O golpe, a grande mídia e os torturadores

Vitor Henriques de Macedo 

No dia 15 de fevereiro deste ano li mais uma reportagem no caderno Prosa do jornal O Globo com a seguinte manchete:

“Raízes da Ditadura – Livros de Elio Gáspari, Daniel Aarão Reis, Marco Napolitano e outros analisam fatores decisivos para a instauração do regime militar em 1964, como a anarquia das forças armadas, a tradição autoritária nacional e o apoio da sociedade civil.”

A matéria é parte integrante da campanha midiática responsável por difundir o equivocado e reacionário revisionismo historiográfico acerca do período e o que nos motiva a olhar para o passado e a criticar mais essas falácias midiática e acadêmica são, logicamente, a preocupação com nosso presente e com nosso futoro, afinal, conforme nos ensinou Josep Fontana (1998), implícito em toda visão sobre o passado há sempre um balanço do tempo presente, bem como um projeto para o futuro.

O assunto em tela nos chamou atenção principalmente a partir do debate historiográfico acerca do golpe de Estado de 1964, intensificado depois de 2004, ano em que se completaram 40 anos do trágico desfecho do governo de João Goulart.

O debate nos foi apresentado pelo artigo de Demian Melo intitulado A Miséria da historiografia (MELO, 2006), onde o autor faz umaanálise a respeito das revisões historiográficas feitas sobre o golpe civil militar de 1964, nas quais são produzidas algumas mudanças de sentido em relação ao que ele chamou de “interpretação canônica” do aludido evento histórico.

A interpretação canônica, de acordo com Demian, está representada na tese de doutorado de René Armand Dreifuss, cuja publicação em livro foi intitulada de A conquista do Estado: Ação política, poder e golpe de classe (DREIFUSS, 2008), nessa análise o golpe é visto como resultado do trabalhoso e longo processo que resultou na formação de uma coalizão de forças liderada por indivíduos ligados a grupos multinacionais e associados e setores das forças armadas, com apoio de parcela da classe-média conservadora, a fim de que fossem bloqueadas as ações empreendidas pelas esquerdas no sentido de se obter a ampliação dos limites do regime democrático brasileiro.

Então, segundo Demian, alguns revisionistas (Argelina Figueiredo, Jorge Ferreira e Daniel Aarão) teriam provocado uma mudança de sentido na interpretação das ações empreendidas pelas esquerdas, vendo nelas radicalismo e intenções golpistas, o que, consequentemente, leva-os a atribuir responsabilidades pela efetivação do golpe a grupos que foram vítimas do mesmo. Apresentado o debate, o autor discute a perspectiva teórica dos chamados revisionistas, no contexto de um esvaziamento do pensamento crítico (MELO, 2006, p. 128), e conclui que os mesmos, compartilham da visão colocada no controvertido “O fim da história” de Francis Fuikuyama, segundo a qual a democracia liberal é encarada como o ápice da ordenação política, econômica e social alcançada pela humanidade.

Após a leitura desse trabalho, cujas idéias são por nós compartilhadas, limos também outros nos quais essa discussão está presente1.

Em mais um artigo sobre esse tema que consideramos pertinente destacar, Caio Navarro de Toledo (2004), também motivado pelo contexto do 40º aniversário do Golpe e pelas novas abordagens historiográficas, escreveu, anteriormente a Demian, sobre as confluências entre discursos de militares, legitimadores do golpe, e algumas interpretações revisionistas sobre o período, feitas por acadêmicos de orientação progressista e de esquerda. De acordo com o autor, para os acadêmicos revisionistas, de uma maneira geral, “todos os agentes relevantes do processo político estavam comprometidos com o golpismo: militares, setores da direita, das esquerdas e Goulart” (TOLEDO, 2004, p. 34).

Caio Navarro, citando os acadêmicos Jorge Ferreira, Marco Villa e Leandro Konder, argumenta que os mesmos equalizam a falta de compromissos que a direita e que a esquerda tinham com projetos democráticos, levando, no plano ideológico, ao compartilhamento de responsabilidades entre os executores da ditadura e as vítimas desse regime político.

O autor nos mostra alguns equívocos dessas interpretações, um deles diz respeito à comparação presente nos revisionismos entre efetivas experiências golpistas das direitas com supostas pretensões golpistas das esquerdas brasileiras. Esse erro seria decorrente da supervalorização de fontes nas quais as esquerdas abusaram da retórica revolucionária e de uma desvalorização do fato de que a dura repressão não encontrou nem um simulacro de “Plano Conhen”2.

Por fim, o autor identifica como uma das principais causas desse revisionismo a perspectiva ideológica dos seus representantes e como uma de suas principais consequências os pontos de identificação dessas novas abordagens com discursos legitimadores do Golpe, principalmente de militares.

Portanto, dentro desse debate e norteados por esses autores pudemos observar o espaço que algumas novas interpretações ganharam em O Globo, um meio de comunicação de massa controlado por grupos interessados na reformulação da memória dos “anos de chumbo”.

A partir daqui destacaremosalgumas formas de apropriação dessas novas abordagens em algumas matérias do jornal O Globo, que sempre prestou grande desserviço para a real ampliação da democracia neste País, através do monopólio da informação, com a cobertura sempre à direita dos principais fatos políticos e sociais do Brasil e do mundo, utilizando-se da velha máscara da “isenção jornalística” para defender interesses privados.

Como primeira matéria, mencionaremos uma reportagem publicada por ocasião do 40º aniversário do Golpe, datada de 29 de março de 2004, na qual é ostentada a seguinte manchete: “64 ‘Falava-se em cortar cabeças; essas palavras não eram metáforas’, diz pesquisador. Resistência democrática, dogma que desaba”.

Começando a reportagem, após essa chamada sensacionalista e claramente tendenciosa, os jornalistas Aydano André Motta, Chico Otavio e Cláudia Lamego conduzem a matéria com a pseudo-neutralidade desse jornal, apresentando argumentos de ambos os lados do debate.

No entanto, ao longo da matéria, claramente privilegia-se a abordagem revisionista de Daniel A. Reis Filho, cuja apresentação se dá da seguinte maneira:

“Novos estudos realizados por especialistas no período — alguns deles integrantes dos grupos de oposição ao regime autoritário — propõem uma mudança explosiva, que semeia fúria nos defensores de outras correntes: chamar de resistência democrática a luta da esquerda armada na fase mais dura do regime está errado, historicamente falando.” (Motta; Otavio; Lamego, 2004)

Alinhados com o aludido historiador são citados Denise Rollemberg, Renato Lemos, Marcelo Ridenti e Carlos Fico, em oposição aos mesmos, é citado apenas João Quartim que defende que a luta era para restaurar a democracia e, ponderando ambas as visões, é citada Maria Aparecida de Aquino, de acordo com a qual: “Era resistência, mas não sabemos se seria democrática porque a esquerda não chegou ao poder…”

Segundo a reportagem, Aarão afirma o seguinte:

Falava-se em cortar cabeças, essas palavras não eram metáforas. Se as esquerdas tomassem o poder, haveria, provavelmente, a resistência das direitas e poderia acontecer um confronto de grandes proporções no Brasil (…) Pior, haveria o que há sempre nesses processos e no coroamento deles: fuzilamento e cabeças cortadas.” (IDEM)

Esse enfoque sobre a fala de Aarão nos dá a impressão de que o regime prescindiu de “fuzilamento e cabeças cortadas” para se sustentar. O jornal, estrategicamente ainda acrescenta o aposto: “ex-guerrilheiro do Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8).”, referindo-se ao historiador, a fim de conferir legitimidade a sua visão, conforme a qual:

As esquerdas radicais se lançaram na luta contra a ditadura, não porque a gente queria uma democracia, mas para instaurar o socialismo no país por meio de uma ditadura revolucionária, como existia na China e em Cuba. Mas, evidentemente, elas falavam em resistência, palavra muito mais simpática, mobilizadora, aglutinadora. Isso é um ensinamento que vem dos clássicos sobre a guerra.” (IDEM)

A reportagem, portanto, cuja validade acadêmica foi outorgada pelos citados cientistas sociais, além de ignorar a urgência e importância contida nas reivindicações das esquerdas da época, equaliza as intenções dessas esquerdas com as dos golpistas, tendo por base o depoimento pessoal e pouco representativo de Aarão. Dessa forma, fundamentando-se nas conjecturas contra factuais revisionistas, forja-se a ilusão de que tanto pela direita, como o foi de fato, quanto pela esquerda, como se supõe, o Brasil viveria sob um regime político ditatorial nos idos dos anos de 1960 e o povo “bestializado” apenas assistiria a tudo, conforme ilustrado na visão de Carlos Fico, também citado na matéria no seguinte trecho:

A opção de pegar em armas é anterior ao ato institucional. Alguns grupos de esquerda defenderam a radicalização antes de 1968 — garante ele [Carlos Fico].   O professor da UFRJ defende que os confrontos armados eram uma disputa sangrenta entre duas elites — o povo ficava de fora, assistindo aos sobressaltos.”(IDEM)

Em outra matéria, publicada em 09 de janeiro de 2010 em blog do mesmo jornal, a respeito da aprovação em 21 de dezembro de 2009 pelo ex-presidente Lula do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) foram destacados dois pontos considerados polêmicos: aquele que determinou a criação até abril de 2010 da Comissão Nacional da Verdade; e o que determinou a criação de projetos de lei que propusessem a “revogação de leis remanescentes do período 1964-1985 que sejam contrárias à garantia dos direitos humanos ou tenham dado sustentação a graves violações” (CONDE, 2010).

Segundo o jornal, a polêmica expressou-se nas pressões de comandantes militares, contrários principalmente ao segundo ponto, pois, projetos de lei que visassem revogar leis remanescentes do período entre 1964-85 contrárias aos direitos humanos, claramente constituiriam uma brecha para revogação da lei da anistia, uma verdadeira blindagem conquistada pelos executores da ditadura, durante o processo que levou ao fim do regime militar brasileiro, uma vez que essa lei protege tais executores das responsabilidades penais sobre os crimes cometidos durante o período.

Apresentada a questão, o jornal a debate utilizando-se das opiniões de Daniel Aarão e Carlos Fico que, segundo o veículo midiático, são “dois dos principais estudiosos da ditadura brasileira”, tendo-se ainda referido a Aarão como o historiador que “tem trabalhado para desfazer a imagem romântica dos grupos revolucionários de esquerda, sublinhando que seus projetos eram ditatoriais”.

Aqui o jornal, além de validar as opiniões expostas sobre o tema, uma vez que as trata como a de “dois dos principais estudiosos da ditadura brasileira”, dá ênfase à interpretação historiográfica de Aarão acerca do suposto papel desempenhado pelas oposições de esquerda à época, embora isso não tenha uma relação direta com o objeto da matéria. Por essas e outras acreditamos que esse aspecto do pensamento de Aarão seja um dos mais caros às organizações Globo, considerando o fato de que atuaram ativamente a favor do Golpe e da manutenção do regime militar. Dessa maneira, ao reforçar a tese de que tanto direita quanto esquerda não tinham compromissos democráticos, o grupo O Globo encontra um apoio discursivo para se eximir, pelo menos em parte, de suas responsabilidades pretéritas como apoiador do regime pós-1964.

A matéria consiste basicamente numa entrevista com os dois historiadores. De acordo com Aarão, a Lei da Anistia deve sim ser revisada para que os militares envolvidos sejam processados e punidos e para que seja levantada a discussão sobre a adoção da tortura como política de Estado no Brasil, com o que concordamos3. Para Fico, a revisão não pode ter em vista a punição dos torturadores, pois isso seria “ineficaz do ponto de vista de enfrentarmos a verdade sobre a ditadura”, para ele importa lutar para que “esses comandantes militares sejam enquadrados diante da Lei e obrigados a transferir para o Arquivo Nacional os três arquivos que faltam…”.

Conforme dito anteriormente, esse jornal esconde suas verdadeiras inclinações políticas por trás de uma alegada imparcialidade jornalística, dessa forma, nos são apresentadas duas opiniões sobre a legitimidade ou não da revogação da Lei da Anistia.

Especificamente no que diz respeito à necessidade de punição dos militares, concordamos com Aarão, mas reparemos que este, na condição de defensor de uma posição mais progressista em relação à de Fico, tem uma das opiniões centrais de sua tese ressaltada, fazendo-se a ressalva de que, segundo Aarão, os grupos de esquerda, embora tenham sido injustamente torturados, assassinados e exilados, não foram paladinos da democracia como se tem acreditado.

Já, amparando a pressão exercida pelos Comandantes militares sobre o governo Lula, foi destacado o conservadorismo de Carlos Fico expressado na ideia de que punir os militares seria “ineficaz do ponto de vista de enfrentarmos a verdade sobre a ditadura” e para quem “enquadrar os militares diante da Lei” resume-se em impor aos mesmos que abram seus acervos documentais.

Assim, Fico propôs mais do mesmo: reconhecer os crimes com a abertura dos arquivos, garantindo-se a impunidade dos criminosos com a Lei da Anistia. No entanto, fica a questão: qual lógica explica a perspectiva de que garantir impunidade penal aos militares seria mais eficaz para o enfrentamento da verdade sobre a ditadura? Será que não há nenhum cinismo nessa crença, apenas a ingenuidade de que gozando de tal garantia os militares liberariam seus arquivos com mais facilidade? Realmente não podemos afirmar nem uma coisa nem outra, somente que, por ingenuidade ou por cinismo, Carlos Fico presta-se ao papel de legitimar a impunidade de torturadores e isso é bem explorado pelo O Globo.

Com o fito de ilustrar mais uma vez a controvertida posição de Fico e a projeção que ela ganha nesse jornal, vale a pena nos determos em outra matéria, publicada em 5 de mar. De 2012, novamente por Chico Otávio, na qual é ostentada a seguinte manchete: “Governo exagerou ao punir oficiais da reserva, diz historiador”.

Para contextualizar a respeito do que se refere a citada manchete lembremos que, em 1o de março de 2012, o então ministro da defesa, Celso Amorim, decidiu punir oficiais da reserva que se insurgiram, por meio de um manifesto publicado no site do Clube Militar, contra a formação da Comissão da Verdade, a despeito de essa Comissão já ter nascido derrotada, conforme alegou José Arbex Junior (2012) e com quem concordamos, uma vez que se exigiu o respeito absoluto à Lei da Anistia de 1979.

Os militares punidos qualificaram a Comissão como um ato de revanchismo explícito e de afronta à Lei da Anistia, sendo importante salientar que, após as punições determinadas pelo Ministro da Defesa, os oficiais da reserva, sempre dispostos a defenderem a legalidade que lhes convém, reafirmaram a validade do manifesto e declararam não reconhecer autoridade ou legitimidade de Celso Amorim.

A respeito desses fatos, Carlos Fico foi rapidamente chamado a expor suas opiniões. O historiador aduz que o governo errou ao punir oficiais da reserva e deveria entregar o caso aos comandantes militares, pois a “crise é um mau começo para a Comissão da Verdade”. Segundo Fico uma atitude mais branda poderia evitar possíveis crises institucionais futuras e facilitar a prestação de depoimentos de agentes secundários da ditadura, bem como ajudar a Comissão a conseguir mais documentos. Ele ainda argumenta que não gostaria de participar da Comissão em razão do fato de que “um historiador deve trabalhar com o conceito de que não existe uma verdade absoluta”.

Como se matar, torturar e exilar em nome de interesses particulares travestidos de interesses coletivos fosse uma questão de perspectiva historiográfica e como se tentar encontrar responsáveis por esses atos atrapalhasse a produção do conhecimento histórico. Ora, devemos ter em vista que não se trata de uma discussão sobre epistemologia da história, mas sim de localizar responsáveis por atos criminosos!

Para Fico, portanto, liberar acervos documentais é mais importante do que o urgente e necessário acerto de contas na esfera penal com os agentes da ditadura, dessa forma, ele, um acadêmico, é mais uma vez chamado pelo jornal para expor uma posição que defende a impunidade de militares criminosos.

Gostaríamos, ainda, de comentar uma matéria, postada na internet por ocasião do 48º aniversário do Golpe, em blog de O Globo por Daniel Aarão Filho, na qual é salientada sua teoria de que a ditadura foi um produto da sociedade brasileira e, conforme já mencionado, diluir de forma indiscriminada pelos setores civis as responsabilidades pela efetivação e manutenção do Golpe cria uma “zona de conforto” aos veículos midiáticos dominantes e setores empresariais que atuaram nesse processo (AARÃO FILHO, 2012).

A respeito dessa matéria e do grave erro nela contido em razão de se considerar a sociedade capitalista, profundamente dividida em classes sociais, como um bloco, Demian Melo (2012) já faz as devidas críticas a Daniel Aarão, principalmente por discorrer sobre o caráter civil do Golpe e da ditadura sem nenhum cuidado em discriminar os agentes, “anistiando” a todos.

Além das pertinentes críticas, Melo também nos aponta a função que tais opiniões tiveram no dia 31 de março de 2012, tendo em vista o fato de terem sido veiculadas logo após uma manifestação histórica, em 29 de março, em frente ao Clube Militar do Rio de Janeiro contra um evento comemorativo dos 48 anos do Golpe.

O veículo midiático, deste modo, procurou difundir mais uma vez a ideia de que “é inútil esconder a participação de amplos segmentos da população no golpe que instaurou a ditadura, em 1964”, como se os agentes e colaboradores civis do Golpe já não tivessem sido estudados de uma maneira muito mais consistente por outros autores, como, por exemplo, emA Conquista do Estado de Dreifuss.

Aarão, ao criticar a memória que enfatiza o caráter militar da ditadura, ainda afirma que “São interessados na memória atual as lideranças civis que apoiaram a ditadura. Se ela [a ditadura] foi apenas militar, todas elas [as lideranças civis] passam para o campo das oposições.”

Ocorre que o autor, além de omitir estudos muito mais profundos que o seu, os quais se propõem a discriminar as lideranças civis do regime militar, efetua o inverso do que ele propagandeia com um discurso pretensamente original, pois, Aarão não está denunciando nada como ele faz parecer, o que ele faz de fato é ofuscar a visão do leitor para a identificação dos grupos civis pró-golpe. As lideranças civis do golpe (O Globo, por exemplo) estão muito mais interessadas na perspectiva historiográfica de Aarão, que omite estudos anteriores sobre os civis e responsabiliza toda a sociedade, do que em cultivar a memória que atribui apenas um caráter militar à ditadura, tendo em vista o fato de que tal memória não se sustenta, por ser notória a participação de civis nesse processo.

Dessa forma, num momento em que setores civis se insurgiram contra a audácia de militares em comemorar um regime responsável por inúmeras vítimas e cujas heranças autoritárias ainda se fazem presentes na constante criminalização da pobreza e na política repressiva de movimentos sociais por parte do Estado brasileiro, O Globo expõe, com ar de originalidade, a teoria de que o golpe foi fruto também da ação da sociedade civil, sem levar em conta trabalhos verdadeiramente de fôlego sobre isso, porquanto convenha difundir a perspectiva tosca de Aarão de que a ditadura foi produto de toda a sociedade brasileira.

Por fim, gostaríamos de retomar, sem nos estender muito, visto que se trata das mesmas falácias, a recente matéria do jornaleco de Leonardo Cazes e Guilherme Freitas, citada no início deste artigo, nela é novamente explorado o talento causídico que Aarão tem para igualar intenções e responsabilidades entre vítimas do regime e golpistas.

Na matéria, destaca-se também a visão de Carlos Fico que, contrapondo-se a pesquisadores que denunciam o sentido ideológico da historiografia por ele produzida, se é que é possível dizer que Carlos Fico produz historiografia, atribui aos críticos o adjetivo de românticos, pois, segundo Fico “Se entendermos o golpe apenas como episódio que iniciou uma ditadura brutal, corremos o risco de construir leitura romantizada, segundo a qual a sociedade foi vítima de militares desarvorados” e, com esse comentário cínico, Fico finge não conhecer o fato de que o termo ditadura civil-militar veio justamente da historiografia que ele chama de romântica e que o uso do termo feito por ele, Aarão e outros revisionistas nada mais é do que uma apropriação distorcida do que já foi dito.

Por meio do reiterado destaque dado às “novas” abordagens historiográficas sobre 1964 propositalmente silencia-se análises anteriores e contemporâneas que comprometem o status quo herdado dos “anos de chumbo”, por isso O Globo dá voz a Fico que legitima a impunidade dos militares, e às perspectivas de Aarão, comprometido em propagar as ideias de que ninguém politicamente atuante, nos anos de 1960, estaria empenhado em estabelecer um regime democrático no Brasil e de que o regime militar foi produto de toda a sociedade brasileira.

Dessa forma, conforme observado por Demian Melo, opera-se uma verdadeira “anistia historiográfica” que vem bem a calhar aos interesses de O Globo, de toda grande mídia e demais grupos empresariais apoiadores da ditadura civil-militar brasileira, mas a fim de sermos mais precisos e de nos diferenciar do grupo de “especialistas” evocados pela grande mídia para falar sobre o assunto deveríamos dizer ditadura empresarial-militar brasileira.

Se fizermos um paralelo sobre a idéia contida nessa “historietografia” (MELO 2014) acerca da ditadura pós 1964 com os dias atuais, reproduziríamos a idéia do senso comum de que “o povo brasileiro tem os governantes que merecem porque não sabem votar”, sendo que nessa equivocada visão está implícita não só a crença da democracia formal no nosso sistema eleitoral, bem como a ignorância acerca do fato de que quem realmente elege nossos representantes são os grupos que financiam as campanhas eleitorais, nós sabemos queos focos de resistência popular a esse Estado estão praticamente excluídos das instâncias estatais, quando estão inseridos, tal inserção é de fachada de modo a servir como instituições de legitimação da nossa falsa democracia, sem que sejam abalados interesses dominantes, portanto, achar que a classe média aterrorizada que participou das Marchas da Família com Deus pela Liberdadefoi responsável pela ditadura é aplicar o senso comum sobre as eleições ao nosso passado recente, na medida em que desconsidera que o que realmente manteve e sustentou a ditadura de ontem e de hoje são a opressão militar ou policial, articulada ao forte controle sobre a mídia, financiados por grupos empresariais.

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Notas:

1Essa discussão também está presente em Mattos (2008); Delgado (2009) e Melo (2014).

2“ Plano Cohen foi um documento escrito pelo capitão integralista Olympio Mourão Filho com a intenção de simular uma revolução comunista no Brasil. O plano foi utilizado pelo governo Getúlio Vargas para aterrorizar a população e justificar um golpe de Estado.

3Infelizmente, como muitas das questões polêmicas da nossa “democracia”, a decisão a respeito da necessária revisão da Lei da Anistia caiu nas mãos de um grupo seleto de magistrados escolhidos por Presidentes da República, o Supremo Tribunal Federal, que, em 29 de abril de 2010, decidiu (sete votos a dois) por impedir a revisão dessa Lei, assim, mais uma vez dentre tantas outras, retirou-se das mãos do povo uma decisão que só caberia à população e não a essa corte que em quase nada representa a sociedade brasileira.