Programa democrático-popular versus programa de transição

Juary Chagas

Dentre os grupos e correntes que se destacaram no interior do PT com posicionamentos alinhados ao campo da revolução, estão os trotskistas[1], que, reconhecidamente, cumpriam o papel de “inimigo interno” mais forte da ala hegemônica, a Articulação.

E uma das diferenciações claras com a Articulação – ainda na década de 1980 – residia precisamente na questão da natureza do programa do PT, cujo caráter para os trotskistas deveria ser de transição ao socialismo.

Mais do que apenas um conjunto de palavras de ordem que se materializa em tarefas concretas, o programa de transição é um método que concretiza “um sistema de reivindicações transitórias, que parta das condições atuais e da consciência atual de amplas camadas da classe operária e conduza, invariavelmente, a uma só e mesma conclusão: a conquista do poder pelo proletariado” (TROTSKY, 2008, p. 16).

Entendendo que não é possível superar o capitalismo por meio de reformas, mas somente através da conquista do poder pela classe trabalhadora para expropriar a burguesia, o método do programa de transição rejeita a idéia de separar o programa mínimo (reformas) do máximo (tomada do poder), evitando tanto limitar-se às reivindicações que não ultrapassam o limite do quadro capitalista quanto à repetição da necessidade da revolução como um mantra. Seu objetivo é levantar todo um sistema de reivindicações transitórias que ajude a mobilizar os trabalhadores de modo que, postos em luta por estas reivindicações, percebam que tais conquistas só serão possíveis se se enfrentarem com a burguesia e seu domínio político (Estado) e econômico (propriedade privada) na sociedade:

” o cumprimento da tarefa estratégica é inconcebível sem a mais ponderada atenção a tudo, mesmo às questões táticas pequenas e parciais. […]

[…] À medida que as velhas reivindicações parciais, “mínimas” das massas chocam-se com as tendências destrutivas e degradantes do capitalismo decadente – e isto ocorre a cada passo – a IV Internacional levanta um sistema de reivindicações transitórias, cuja essência reside no fato de que, cada vez mais aberta e resolutamente, elas estarão dirigidas contra as próprias bases do sistema burguês.” (Idem, ibidem, p. 17-18, grifo nosso)

O grande objetivo do programa de transição é o de combinar o trabalho político cotidiano combinado com as tarefas estratégicas da revolução socialista. Sintetiza a ação política concreta ao redor do que move os trabalhadores (inclusive as consignas parciais progressivas que se apresentam no movimento espontâneo das massas) e a elevação da consciência por meio da agitação, propaganda e da experiência concreta adquirida no curso das lutas que se chocam com a ordem capitalista.

Mas, apesar dos trotskistas e de um aparente “fortalecimento ideológico” que entusiasmava parte da militância petista na segunda metade da década de 1980, as sugestões de “via parlamentar ao socialismo” e o início da flexibilização da política de alianças já sinalizavam naquele período um ensaio para inflexões futuras. Inflexões estas que se tornaram mais evidentes diante de uma definição contraditória que pela primeira vez foi aprovada dentro do PT e que daí em diante provocaria grandes polêmicas: o programa democrático-popular.

O grande questionamento de boa parte dos grupos identificados com a necessidade de um programa socialista no PT (com destaque para os trotskistas) residia justamente na imprecisão do conteúdo programático denominado democrático-popular, que era suficientemente amplo para caber desde um programa de transição, socialista; até uma proposta de “programa mínimo” e de colaboração de classes.

Esta crítica se mostra como correta se considerar que na defesa do programa democrático-popular se expressa um elemento aparentemente de caráter secundário, mas que revela uma inflexão muito importante: embora nunca se tenha utilizado a terminologia “de transição” ou “socialista” para se referir ao programa do PT e mesmo com todas as polêmicas e imprecisões em relação à estratégia de superação do capitalismo (se se daria pela via insurrecional ou por meio da ocupação dos espaços institucionais), por outro lado havia um consenso geral sobre a luta “por um governo dos trabalhadores” (FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO, 1980b), “um novo poder, baseado na classe operária e na mobilização de todos os que vivem de seu próprio trabalho, para construirmos uma sociedade sem explorados e sem exploradores” (Idem, 1982), com uma demarcação clara de projeto de poder para a classe trabalhadora brasileira.

O V Encontro Nacional do PT (1987), pela primeira vez, aprova uma resolução que modifica esse entendimento:

As propostas que proclamam a necessidade e a possibilidade imediata de um governo dos trabalhadores evitam a discussão sobre qual a tática, qual a política para alcançar esse objetivo. Na prática, separam a luta reivindicatória da luta política, por não compreenderem a necessidade da acumulação de forças. A retórica aparentemente esquerdista recobre a ausência de perspectivas políticas e uma concepção limitada, atrasada, das lutas reivindicatórias.

[…] Na situação política caracterizada pela existência de um governo que execute um programa democrático, popular e antiimperialista, caberá ao PT e aos seus aliados criarem as condições para as transformações socialistas.” (Idem, 1987a, grifos nossos)

Aqui se tem o verdadeiro significado da proposta de programa democrático-popular. As diferenças com o programa transicional socialista na exposição são sutilíssimas ou às vezes praticamente imperceptíveis, mas profundas no conteúdo.

O programa de transição entende que “seu objetivo político [estratégico, a longo prazo] é a conquista do poder pelo proletariado, com o propósito de expropriar a burguesia” (TROTSKY, 2008, p.17, comentário nosso) e, por essa razão, as tarefas colocadas para o momento atual não devem se materializar em elogios abstratos ao socialismo ou à convocação para a tomada do poder imediatamente, mas, devem conduzir a uma única e só conclusão de caráter pedagógico: as principais reivindicações dos trabalhadores só poderão ser plenamente atendidas quando estes estiverem no poder.

O programa democrático-popular, por sua vez, não estabelece essa ponte entre a conquista das reivindicações e a questão do poder. Ao contrário, a negação da consigna do poder para os trabalhadores em detrimento da defesa de “um governo que execute um programa, democrático, popular e antiimperialista” traz subliminarmente consigo a crença de que esse governo não necessariamente precisaria ser dirigido e controlado pela classe trabalhadora, para que tais reivindicações fossem atendidas. Em outras palavras, para executar um programa avançado de reformas que se choque com a ordem capitalista (e, portanto, teria um caráter “socialista”), a luta para acumular forças tendo como objetivo a conquista do poder poderia ficar para um futuro indefinido.

Ora, se para o atendimento dessas reivindicações bastaria “um governo que executasse esse programa”, sem caráter de classe definido, por que não acreditar que essa execução possa ser feita por um governo “eleito democraticamente” que tenha maioria do PT?

Se basta um governo que “conceda tais reivindicações”, sem delimitar que tipo de governo poderia de fato concretizar esses compromissos, para que mobilizar para, por exemplo, derrubar governos, se a força das mobilizações, em tese, poderia “empurrá-los para a esquerda”, dentro das regras da institucionalidade?  Se não é preciso um governo de trabalhadores para executar um programa “democrático e antiimperialista”, qual a razão para não buscar pactos com a burguesia “democrática e não imperialista”?

É importante destacar que até aquele momento, a Articulação ainda não havia defendido publicamente que estas são as estratégias em que aposta. Igualmente, as reivindicações e as consignas programáticas progressivas, que de fato se chocavam com as bases do capitalismo (como a reforma agrária sobre o controle dos trabalhadores, a estatização do sistema financeiro, etc.), também foram mantidas no programa do PT.

Entretanto, a indefinição havia sido plantada. Levantar o conjunto dessas reivindicações, que em sua quase totalidade conservaram o caráter das consignas apresentadas pelo PT das origens unificava praticamente todo o partido, até mesmo a Articulação, pressionada pelo ascenso dos anos de 1987 e 1988. Mas, um programa não é apenas um texto com palavras de ordem.

Para além da agitação de consignas, o programa materializa um método de construção do movimento e embora as reivindicações mais vitais continuassem sendo defendidas pelo PT, a oposição entre “governo dos trabalhadores” e “governo que execute um programa democrático-popular” não era à toa. Além das indefinições até então presentes no PT sobre “qual socialismo” o partido reivindicaria, o programa democrático-popular acrescentava um novo componente que na prática era antagônico à idéia de “poder para os trabalhadores”: o conjunto das reivindicações, mesmo as levantadas fora do momento eleitoral, não necessariamente precisariam se orientar pelo enfrentamento direto entre a classe trabalhadora e a burguesia, mas, poderiam se limitar a uma exigência ao governo de turno, colocando para um horizonte infinito a necessidade dos trabalhadores construírem o seu governo.

Isto, na prática, abria um espaço para que o programa do PT se transformasse num plano de lutas apenas por políticas públicas, ainda que tais reivindicações naquela época conservassem toda a vitalidade e até mesmo sejam consideradas “radicais”. Além disso, os flancos abertos pelo programa democrático-popular permitiam flexibilizações mais profundas, como a defesa da ocupação dos espaços institucionais como via de transição ao socialismo (a tese de que para mudar o Estado, bastaria tomar os postos de governo) e a ampliação do arco de alianças do partido (com a burguesia), sob a bandeira da necessidade de “acumulação de forças”.

Tais movimentações ainda não estavam concretizadas (isso se verificaria somente anos depois), no entanto, estavam ali embutidas no programa democrático popular diferenças de método na elaboração programática e também de estratégia, de modo que a aprovação dessa formulação significava uma sutil preparação do terreno para inflexões mais profundas, que posteriormente de fato viriam a ocorrer.

Desse modo, o programa democrático-popular se revelava, naquele momento, como uma plataforma de reformas “radicais” para uma disputa institucional. O conteúdo progressivo das suas reivindicações naquele momento não anulava o fato de que sua constituição teórica era suficientemente ampla para ser ajustada a qualquer estratégia.

É um programa que pode se mostrar como aparentemente radical, porque pode conservar praticamente todas as reivindicações mais vitais que se chocam com a base do sistema capitalista, mas, diferentemente de um programa de transição, a conquista de tais reivindicações não dependeria da “mobilização sistemática das massas em direção à revolução proletária” (TROTSKY, 2008, p. 18) e sim, da subida ao poder de um governo com o mesmo caráter do programa (democrático-popular), sem que seja necessário para isso exigir-lhe que seja de caráter operário, nem tampouco resultado da insurreição das massas.

Isso infere que, embora o PT na década de 1980 não expressasse claramente em nenhuma resolução partidária que sua estratégia era eleitoral e de colaboração de classes, na prática o programa democrático-popular não estabelece qualquer óbice para que fosse possível conquistar reivindicações de caráter socialista com um governo de conciliação de classes e eleito pelo mecanismo da democracia representativa burguesa. No fim, é isto que prevalece.

O programa democrático-popular, por mais radicais que sejam suas consignas, não define claramente que a conquista dessas reivindicações só poderia se dar mediante um enfrentamento sistemático e que colocasse como condição a luta estratégica pelo controle operário sobre o Estado e os meios de produção/circulação; jamais somente com exigências ou tentando “empurrar para a esquerda” algum governo – que poderia, segundo as formulações petistas, se estabelecer por meio de eleições e que inclusive nem precisaria ser da classe trabalhadora.

O mais grave ainda é que, se um governo democrático-popular é apresentado como a estratégia para conquistar as reivindicações anticapitalistas (como fazem correntes como a Consulta Popular atualmente), mas a correlação de forças na sociedade e dentro desse governo não permitirem o atendimento dessas demandas, seria “legítimo” que o programa fosse flexibilizado.

Fica claro, portanto, que o programa democrático-popular, nada mais é do que a forma “radical” de uma estratégia reformista e potencialmente eleitoral, uma espécie de “transição da transição” com uma roupagem de esquerda, mas que difunde a utopia reacionária (mesmo que subliminarmente), da possibilidade de conquistar reivindicações anticapitalistas sem revolução.

Referências bibliográficas

FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Plataforma política. São Paulo, 1980b. [online] Disponível na internet via WWW. URL: http://www.fpabramo.org.br/sites/default/files/plataformapolitica_0.pdf. Acessado em: 15 de novembro de 2013.

_____. Plataforma Eleitoral Nacional. São Paulo, 1982. [online] Disponível na internet via WWW. URL: http://novo.fpabramo.org.br/uploads/plataformaeleitoral.pdf. Acessado em: 10 de novembro de 2013.

_____. Resoluções políticas. São Paulo, 1987a. [online] Disponível na internet via WWW. URL: http://www.fpabramo.org.br/sites/default/files/resolucoespoliticas_0.pdf. Acessado em: 30 de maio de 2013.

TROTSKY, Leon. O programa de transição para a revolução socialista. São Paulo: Editora Sundermann, 2008.


[1] Aqui é importante destacar que dentro do subconjunto das correntes trotskistas também não existia homogeneidade e nem sempre todos os grupos ali presentes se mantiveram no campo da revolução. Dentre as mais importantes organizações inspiradas no trotskismo que integraram o PT estão a ORM-DS (Organização Marxista Revolucionária-Democracia Socialista), formada em 1979 e representante do grupo trotskista Secretariado Unificado Internacional (SU), que tinha à frente Ernest Mandel; o grupo O Trabalho (ex-OSI, Organização Socialista Internacionalista), formado em 1976 e vinculado à Quarta Internacional – Comitê Internacional de Reconstrução; a Convergência Socialista, formada em 1978 por ex-militantes do PST – Partido Socialista dos Trabalhadores, que tinha como referência o partido trotskista argentino dirigido por Nahuel Moreno; a Causa Operária, uma cisão da OSI (depois O Trabalho) em 1979, vinculada ao Partido Obrero da Argentina; e outros agrupamentos de menor peso. Ao longo da trajetória do PT, algumas dessas correntes oscilaram em diversos momentos da trajetória do PT entre posições no campo da revolução e da reforma, com destaque para a Democracia Socialista que, dentre outras coisas, chegou a ser expulsa do SU pelo seu apoio aos governos de conciliação de classe e suas medidas pró-capitalistas.