Por que Emir Sader fracassou?

Alvaro Bianchi

Emir Sader publicou em seu blog na Carta Maior um texto no qual afirma que a extrema-esquerda latino-americana fracassou. Segundo o autor, a extrema-esquerda não teria entendido que os governos do Brasil, Bolívia, Equador, Uruguai, Argentina e Venezuela constituiriam o “único polo mundial de resistência ao neoliberalismo”. Sem reconhecer o caráter “progressista” deles, a “extrema esquerda terminou tomando como seus inimigos fundamentais esses governos, aliando-se, tácita ou explicitamente à direita contra eles, abandonando a possibilidade de compor um quadro da esquerda, onde seriam a alternativa mais radical.”

O alvo explícito de Sader é o PSOL. Seu conhecimento sobre esse partido é, entretanto, muito superficial, a ponto de afirmar que esse partido “foi rapidamente hegemonizado por trotskistas (da tendência morenista, de origem na Argentina)”. Seria o senador Randolfe um cripto-morenista? O que resta do artigo não é mais profundo: um conjunto de afirmações sem corroboração, generalizações duvidosas e receitas simplistas. A alternativa apresentada por Sader é bastante simples. A extrema-esquerda deveria abandonar as denuncias e tornar-se governista:

“uma força de esquerda radical deveria analisar o governo do PT reconhecendo os avanços realizados e apoia-los, ao mesmo tempo que criticar suas debilidades. Se propor a ser aliado do governo à sua esquerda, nos aspectos comuns e critico nos outros. Teria que apoiar a política externa do governo, suas politicas sociais, seu resgate do papel ativo do Estado nos planos econômico e social. Que apoiar o conjunto de governos progressistas na região, que protagonizar os processos de integração regional.” (SADER, 2013)

Tudo muito fácil. Como não seguiu a receita de Sader, a extrema-esquerda fracassou. Não se pode exigir muito de um artigo de opinião, estilo que o autor adotou há mais de quarenta anos. Trata-se de um estilo autoimune. Livre das exigências do trabalho científico ele não requer documentos, fontes, dados, enfim, qualquer tipo de validação empírica. O artigo de opinião permite ao autor expor simplesmente suas ideias. Mas se as opiniões de um indivíduo podem garantir bons rendimentos, não bastam para sustentar argumentos. O que não podemos exigir de um artigo de opinião podemos exigir de um cientista social.

Qual é o critério do fracasso?

Como sempre, o autor não oferece indícios empíricos que sustentem suas afirmações. Mas intui-se que o indicador do fracasso da extrema-esquerda é seu desempenho eleitoral. Embora útil para a análise da conjuntura, a análise exclusivamente dos resultados obtidos em eleições ou pesquisas de opinião para avaliar o peso de organizações políticas e movimentos sociais é muito limitado e induz a sérios equívocos.

O argumento mais fácil para deslegitimar o ensaio de Sader é afirmar que as forças políticas que desejam a emancipação social têm fracassado eleitoralmente, mas como as eleições se demonstraram ineficazes para a realização da emancipação social o jogo continua empatado. Nem os revolucionários mostraram que conseguem vencer eleições, nem os reformistas mostraram que conseguem vencer por meio das eleições. Mas deixemos os argumentos fáceis para os ensaístas. Concordemos com a ideia de que os resultados eleitorais são muito importantes para avaliar a força de organizações políticas. A questão é: isso basta?

Os bolcheviques conquistaram o poder em 1917 e logo a seguir perderam nas eleições para a Assembleia Constituinte, sem com isso perderem o poder. O partido de Adolf Hitler obteve 2,6% dos votos em setembro de 1930 e em janeiro de 1933 chegou ao poder, derrotando sem pena nem glória social-democratas e comunistas. Os stalinistas espanhóis eram uma força política muito pequena no início da guerra civil espanhola, mas terminaram, graças ao apoio da União Soviética, dirigindo politicamente o Partido Socialista Obrero Español, uma organização muito maior. Salvador Allende foi derrotado três vezes antes de vencer uma eleição presidencial no Chile e foi assassinado pelos militares que nunca ganharam uma eleição. Três anos depois de liderar as greves do ABC paulista, Luís Inácio Lula da Silva e seu Partido dos Trabalhadores obtiveram um desempenho eleitoral pífio. Os brasileiros votaram em Fernando Collor em 1989, dois anos depois o derrubaram e hoje poucos se lembram do nome da legenda que o elegeu. Há muito indícios de que é preciso ter cuidado com os resultados eleitorais na análise de relações de forças entre partidos. As eleições expressam apenas um momento efêmero das relações de forças políticas.

Essas relações de forças se expressam de maneira contraditória na consciência de classe. A consciência de classe é compósita. Não é homogênea. Trabalhadores que estão dispostos a ações radicalizadas na defesa de seus salários ou dos sindicatos, tais como greves e ocupações, muitas vezes frequentam templos evangélicos, possuem valores conservadores e  votam em políticos reacionários. A concepção de mundo que possuem é heterogênea, fragmentária e contraditória. Por essa razão, uma análise da relação de forças não pode ser unilateral. Ela não pode levar em conta só greves, conflitos e mobilizações. Mas também não pode estar pautada exclusivamente em critério eleitorais.

Uma análise materialista da relação de forças entre organizações politicas deveria levar em conta as várias formas da luta de classes. Engels, e mais tarde Lenin, considerava que a luta possui ao menos “três lados, o teórico, o político e o prático-econômico (oposição aos capitalistas)”. Obviamente não há sentido reduzir o momento político à luta eleitoral, assim como é errado, nesta perspectiva, opor eleições à luta de classes ou considerar o momento prático-econômico preponderante sobre os demais.

Afinal, quem fracassou?

Percebe-se assim que a análise de Sader é completamente arbitrária. Para caracterizar os governos de Argentina, Bolívia, Brasil, Equador, Uruguai e Venezuela como pós-neoliberais e afirmar o fracasso da extrema-esquerda o autor é obrigado a suprimir de sua narrativa qualquer referência às lutas econômico-sindicais ou econômico-políticas. Realiza a façanha de falar da América Latina sem mencionar as gigantescas lutas sociais que marcaram o ano.[1]

No Brasil, por exemplo, o jovem precariado foi às ruas em 2013; o sindicalismo de oposição aumentou consideravelmente sua influência; grevistas questionaram a legitimidade de governos estaduais e municipais; o movimento estudantil deu mostras de que está renascendo; e os sem-teto intensificaram as ocupações de terras urbanas e prédios. O governo Dilma Roussef enfrentou, pela primeira vez duas paralisações nacionais e os bancários realizaram forte greve em todo o país no mês de setembro. Segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) o número de greves realizadas no Brasil no ano de 2012 foi o maior desde 1997. A tendência vista em 2013 é a de um crescimento ainda maior, embora ainda não existam dados.

O quadro não é muito diferente nos demais países citados por Sader. Na Argentina os trabalhadores fizeram uma greve geral em 2012 e o conflito social manteve-se intenso no ano de 2013, destacando-se a greve nacional dos caminhoneiros, as greves dos petroleiros e dos policiais nas províncias. De acordo com Programa de Investigación Sobre el Movimiento de la Sociedad Argentina (Pimsa), apenas no primeiro semestre de 2013 ocorreram na Argentina 457 manifestações, 172 cortes de estrada e 120 greves. No Uruguai, a central sindical, governista, diga-se de passagem, foi obrigada pela base a convocar três paralisações nacionais em 2013, reivindicando aumentos salariais. Na Venezuela, o movimento sindical independente participou ativamente dos conflitos em Sidor y Ferrominera, na mobilização dos professores e em industrias nacionalizadas como Diana e Lácteos Los Andes e o descontentamento contra o aumento de preços deu origem a uma onda de protestos e mobilizações no último trimestre de 2013.

Na Bolívia, os trabalhadores têm realizado importantes greves e enfrentado o governo Morales. Em 2012 a Central Obrera Boliviana (COB) recobrou seu antigo protagonismo e aprovou em seu Congresso a construção de um novo instrumento político dos trabalhadores para enfrentar o governo. Os choques do movimento sindical com o governo não cessaram e em maio de 2013 a COB convocou uma greve geral que contou com forte participação dos mineiros, os quais retomando velhos métodos de luta usaram dinamite para cortar o acesso a estradas. O governo reprimiu duramente os mineiros e um rápido processo de radicalização política teve lugar. Apenas o Equador permanece como uma ilha de tranquilidade aparente em meio a um mar revoltoso.

Em todos esses países as greves, passeatas, manifestações, ocupações e bloqueios de estradas enfrentaram os governantes locais e nacionais, expressando a crescente insatisfação social nesses países. Os governantes, por sua vez atacaram duramente os manifestantes, perseguiram os ativistas, ameaçaram os sindicatos, cortaram o ponto e demitiram grevistas. Seus partidos convocaram contra-mobilizações, as quais frequentemente fracassaram, lançaram campanhas de difamação, estimularam a repressão policial e apelaram, em certas ocasiões, a bandos paramilitares.

A extrema-esquerda, por sua vez, participou ativamente desses conflitos, preparou pacientemente as mobilizações, esteve à frente dos confrontos, construiu coordenações, assembleias e  fóruns para organizar as lutas. Pagou um preço alto por isso. Seus militantes foram combatidos por fascistas nas ruas, foram presos a mando dos governantes e sofrem processos judicias acusados de “formação de quadrilha”. Sob esta perspectiva, quem fracassou? Os governantes que não conseguiram responder à crescente insatisfação social? Ou a extrema-esquerda, que contribuiu de maneira decisiva para a organização dessa insatisfação?

Conclusão

Não foram só os “governos pós-neoliberais” os que fracassaram. Emir Sader também fracassou como analista. Não conseguiu sequer enxergar as ruas de seu próprio país. O quadro que oferece em seus artigos é o de um mundo no qual as classes e os movimentos sociais desaparecem para dar lugar a governos. Tudo se resume a um conflito interestatal: governos neoliberais contra governos pós-neoliberais; governos conservadores contra governos progressistas, países imperialistas contra latino-americanos. Nesse quadro simplista e simplório, quem não está apoiando os governos progressistas está “aliando-se, tácita ou explicitamente à direita contra eles”.

A direita!! Mas quem é esse fantasma. Na perspectiva de Sader o critério é simples: é quem está contra os “governos progressitas”. Nesse caso teríamos que excluir da “direita” a ruralista Katia Abreu, o governador Sérgio Cabral, os senadores Renan Calheiros e José Sarney e parte considerável da bancada evangélica. Como se sabe, todos eles são companheiros de Sader na defesa do governo.

Na teoria das relações internacionais a corrente realista caracterizou-se por assumir as unidades estatais como os agentes exclusivos da política internacional. Foi com esse quadro teórico que gerações de analistas foram formadas durante a chamada guerra fria. Em sua versão soviética tudo era reconduzido à crua realpolitik. Todas as ações da burocracia stalinista encontravam-se previamente justificadas pela existência da ameaça “imperialista”. Sader deixa clara sua adesão a essas teses no prefácio que escreveu à nova edição que a Civilização Brasileira publicou da trilogia de Deustscher sobre Leon Trotsky. Nele justificou a política staliniana como o leibiniziano doutor Pangloss explicava a Candido: é o melhor dos mundos possíveis.

Mas o mundo possível de Stalin condenava a oposição à morte ou aos campos de concentração, sufocava a revolução espanhola, abandonava os gregos à sanha dos ingleses, entregava as armas dos partigiani ao exército. Segundo Sader, o melhor dos mundos possíveis é agora aquele no qual a previdência social é reformada, o pré-sal privatizado, a reforma agrária congelada, e aquele no qual banqueiros e empreiteiros se locupletam com as benesses governamentais. Isto pode servir para a propaganda governamental. Mas para a compreensão da realidade atual não.

Referências bibliográficas:

DIEESE. Balanço das greves em 2012. Estudos e Pesquisas, n. 66, 2013.

PIMSA. Informe semestral sobre hechos de rebelión. Buenos Aires:  Programa de Investigación Sobre el Movimiento de la Sociedad Argentina, 2013.

SADER, Emir. Por que a extrema esquerda fracassou. Carta Maior, 4 Nov. 2013. Disponível em: <http://bit.ly/1da5lxl>


[1] Os indicadores que permitiriam analisar de modo mais exato a intensidade do conflito social são muito precários na América Latina. À frente do Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (Clacso), Emir Sader e seu sucessor Pablo Gentilli não fizeram muito para criar esses indicadores. E em 2013 o Clacso cortou o financiamento da pesquisas que sustentavam as cronologias do conflito social na América Latina, publicadas pelo Observatorio Social de América Latina (Osal).