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TEORIA

“O homem que amava os cachorros” por Leonardo Padura: a contrarrevolução stalinista (parte 2)

Bernardo Boris Vargaftig

O homem que amava os cachorros é um romance, um livro sobre a política, mas não um livro de política. Um livro assim pode despertar consciências, como ocorreu com A cabana do pai Thomas de Harriet Beecher Stowe (1852), sobre a escravidão nos Estados Unidos. Ou Os vizinhos, de Jan Tomasz Gross (2001), que ousou enfrentar os nacionalistas poloneses, tratando do massacre de Jedwabne, que liquida a pretendida inocência dos poloneses no extermínio dos judeus durante a guerra. Padura escolheu nossa época, um momento chave da história. O faz com grande talento, após pesquisa exaustiva, que suscita admiração. Entretanto, ao chegar aí, bifurca da política à moral, o que é seu direito, mas tem consequências. Como escrevia André Breton a Leon Trotski, “tudo é factível em arte”.

As responsabilidades do imperialismo

Ramon Mercader foi manipulado pelo KGB em benefício de Stalin, o chefe da burocracia soviética. Mas mesmo sob o ângulo das responsabilidades é preciso ir além. Como se engendrou a burocracia e Stalin tomou o poder? Entre as duas guerras mundiais, Nova York, Londres, Paris e Berlin, mas não Moscou, conduziam as rédeas do mundo. As aparências são enganosas, Stalin dominava « somente » a sexta parte do mundo, e havia limado as garras da revolução, dentro da União Soviética e no plano internacional. Tornou assim possível, sobretudo ao sabotar até o fim a possível frente única com os socialdemocratas na Alemanha, a erupção bárbara do nazismo ofensivo.

Assim, se é necessário denunciar responsabilidades, é preciso ir mais longe que Padura, e por em causa a democracia parlamentar capitalista, em nome da qual critica o stalinismo. Não avança ele neste sentido, bem ao contrario, ao pretender que o stalinismo é filho do leninismo. Aqui, é preciso distinguir bem, para entender a historia, a vítima do algoz. Sua análise, muito pessimista, não abre perspectivas para o futuro, e suscita até certa compaixão. Uma denúncia da perda das ilusões, e do que chama “fé no marxismo” assimilado a uma religião. Reduzir o marxismo a uma utopia é como reduzir a teoria da relatividade a um simples credo.

O mundo cruel e cínico desvendado por Padura existe realmente, mas cabe a pergunta: será que está simplesmente destinado a cair sobre nossas cabeças, como na daquele triste « observador » Ivan, ou haverá um caminho para derrubar este edifício social e político calamitoso?

É bem verdade que a resposta está mais nas mãos dos revolucionários que dos escritores, e seria muito injusto pedi-la ao autor deste livro. Além de ser uma grande obra literária, tem o mérito de abrir a discussão através de um posicionamento histórico, político e humano, ainda que independente do movimento trotskista (e em alguns pontos, oposto).

A Revolução de Outubro não triunfou graças à atual burocracia, mas graças às massas operarias e camponesas dirigidas pelos bolcheviques. A burocracia começou a se desenvolver depois da vitoria final; suas fileiras não engrossaram, fundamentalmente, com operários, mas, sobretudo, com representantes de outras classes (ex-funcionários czaristas, ex-esseristas e mencheviques, oficiais das Forças Armadas, intelectuais pequeno-burgueses, etc.). O representante principal da burocracia como casta privilegiada foi o próprio Stalin. Os burocratas jovens eram e são escolhidos e educados pelos mais velhos, geralmente entre seus filhos. Trata-se de um país pobre e a Rússia continua sendo um país muito pobre, onde um quarto individual, alimentos e roupas em quantidade suficiente constituem privilégio de uma pequena minoria, algo como cinco milhões de burocratas, grandes e pequenos, fazem todo esforço para assegurar seu bem estar antes de tudo! Daí provem o egoísmo e conservadorismo da burocracia, seu temor diante do descontentamento das massas, seu ódio à critica, a raiva com que afoga o pensamento independente e, finalmente, sua adoração hipócrita e mística ao “líder” que encarna e defende seu poder ilimitado e seus privilégios.

É verdade indiscutível e de grande relevância que a burocracia soviética se fortaleceu na medida em que a classe operaria sofria um golpe após o outro. As derrotas dos movimentos revolucionários europeus e asiáticos minavam gradualmente a confiança dos operários soviéticos em seus aliados internacionais. Dentro do país, reinava sempre uma grande miséria. Os representantes mais audazes e abnegados da classe operária tinham sido mortos na guerra civil, ou tinham perdido seu espírito revolucionário, ou se haviam elevado e assimilado às fileiras da burocracia. Esgotada pelos terríveis esforços dos anos da revolução, sem perspectivas, amargurada pelas desilusões, a grande massa do proletariado, uma minoria em país de esmagadora maioria agrária, caiu na passividade.

Este tipo de comportamento sobrevém após todas revoluções. Depois da Revolução de Outubro o esgotamento e a desilusão não beneficiaram o inimigo de classe, a burguesia e a aristocracia, mas as camadas superiores da própria classe operária, e os grupos intermediários que compunham a burocracia soviética.

O Exército Vermelho não foi criado pelos “homens do aparelho” – que nos anos críticos era muito fraco – mas por quadros operários heroicos que, sob direção bolchevique, agruparam jovens camponeses em torno de si, e os conduziram ao combate. O refluxo do movimento revolucionário, o cansaço, as derrotas na Europa e na Ásia, a desilusão das massas operarias foram os fatores que enfraqueceram inexoravelmente as posições dos revolucionários internacionalistas e, por outro lado, fortaleceram a posição da burocracia conservadora e nacional. Abre-se assim um novo capitulo da revolução. Os dirigentes do período anterior passam para a oposição, enquanto os políticos conservadores do aparelho, que haviam desempenhado um papel secundário na revolução, surgem com a burocracia triunfante e passam à frente.

O aparelho militar é parte do aparelho burocrático e não se distingue, qualitativamente, deste último. Basta mencionar que durante os anos da guerra civil absorveu dezenas de milhares de ex-oficiais czaristas. Em 13 de marco de 1919, numa concentração em Petrogrado, Lênin declarou: “quando Trotski me disse, há pouco, que no terreno militar temos dezenas de milhares de oficiais, tive a visão concreta do segredo: como obrigar aqueles que foram nossos inimigos a construir o comunismo; construir o comunismo com os tijolos reunidos pelos capitalistas! E não temos outros tijolos!”.

Os quadros de oficiais e funcionários realizaram suas tarefas nos primeiros anos sob a pressão e controle direto dos operários de vanguarda. Ao calor desta luta cruel era inconcebível que os oficiais gozassem de privilégios: o termo mesmo foi riscado do dicionário! Porém, obtida a vitoria e efetuada a transação para a paz, o aparelho militar tentou transformar-se no setor mais influente e privilegiado do aparelho burocrático. Somente teria podido apoiar-se nos oficiais para tomar o poder quem estivesse disposto a estimular suas ambições, ou seja, criar-lhe privilégios: outorgar-lhe promoções e medalhas, enfim, quem estivesse disposto a fazer de um golpe só o que a burocracia soviética fez gradualmente ao longo de 10-12 anos. E certo que teria sido possível dar um golpe de estado militar contra a fração de Zinoviev, Kamenev, Stalin e companhia sem a menor dificuldade, sem sequer derramar sangue; porém isto somente teria acelerado o ritmo da burocratização e do bonapartismo contra os quais lutava a oposição de esquerda. Se Trotski o tivesse desejado, em 1921, num piscar de olhos dirigiria um golpe militar e o Exército Vermelho teria seguido, pelo menos em maioria, o chefe que mais respeitava. Era justamente o que não queria Trotski, que desejava ardentemente abater o capitalismo num plano mundial, o que não poderia resultar de um golpe, mas da extensão da tomada do poder pelos trabalhadores. Foi esta possibilidade de escolha que, às ordens de Stalin, Mercader destruiu. Não se tratava assim unicamente de um crime de sangue, mas do assassinato da principal liderança revolucionária, detentor, naquele momento, de uma perspectiva para a liberação dos trabalhadores.

Enquanto isto, a burocracia afirmava: “A oposição prega a revolução internacional e quer nos arrastar a uma guerra revolucionária. Chega de comoções e misérias. Ganhamos o direito de descansar. Basta de “revolução permanente”. Construiremos a sociedade socialista em casa. Operários e camponeses: confiem em nós, seus dirigentes”. Esta agitação nacionalista e conservadora vinha acompanhada de calúnias furiosas, frequentemente, reacionárias, contra os internacionalistas. Esta agitação reforçou as fileiras das burocracias militar e estatal, e encontrou eco entre as massas cansadas e atrasadas. Assim, a vanguarda bolchevique foi isolada e reduzida a poeira. Eis a origem e o segredo da vitoria da burocracia termidoriana.

A grandeza de Stalin como teórico, tático e organizador é um mito, criado pela burocracia da URSS. Através da Internacional Comunista, se converteu no pior freio da revolução mundial. Sem Stalin impondo a política à direção do Partido Comunista da Alemanha, dificilmente, teria havido Hitler. Como disse Trotski, a destruição moral, física e política do partido bolchevique foram a consequência mais grave da vitória do stalinismo. E, como Trotski o havia previsto, a persistência no poder da burocracia, em aliança/oposição com forças reacionárias internas e com países capitalistas, levaria inevitavelmente à reinstalação do capitalismo. Sombria ironia, os grandes processos de 1934 e de 1937-1939, ao condenarem a direção da revolução de outubro, acusada de conspirar para restaurar o capitalismo, foram promovidos pelos antecessores daqueles que, cinco décadas mais tarde, restauraram-no plenamente. Apossaram-se, cinicamente, dos meios de produção: de burocrata a capitalista, levou meio século. Mas conseguiram. A evolução direitista da política da burocracia soviética, e dos partidos comunistas e anexos que dela dependiam, se acentuou com a evolução do regime krucheviano.

A repressão

O nazismo destruiu as forças vivas do movimento operário e da revolução; o stalinismo fez o mesmo, mas tentou, sobretudo, num plano internacional, suprimir a própria esperança na possibilidade de se lutar por outra sociedade. E isto com a linguagem dos revolucionários mascarando ações de bandidos. Este drama é relatado no livro de Padura de forma excepcional, tanto pelos fatos relatados e pesquisados de mãos de mestre, quanto pela construção literária.

No regime burocrático, à perspectiva do desabrochar de cada ser humano sucede um universo onde o homem não é senão o instrumento de uma política criminosa onde está condenado a priori, como no « Castelo » de Kafka, ou no protestantismo rigoroso: o destino eterno é pré-determinado e nada pode alterá-lo, nem mesmo a devoção mais intensa. O leitor fica estarrecido pela manipulação generalizada de milhões de homens ao serviço de interesses de um poder, mesquinho, traiçoeiro e aviltante.

Estes acontecimentos vieram plenamente à luz, através de uma documentação espantosa que inclui listas de “fuziláveis” “corrigidas” por Stalin pessoalmente e/ou por seus auxiliares imediatos, e elaboradas à luz de cotas que era preciso preencher. A oposição estava liquidada há anos, e contra a campanha stalinista que acusava os executivos e técnicos dos fracassos políticos – notadamente em matéria de racionamento de alimentos 20 anos após a revolução! – parecia não haver oposição possível. Curiosamente, o stalinista Sergo Ordjonikdze, íntimo de Stalin, foi um dos que divergiram da escala e violência da depuração. Pretendia ele manter alguma estabilidade dos responsáveis regionais, estonteados pela repressão. Queria privilegiar as competências profissionais, em oposição a uma exclusiva carreira de burocrata com lealdades incondicionais.

Em fins de 1936, desenvolveu-se entre Stalin e Ordjonikdze, até então, fiel subordinado, um conflito a respeito dos numerosíssimos acidentes do trabalho. Stalin privilegiava a explicação policial ao invocar uma sabotagem em escala gigante, o que conduziria logicamente a um expurgo das administrações de que era responsável Ordjonikdze. O conflito se desenvolveu até o “suicídio” de Ordjonikdze em fevereiro de 1937, alguns dias antes da reunião plenária do Comitê Central do Partido Comunista, onde apresentaria um relatório desmentindo a interpretação de Stalin sobre a sabotagem pelos especialistas, explicação cômoda dos fracassos do regime.

Stalin já havia então destituído da policia secreta, o temido NKVD, seu chefe G. Iagoda, logo a seguir preso e acusado no chamado “Terceiro Processo de Moscou”. Este fora substituído por Iejov em setembro 1936, ulteriormente, também acusado e morto. Assim, os dois principais dirigentes da repressão, co-responsáveis da destruição da nata do partido bolchevique e de massas enormes de cidadãos, não sobreviveram aos seus crimes. Beria, sucessor de ambos, foi assassinado após a morte de Stalin.

Uma vez desaparecido Ordjonikdze, apoiado por Kaganovitch, Molotov, Vorochilov, Andreiev, Mikoyan e por um grupo de devotos mais jovens (Iejov, Jdanov, Malenkov, Kroutchev – este último cúmplice e ulteriormente considerado “traidor” pelos stalinistas à procura de um bode expiatório), Stalin iniciou sua ofensiva contra as burocracias econômicas, e contra os dirigentes regionais do Partido, eliminando assim dezenas de milhares de quadros, a pretexto de falsas sabotagens, espionagem e falsificação de relatórios. Assim, as dificuldades do regime, numa óbvia manobra diversionista, foram atribuídas aos chefes intermediários.

Em 11 de junho de 1937 a imprensa anunciava que um tribunal militar havia condenado à morte por traição e espionagem o Marechal Tukhatchevski, vice-comissário da defesa, assim como sete generais do Exército. Nos 10 dias seguintes, aproximadamente mil oficiais superiores, dentre eles 58 generais, foram detidos. Tratou-se de uma provocação preparada durante meses, com a elaboração de falsas provas de correspondência de Tukhatchevski com os nazistas, cujos serviços secretos haviam sido manipulados pelo NKVD. Note-se que parte dos oficiais detidos (11.000 sobre 35.000) foram reintegrados no Exército a partir de 1939 (tudo isto embora os nazistas tivessem tomado o poder havia 4 anos, e preparassem ostensivamente a conquista da URSS; Stalin não hesitou em decapitar o Exército Vermelho, e antecipava os acordos de 1939 com o regime nazista, entregando centenas de refugiados alemães anti-nazistas na URSS a seus algozes.

O stalinismo foi o grande cancro do movimento operário do século XX, e isso Padura mostra muito bem em suas literárias linhas.

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