Alvaro Bianchi
O jornal Correio da Cidadania publicou recentemente um artigo de certo Gilvan Rocha intitulado “Aos trotskistas”. Apesar do título não se trata de uma carta ou de uma tentativa de discussão e sim de um ataque a Trotsky e ao trotskismo, mal informado e baseado em erros historiográficos primários. Dentre outros aterradores achados o notável articulista afirma que os trotskistas estiveram ausentes na “revolução boliviana, de 1952” e no “Maio francês”, contrariando toda a historiografia existente (toda, sem exceção). Obviamente Rocha nunca ouviu falar das teses de Pulacayo, de Guillermo Lora e Hugo Moscoso e também não deve conhecer o livro de Libório Justo. Quem dirá de Henri Weber, Daniel Bensaïd, Jacques Sauvageot, Alain Krivine e das dezenas, senão centenas de estudos sobre o movimento estudantil francês que relatam o protagonismo dos trotskistas ao lado de anarquistas e maoístas.
Livros não parecem ser o forte de Rocha. Ele também afirma que “os trotskistas se empenham em esconder a sua obra ‘Nossa Tarefa Política’”. Essa obra não existe. O livro foi publicado na França com o título Nos tâches politiques [Nossas tarefas políticas] (TROTSKY, 1970), traduzido pelo trotskista Boris Fraenkel e com avant-propos de Marguerite Bonnet. O mesmo livro, publicado pela editora trotskista New Park, na Inglaterra recebeu o título de Our political tasks [Nossas tarefas políticas] (TROTSKY, 1979). A editora New Park também publicou o Report of the Siberian delegation (TROTSKY 1979a). Ambas as versões encontram-se no site marxists.org. Traduzir e publicar o livro, todos devem concordar, não é uma boa maneira de escondê-lo.
Já dizia o renomado filósofo argentino Luis Landriscina que a ignorância é uma condição social, mas a burrice é patrimônio próprio. Que alguém não conheça a história da revolução russa ou a luta contra o stalinismo é perfeitamente compreensível. Que decida escrever sobre o tema, tornando pública essa ignorância em um artigo, aí já é coisa bem diferente. Que encontre cúmplices para tal, é escandaloso. Os editores do Correio da Cidadania precisam explicar porque decidiram divulgar tamanha ignorância. (Neste caso, como as alternativas são ignorância, burrice ou má-fé, o melhor seria reconhecerem logo a ignorância.)
Antonio Gramsci aconselhava a, na luta ideológica, enfrentar sempre os adversários mais fortes e as teses mais resistentes. Seu argumento era pleno de bom senso. Na luta político-militar, romper as linhas adversarias atacando o elo mais fraco fazia sentido. Mas no debate e ideias, destruir os auxiliares e suas fracas ideias não teria efeito algum. Não se pretende aqui desprezar esse conselho. De fato, gastar tempo com a burrice alheia é coisa para quem o tem de sobra. Mas apesar do artigo de Rocha ser primário e repleto de contradições ele pode servir como pretexto para discutir o fenômeno stalinista e debater algumas teses. O ponto de partida é o parágrafo-síntese de seu artigo, o qual espreme exóticas teses:
“O trotskismo, como produto subjacente da contrarrevolução vitoriosa, na medida em que não assumiu a derrota e não rompeu com as resoluções políticas aprovadas no X Congresso do PC russo, em 1921, particularmente com o monolitismo, o ultra-centralismo burocrático e o conceito de “partido da revolução”, consagrou-se como uma indiscutível corrente stalinista, embora dissidente da Terceira Internacional.”
Neste artigo pretende-se discutir apenas duas das exotéricas teses presentes nesse parágrafo: a) a ideia de que o “trotskismo” é um produto subjacente da contrarrevolução vitoriosa e b) a afirmação de que o “trotskismo” não propôs a revogação das resoluções organizativas aprovadas pelo X Congresso. Em outra oportunidade discutir-se-á o conceito de stalinismo tão mal utilizado pelo superficial autor.
O surgimento do “trotskismo”
Como corrente política o “trotskismo”, ou seja, a oposição à direção stalinista, surge muito antes da vitória definitiva da contrarrevolução, a qual só pode ser datada no final dos anos 1920 e início da década de 1930. Não é o objetivo discutir aqui quando essa vitória ocorre e sim quando a oposição liderada por Trotsky começou. Os historiadores da Revolução Russa e do partido bolchevique registram um grande número de debates fracionais e de oposições que surgem no interior do partido depois de 1917. Os comunistas de esquerda, a oposição militar, a oposição operária e o grupo centralismo democrático, são os agrupamentos mais conhecidos (ver a respeito BROUÈ, 1972 e DANIELS, 1988).
O próprio Trotsky envolveu-se em alguns desses debates, opondo-se à maioria partidária e a Lenin a respeito do acordo de paz de Brest-Litovski, em 1918, e da questão sindical, em 1921. Mas o que caracteriza a chamada oposição de esquerda, liderada por Trotsky a partir de 1923 não é a divergência a respeito de um ou outro ponto da política bolchevique e sim o combate frontal contra a burocracia partidária. Esse combate começou a ganhar contornos mais definidos em 8 outubro de 1923, quando o chefe do Exército Vermelho expôs suas opiniões em uma carta dirigida ao Comitê Central do partido. A carta visava a medida proposta por Dzerzhinsky segundo a qual todo militante do partido teria a obrigação de denunciar a existência de agrupamentos no partido ao CC, à Comissão de Controle e à GPU. A medida, claramente burocrática revelava, segundo Trotsky, a existência desses agrupamentos (frações) e de um estado de espírito que estimulava o surgimento de frações secretas.
Além de questionar essa medida Trotsky abriu fogo contra a indicação de dirigentes partidários locais pelo secretariado do partido. Segundo argumentou, mesmo durante a guerra as indicações eram um décimo dos níveis que haviam atingido em 1923. Por meio desse mecanismo o secretariado do partido havia criado um estrato de dirigentes intermediários que renunciava a toda opinião independente. A burocracia partidária alimentava-se desse mecanismo:
“A burocratização do aparelho do Partido desenvolveu-se em proporções inéditas por meio do método de seleção pelo secretariado. Tem sido criado um amplo estrato de trabalhadores do Partido, entrando no aparelho de governo do Partido, que renuncia completamente a sua própria opinião do partido, pelo menos a expressão aberta das mesmas, como se assumisse que a hierarquia do secretariado é o aparelho que cria opinião Partido e as decisões do Partido” ( VVAA, 1975).
Esse pesado ataque não foi, senão, o primeiro passo. Uma semana depois, 46 destacados dirigentes bolcheviques encaminharam uma carta ao Politburo do partido no qual manifestavam sua oposição aos rumos que a Nova Política Econômica (NEP) havia assumido e à crescente burocratização do Partido.[1] Trotsky não assinou a carta-plataforma, mas amigos e colaboradores muito próximos, como Preobrazhensky, Smirnov, Pyatakov e Antonov-Ovseenko, eram os organizadores da iniciativa. Os termos da plataforma eram ainda mais duros e, tinham, provavelmente, o objetivo de puxar a corda, forçando o Politburo a um acordo com Trotsky e este a tomar a iniciativa. Segundo os signatários:
“O regime estabelecido dentro do Partido é completamente intolerável; ele destrói a independência do partido, substituindo o partido por um aparato burocrático recrutado que age sem objeção em tempos normais, mas que inevitavelmente falhará em momentos de crise, e que ameaça tornar-se completamente ineficaz em face dos graves acontecimentos agora iminentes. A situação que foi criada é explicada pelo fato de que o regime da ditadura de uma facção dentro do partido, que foi, de fato, criado após o X Congresso, sobreviveu a si mesmo.” (Plataforma dos 46.)
As palavras escolhidas eram fortes: “ditadura de uma fração sobe o partido”. Já em sua carta, Trotsky havia demonstrado fingida surpresa com a existência de frações secretas. Que houvesse pequenos grupos de dissidentes todos sabiam e toleravam, mas o que estava por detrás dessa fingida surpresa era o reconhecimento da existência da troyka – Stalin, Zinoviev e Kamenev –, a fração secreta que comandava o partido. Entre os oposicionistas não havia dúvidas a respeito. Assim como não havia incertezas a respeito do uso que esta fazia dos instrumentos administrativos votados pelo X Congresso.
Mas o debate dos oposicionistas estava longe de tratar esses temas como princípios. Longe de afirmar uma “recusa” formal a esses instrumentos administrativos, argumentavam que a utilidade que eles poderiam ter tido em um contexto de crise já não fazia mais sentido. A discussão sobre esse tema nunca esteve no terreno dos princípios. Afinal tanto a proibição das frações internas quanto sua aceitação não deixavam de ser, igualmente, normas administrativas.
A pressão dos oposicionistas no mês de novembro e no início de dezembro obrigou o CC a convocar uma conferência extraordinária e a abrir as páginas do Pravda à discussão sobre a “situação interna do partido.” A política da troyka consistia em estabelecer um acordo com Trotsky, o qual relutava em lançar-se publicamente à luta, separando-o da aguerrida oposição dos 46. Um acordo entre Stalin, Kamenev e Trotsky permitiu encaminhar, no dia 5 de dezembro, uma resolução ao Politburo, a qual incorporava muitas das críticas deste último. Mas o comandante do Exército Vermelho não estava disposto a conformar-se e viu no acordo a possibilidade de tornar públicas suas ideias.
No dia 8 de dezembro, Trotsky endereçou uma carta às plenárias do partido que haviam sido convocadas, na qual afirmava que a resolução do Politburo era de “uma significância excepcional. Ela indica que o partido chegou a um importante ponto de mudança em seu caminho histórico.” O texto de Trotsky era bastante ambíguo. Ao mesmo tempo em que defendia o acordo e o “novo rumo” que poderia dele derivar, enfatizava o risco de degeneração burocrática da “velha guarda” e concluía que era necessário reconhecer e enfrentar esse perigo aprofundando a democracia do partido: “O partido não tem outros meios para empregar contra este indubitável perigo que uma séria, profunda e radical mudança no curso em relação à democracia partidária e um fluxo cada vez maior em seu meio de elementos da classe trabalhadora.” (VVAA, 1975.)
A publicação por Trotsky de O novo curso, ainda em 1923, reafirmou essa conclusão. Enquanto isso, a troyka agia para neutraliza-lo, ao mesmo tempo que abria pesada artilharia contra os 46. Nas plenárias do partido realizadas na primeira quinzena de dezembro o tom da discussão foi ganhando altura. Na conferência de Moscou, Saporonov, um “velho bolchevique” de 36 anos, organizador do Grupo Centralismo Democrático, em 1919, e alto funcionário do partido, reagiu contra o relatório apresentado por Kamenev, o qual defendeu a burocracia partidária: “O camarada Kamenev votou favoravelmente à resolução do Politburo, mas todo o seu discurso foi construído em oposição a esta resolução sobre uma superestimação do aparelho e uma subestimação do Partido.”
Apesar da reação cuidadosa de Trotsky, sua carta às plenárias do partido, com toda sua ambiguidade, fornecia aos 46 os argumentos e a oportunidade para levar adiante de maneira explícita o combate. O sentido da resolução do Politburo encontrava-se em disputa, mas também o sentido da carta de Trotsky parecia estar. Para Saporanov: “A avaliação dos camaradas Kamenev e Trotsky sobre o aparelho do Partido são completamente contrárias e não é Kamenev quem está correto em sua avaliação. É incorreto colocar a questão como se o aparelho fosse nos salvar. Só ‘homens aparelhos’ podem ver a salvação no aparelho e não na iniciativa do Partido.” (VVAA, 1975.)
Pouco depois, em dezembro do mesmo ano, Trotsky voltou ao tema em um novo artigo. Neste o comandante do Exército Vermelho mostrava que na prática o partido havia tolerado a existência de frações e que essa atitude não havia sido alterada pelo X Congresso, como se revelou na aguda luta política que teve lugar em Leningrado, imediatamente após as frações serem proibidas. O CC não apenas não tomou partido na disputa como colocou-se no papel de árbitro entre as duas frações existentes. Segundo Trotsky, os efeitos e a importância dessa resolução haviam sido sobredimensionados pelo aparelho burocrático do partido. Mas seu propósito original era apenas auxiliar:
“A decisão do X Congresso proibindo as facções pode ter apenas um caráter auxiliar; por si só, não dá a chave para a solução de todas as dificuldades internas. Seria ‘fetichismo organizacional’ acreditar que, independentemente do desenvolvimento do partido, os erros da liderança, o conservadorismo do aparato, as influências fora dele, etc, uma decisão é suficiente para nos preservar de agrupamentos e da desordem inerentes à formação de facções. Olhar para as coisas desta maneira seria dar prova de burocratismo.” (TROTSKY, 1923.)
Toda ênfase de Trotsky era colocada em um argumento já presente em sua carta de outubro de 1923 ao CC: o aparelho burocrático não deveria ser sobrestimado; a iniciativa dos militantes do partido não poderia ser subestimada. Nessa dialética entre aparelho e partido (militantes), o líder do soviet de Outubro considerava importante relembrar ao aparato que ele era o aparato do partido, eleito por ele e que não poderia dele separar-se. E embora o argumento de Trotsky fosse exposto de maneira cuidadosa ele, fundamentalmente, ecoava as teses e as preocupações dos 46.
A luta pela democracia no partido tornou-se cada vez mais aguda. Stalin julgava que o acordo com Trotsky e a resolução do dia 5 de dezembro haviam encerrado a questão e não o perdoou por ter publicado uma carta a todas as plenárias do partido no dia 8 do mesmo mês. Dia 15 de dezembro, o secretário-geral foi à luz pela primeira vez mostrar de que lado estava na discussão por meio de um longo artigo no Pravda. No artigo, o cruel georgiano anunciava que a oposição, formada por comunistas de esquerda e remanescentes do Grupo Centralismo democrático, já havia “sofrido uma esmagadora derrota” (STALIN v. 5, p. 381). Stalin assim resumiu as exigências democráticas dos oposicionistas:
“Enquanto exigia a plena implementação da resolução aprovada pelo X Congresso sobre a democracia interna do partido, a oposição, ao mesmo tempo insistia na eliminação das restrições (proibição de grupos, a regra da unidade do partido, etc) que foram adotadas pelo X, XI e XII Congressos do Partido.” (STALIN, 1954, v. 5, p. 381.)
O artigo de Stalin era uma declaração de guerra em nome do aparelho burocrático contra a oposição. Segundo pensava, Trotsky havia ferido a disciplina do Comitê Central com sua carta: “a qual não pode ser interpretada de outra forma do que como uma tentativa de enfraquecer a vontade dos membros do partido pela unidade e apoio ao Comitê Central e sua posição.” (idem, p. 393). O secretário-geral não gostou nada de ver as tendências burocráticas no aparelho bolchevique serem comparadas com a degeneração da Segunda Internacional. Admitia até que hipoteticamente existiria um risco de burocratização no aparelho bolchevique. Mas a respeito disso trovejava: “Como uma possibilidade, tal perigo pode e deve ser assumido. Mas isso significa que esse perigo é real, que ele existe? Eu acho que isso não acontece.” (STALIN, 1954, v.5, p. 395).
O mais notável no artigo de Stalin é que ele não concedia a Trotsky nenhuma margem de acordo que não fosse a rendição. Não bastava a moderação de Trotsky e sua renúncia a participar diretamente do debate. Para o georgiano, a carta de 8 de dezembro não era uma tentativa de constituição de um terceiro campo ou de uma saída negociada com a troyka, ela teria o objetivo velado de:
“diplomaticamente apoiar a oposição em sua luta contra o Comité Central do Partido fingindo apoiar a resolução do Comitê Central. Isso, de fato, explica o selo de duplicidade que tem a carta de Trotsky. Ele está em um bloco com os centralistas democratas e com uma parte dos comunistas “de esquerda” – é aí que reside o significado político da ação de Trotsky.” (STALIN, 1954, v. 5, p. 397)
O artigo de Stalin antecipou o tom da discussão em janeiro, deixou claro que o objetivo era derrotar Trotsky e deu um norte para a burocracia partidária, a qual era menos afeita às oscilações de Zinoviev e Kamenev ou às sutilezas de Bukharin. A luta continuou, assim, nos primeiros meses de 1924 nas conferências provinciais e na XIII Conferência partidária, realizada entre 16 e 18 de janeiro de 1924, uma semana antes da morte de Lenin. Mas apesar da declaração de guerra lançada por Stalin, o comandante do Exército Vermelho continuou a mover-se cautelosamente.
A conferência de janeiro havia sido projetada pela troyka para assegurar uma ampla maioria à burocracia partidária e impor uma derrota definitiva à oposição. Poucos dias antes da reunião, Trotsky publicou, com o título de Novo curso, uma coleção de artigos e discursos, alguns dos quais já haviam saído no Pravda. Embora os artigos já fossem conhecidos e prevalecesse neles certa ambiguidade, a burocracia partidária interpretou o movimento de Trotsky como mais um lance de apoio à oposição.
Contando com ampla maioria, a troyka desfechou um ataque frontal contra a oposição e, principalmente, contra Trotsky. Em seu relatório, Stalin procurou caracterizar o comandante do Exército Vermelho como alguém que “que se colocou em oposição ao CC e se imagina como um super-homem, ficando acima do CC, acima de suas leis, acima de suas decisões” (idem, p. 14). Em sua réplica Stalin continuou e acusou Sapronov de agir “insincera e hipocritamente” (idem, p. 35); Preobrazhensky de parecer um “lavrador” (idem, p. 36); Radek, por sua vez, foi apresentado como um “homem que tem uma língua que não pode dirigir e que escravo de sua própria língua” (idem, p. 42); e Antonov Ovsenko como alguém que estava em desacordo com “as regras elementares de decência” (idem, p. 43-44).
Mas o brutal sarcasmo do chefe da troyka não bastava. Citações da oposição foram manipuladas para comprometer Trotsky ao mesmo tempo em que o grito de guerra de “menchevismo” foi lançado pela primeira vez contra a oposições. Ainda assim era necessário ir além e apelar para medidas administrativas extraordinárias. Stalin fez isso em seu relatório retirando da gaveta o parágrafo secreto da resolução do X Congresso do partido. A resolução aprovada por aquele Congresso, em 1921, no auge da luta sobre a questão sindical continha um dispositivo que permitia ao CC, nos casos nos quais a disciplina partidária fosse quebrada e ressurgisse o fracionalismo, “aplicar todas as penalidades, até mesmo a expulsão do partido” inclusive aos membros do Comitê Central (idem, p. 24). Em seu relatório Stalin propôs incluir o texto do X Congresso no relatório final e torna-lo público, ameaçando claramente a oposição (idem).
Preobrazhensky não respondeu, durante seu discurso à ameaça de Stalin. Mesmo assim, Stalin retomou a ameaça em um tom ainda mais ameaçador:
“Você tem medo disso também? Será que vocês, Preobrazhenski, Radek, Sapronov, estão pensando em violar a disciplina do Partido, de reviver o faccionalismo? Bem, se isso não é a intenção, então do que têm medo? Seu pânico mostra-se, camaradas. Evidentemente, se vocês tem medo de ponto sete da resolução de unidade, vocês deveriam ser favoráveis ao facciosismo, à violação da disciplina, e contra a unidade. Caso contrário, por que todo o pânico? Se a consciência está limpa, se forem a favor da unidade e contra o facciosismo e a violação da disciplina, então não é claro que a mão punitiva do Partido não lhes tocará? O que há a temer, então? ” (idem, p. 41)
Na plateia alguém reagiu: “Mas por que você incluiu o ponto se não há nada a temer?”. Ainda mais amedrontador o georgiano respondeu: “Para te relembrar.” (idem). Ninguém esqueceu a ameaça. Ela ainda ecoou no XIII Congresso, realizado em julho de 1924, quando, ao mesmo tempo em que anunciava a “promoção Lenin” com vistas a abrir o partido a novos filiados alterando sua composição social e política, Stalin defendeu a realização de um “expurgo” interno, que livrasse o partido dos elementos instáveis (v. 6, p. 239). E para que não restassem dúvidas do que se avizinhava o secretário-geral caracterizou a oposição como um “desvio pequeno-burguês”, abrindo o caminho para os expurgos (idem, p. 232 e 242).
Conclusão
Stalin venceu essa primeira batalha pelo controle do partido, isolando Trotsky. Mas em 1923-1924 a luta no interior do Partido Comunista da Rússia (bolchevique) estava longe de ser decidida. Em dezembro de 1923, o aparelho burocrático venceu as votações em 348 células partidárias de Moscou, contra 162 que deram a vitória aos oposicionistas, um número nada desprezível em que pese as inúmeras chantagens e ameaças contra os militantes oposicionistas (cf. o interessantíssimo artigo de HINCKS, 1992).
A batalha contra a burocracia estava dando seus primeiros passos e coube aos 46 a vanguarda. Reunindo antigos partidários do comunismo de esquerda com os centralistas democráticos a plataforma lançada em dezembro de 1923 aglutinou os militantes que pouco depois conformariam a Oposição de Esquerda sob a liderança de Trotsky.
A posição de Trotsky nos primeiros combates foi ambígua e procurou, em mais de uma oportunidade, um acordo com a maioria da direção. O comandante do Exército Vermelho pagou caro pela sua vacilação, recebendo no XIII Congresso um número de votos que lhe garantiu o 51º lugar entre os 52 eleitos para o Comitê Central. Mas suas diferenças com esta eram grandes demais para permitir uma solução negociada. Justiça seja feita, a burocracia partidária compreendeu isso antes do próprio comandante do Exército Vermelho. A luta dos 46 foi, entretanto, levada a cabo em nome de Trotsky, como fica claro nos discursos dos oposicionistas, particularmente de Preobrazhensky, Sapronov e Pyatakov, nas instâncias do partido.
Poucos meses mais seriam necessários para um novo conflito com o centro partidário, um conflito que tornaria o criação da oposição de esquerda incontornável para o próprio Trotsky. O “trotskismo” não é, assim, um produto da “contrarrevolução vitoriosa” e sim da luta contra a burocracia soviética contrarrevolucionária. Nesta luta os oposicionistas de 1923, assim como Trotsky, consideraram que já era o momento de deixar as resoluções do X Congresso para trás e propuseram explicitamente sua revogação ou reformulação. Afirmar o contrário, como já foi dito, é ignorância, burrice ou, simplesmente, má-fé.
Referências bibliográficas:
BROUÈ, Pierre. El partido bolchevique: México D.F.: Ayuso, 1972.
DANIELS, R. V. Conscience of the Revolution: Communist Opposition in Soviet Russia. Boulder, CO, Westview Press, 1988.
HINCKS, Darron. Support for the Opposition in Moscow in the Party Discussion of 1923-1924. Soviet Studies, v. 44, n. 1, p. 137-151, 1992.
STALIN, J. V. Works. Moscou: Foreign Languages, 1954, 14v.
TROTSKY, Leon. Nos tâches politiques. Paris : Denöel-Gonthier, 1970
TROTSKY, Leon. Our political tasks (1904). Londres: New Park, 1979.
TROTSKY, Leon. Report of the Siberian Delegation (1903). Londres: New Park, 1979a.
TROTSKY, Leon. The new course. Ann Arbor: University of Michigan Press, 1965.
VVAA. Documents of the 1923 Opposition. London : New Park, 1975.
[1] Neste artigo não sera abordada a polemica sobre a NEP.
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