulação para efetivação do golpe e não sobre o movimento dos trabalhadores, o que “acaba reforçando as formulações anteriores, sobre a inexistência ou inconsistência da capacidade de intervenção organizada da classe, dados os limites do sindicalismo de então” (Mattos, 2005, p. 11).

Isso realmente constitui uma fragilidade do trabalho em questão, pois, embora sejam mencionadas a existência e a pressão que organizações de trabalhadores urbanos e do campo exerciam no decorrer do processo histórico, a obra aqui analisada deixa lacunas na explicação de como funcionavam essas organizações, mas nem esse trabalho e nenhum outro dá conta de tudo.

Outro ponto que carece de esclarecimentos na obra em tela diz respeito à dinâmica no interior das forças armadas, um exemplo de uma abordagem enriquecedora nesse sentido está num artigo Felipe Demier (2005) denominado, no qual é sugerido que a “virada política” de apoio ao Golpe por parte de militares outrora legalistas esteve em função de interesses classistas.

O autor aduz que a mudança de posição desses militares teria ocorrido em razão de terem vislumbrado perder suas posições sociais, tendo em vista a crescente autonomização das organizações dos trabalhadores e dos militares integrantes das baixas hierarquias.

Por esse viés interpretativo, por exemplo, os golpistas ganharam força em função do medo das classes dominantes com o processo de ampliação da democracia em curso, o que se coaduna com a tese de Dreifuss e certamente a enriquece.

Mais um exemplo de leitura que nos ajuda a entender melhor o período é Sônia Regina de Mendonça (1986), a qual localiza a natureza da crise econômica da época e nos explica que o modelo econômico nacional-desenvolvimentista inaugurado por JK, cuja geração de divisas dependia principalmente da emissão de moeda e do financiamento externo, numa conjuntura internacional de expansão capitalista (idem, p. 45-57), condicionava o aquecimento da economia brasileira ao endividamento externo e à desvalorização salarial3 em virtude do processo inflacionário que desencadeava.

Em contrapartida à constante desvalorização salarial, o governo reforçava a aliança populista com os trabalhadores pela ampliação das ofertas de empregos e pela concessão de espaços dentro da burocracia estatal a líderes PTBistas (idem, p. 68 e 76).

Durante o nacional-desenvolvimentismo, conforme nos ensina Sonia Regina, o Estado era forte, pois assumia os papéis de regulador do preço da mão de obra, agregador de capital estrangeiro, financiador de investimentos e fornecedor das condições de produção, um verdadeiro promotor dos empreendimentos burgueses, cujos lucros auferidos à época comprovam-se pela brusca ascensão de índices dos produtos reais notadamente nos setores industrial e de transportes, durante os anos que vão de 1939 a 1959 (idem, p. 58).

A crise desse modelo de acumulação, no início da década de 1960, expressa na insuficiência de capitais para investimento, decorreu principalmente, de acordo com Sonia Regina, do esgotamento do financiamento estatal (mega endividado) e do crescente medo estrangeiro em remeter capitais ao Brasil, face à ameaça da quebra do pacto populista e do consequente risco de desestabilização do regime por causa das manifestações políticas (idem, p. 85-86).

Sob essas condições, as vias de retomada do crescimento econômico colocadas a Jango eram basicamente duas: ou se rompia de vez com o pacto populista pela adoção do caminho típico para superação de crises, intensificando-se a exploração do trabalho e a concentração de empresas e de capital, como foi o caso após o Golpe (idem, p. 92); ou se aplicava políticas redistributivas que incidissem sobre os lucros empresariais, conforme as reivindicações populares da época.

Portanto, tentar ampliar o entendimento sobre o período com maior foco sobre demais fatores envolvidos no processo como as classes trabalhadoras, o movimento estudantil, os militares de baixa patente, a crise econômica etc, não anula as conclusões a que chegou Dreifuss e ajuda a ampliar e a tornar mais complexo nosso conhecimento.

Assim sendo, é importante historiadores seguirem adiante com o fito de melhor esclarecer outros fatores que influenciaram o processo, mas mais do que nunca, é necessário saber distinguir estudos consistentes de falácias revisionistas, essas “novas abordagens” em nada ou quase nada tem esclarecido sobre o processo histórico em si, elas, na verdade, tem sido muito bem aproveitadas como retórica para indulgência da grande mídia4, pondo, dessa forma, acadêmicos a serviço daquilo que é uma lamentável característica histórica brasileira, segundo a qual rompe-se, mas sem rupturas.

Referências bibliográficas

DEMIER, Felipe Abranches. A Legalidade do Golpe: o controle dos trabalhadores como condição para o respeito às leis. História e luta de classes, a. 1, n. 1, abr. 2005, p. 29-41

DREIFUSS, René Armand. A conquista do Estado: ação política, poder e golpe de classe. 7 ed. Petrópolis: Vozes, 2008.

FIGUEIREDO, Argelina Cheibub,. Democracia ou Reformas? Alternativas democráticas à crise política: 1961-196. São Paulo: Paz e Terra, 1993.

GOMES, Ângela de castro. A invenção do trabalhismo. 3 ed. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2005.

MATTOS, Marcelo Badaró (coord.). Greves e repressão policial ao sindicalismo carioca: 1945-1964. Rio de Janeiro: FAPERJ, 2003.

MATTOS, Marcelo Badaró, Os trabalhadores e o golpe de 1964: um balanço da historiografia em História e luta de classes, a. 1, n. 1, abr. 2005.

MELO, Demian Bezerra de. O Plebiscito de 1963: inflexão de forças na crise orgânica dos anos sessenta. Dissertação de mestrado (História). Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2009.

MENDONÇA, Sonia Regina de. Estado e economia no Brasil: opções de desenvolvimento. 3 ed. São Paulo: Graal, 1986

Notas:

1Esses anéis são pontos de influência indireta de uma classe sobre o Estado, nesse caso, a influência foi exercida pelas classes empresariais, ligadas aos grupos multinacionais e associados. A formação desses anéis foi anterior à consolidação da hegemonia transnacional sobre o estado brasileiro.

2Por elite orgânica entende-se aquela parcela dentre empresários e militares capazes de serem organizadores de seus interesses e da sociedade, com objetivo de intervir na política de maneira com que seus interesses particulares pareçam coletivos (Dreifuss, 2008, p. 173)

3Idem, p. 92. Nesta página, a relação entre a desvalorização salarial e processo inflacionário é muito bem ilustrada numa tabela de Otavio Ianni, reproduzida por Sonia Regina, na qual se comparam o salário nominal e o seu valor real durante os anos de crise econômica de 1958 a 69, a partir da interpretação dos dados, verifica-se que, apesar de o valor nominal do salário, de 1958 a 69, ter subido de NCr$ 8,54 para NCr$ 460,83, sua variação real é negativa. O salário real em 1969 foi 22,95% mais baixo que o de 1958.

4http://blogconvergencia.org/blogconvergencia/?cat=103

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