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TEORIA

Adeus a Silvana Finzi Foá

 Alvaro Bianchi

Ao anoitecer de domingo o telefone começou a tocar na casa de antigos militantes da Convergência Socialista (CS) e do Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU). Eram companheiros avisando que Silvana Finzi Foá havia falecido, depois de muitos anos doente. Silvana havia começado a militar com os socialistas no começo dos anos 1980, juntamente com seu companheiro Valter Cosenza, anos mais tarde, seus filhos Ana e Luiz também entraram para o partido.

Formada em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo, Silvana foi da primeira turma que teve aulas no campus Butantã, depois que os militares forçaram o fechamento da Maria Antônia. Na porta das salas de aula havia policiais armados e em seu interior não faltavam os infiltrados, mas isso não a impediu de desenvolver um pensamento fortemente crítico. Sua radicalização continuou após terminar o curso e anos mais tarde a levou às fileiras da Convergência Socialista.

Silvana tinha qualidades raras para a maioria dos jovens militantes. Além de uma forte educação humanista tinha um texto impecável e era poliglota, comunicando-se fluentemente em italiano, inglês, francês e espanhol. Nunca foi uma ativista sindical ou uma dirigente partidária. Mas foi uma peça importante de todas as equipes de redação da CS e do PSTU durante mais de uma década, especializando-se na política internacional. Trabalhou ao lado de Luís Leiria, Ana Cristina Machado, Edson Jarrão, Cristina Portella e Cilinha Garcia, formando parte de uma brilhante geração de jornalistas socialistas.

Na década de 1990 adotou o codinome de Silvia Contini, para evitar a perseguição em seu local de trabalho. Era uma brincadeira que poucos podiam entender com seu próprio nome, uma referencia ao filme de Il giardino dei Finzi-Contini, do cineasta italiano Vittorio de Sica. Na redação, além de traduzir os artigos que vinham do exterior, acompanhar a imprensa internacional e escrever de modo competente a respeito dos mais variados países era também responsável por um forte humor autocrítico, um dos poucos traços da cultura judaica que preservou. Era dela o pôster do gato Garfield que adornava a sala da redação com os dizeres “Eu odeio segundas-feiras”, referência explícita ao dia em que o semanário fechava sua edição e era encaminhado para a gráfica, sempre no último minuto antes do prometido.

No começo da década de 1990, os primeiros sinais da esclerose múltipla começaram a se manifestar. Silvana manteve suas atividades na CS, acompanhou nossa expulsão do PT e a fundação do PSTU. Locomovia-se com dificuldade e não conseguia mais trabalhar com a mesma intensidade. Mas enquanto teve condições esforçou-se para colaborar com a imprensa do partido.

Aos poucos a doença atingiu sua capacidade cognitiva e tornou-se para ela cada vez mais difícil trabalhar e, mais tarde, se comunicar. Ainda assim impressionava pela força e pelos lampejos de sua inteligência. Em uma das últimas vezes que a visitei, juntamente com minha companheira Jussara Magalhães, no final dos anos 1990, estávamos conversando animadamente com sua filha Ana sobre as administrações municipais do PT. Silvana  acompanhava atentamente a conversa, mas não conseguia participar dela a não ser pronunciando com dificuldade algumas palavras. A certa altura começou a falar de porcos. Achamos que estava insultando alguém, mas não entendíamos a quem. Fizemos várias perguntas até que falou: “Circe!”. Jussara foi a primeira que entendeu e perguntou: “Da Odisséia? Homero?”. “Sim”, respondeu Silvana.

Na Odisséia, um clássico da literatura grega, Ulisses desembarcou com sua tripulação na ilha habitada por Circe, filha do Sol, e enviou 23 homens para reconhecer o terreno. Eles foram recebidos por Circe com um banquete, mas após comerem e beberem fartamente esta os transformou em animais:

Porcos sendo no som, no vulto e cerdas,

A inteligência embora conservassem” (Odisseia, Livro X, 184-185)

Para libertar seus companheiros, Ulisses precisou derrotar Circe e obriga-la a jurar que retiraria o feitiço de sua tripulação e todas as pessoas que haviam sido transformadas por ela em animais. Circe cumpriu sua promessa e convenceu Ulisses e seus companheiros a ficarem na ilha:

Circe atalhou:  ‘Não mais, divino Ulisses,

Vos exciteis ao luto. Eu sei dos transes

Padecidos por vós no mar piscoso,

De hostilidades mil que em terra houveste.

Comei, bebei, refocilai; no peito

Renasça o ardor que tínheis ao deixardes

Ítaca alpestre: agora ah! Desabridos

Por tão penoso errar, por tantas mágoas,

Ao júbilo e prazer sois insensíveis!’” (Odisseia, Livro X, 341-349)

Todos voltaram, então, a comer e beber fartamente, a receber cuidados, desta vez acompanhados por Ulisses, o qual se entregou a Circe. Permaneceram na ilha por um ano, distantes de toda honra e glória, mergulhados no ócio e no prazer. E se os marinheiros não tivessem chamado a atenção de Ulisses e lhe lembrado de seus deveres para com a pátria ele provavelmente teria ficado por lá.

A lembrança dos porcos na ilha de Circe não era, assim, como brutalmente imaginei, um insulto. Era uma sofisticada metáfora para explicar não apenas a adaptação da burocracia petista às instituições da democracia liberal, como também, os riscos que a oposição de esquerda também enfrentava. Poucos lembrariam da Odisséia em uma conversa sobre a conjuntura política. Para Silvana essa era uma referência óbvia, como nos mostrou. Uma metáfora que ainda hoje espera seu desenvolvimento.

Silvana viveu anos perigosos: o AI-5, a crise da ditadura, as manifestações operárias e estudantis, as Diretas Já, as primeiras vitórias eleitorais do PT, a greve geral de 1989 e o Fora Collor. Muitos preferiram ficar na ilha de Circe. Ela não. Valter, seu companheiro e amigo, e seus filhos Ana, Paula e Luiz nos fizeram lembrar disso mais uma vez em seu adeus.

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