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TEORIA

Consciência tradeunionista e consciência revolucionária em Lenin

Francisco Alberto

Neste artigo não podemos compreender o debate teórico que começava a surgir no interior das organizações socialistas sem ter em mente o contexto histórico e social que precedeu o mesmo. Tratemos aqui de um dos acontecimentos de grande relevância: a possibilidade de um processo revolucionário na Rússia czarista, que acabou se concretizando em 1917. A situação dos trabalhadores russos ia de mal a pior, com a miséria crescente em um estado ainda com traços fortemente feudais.

Para compreender a interconexão existente entre essas duas dimensões foi necessária uma série de desdobramentos que tiveram suas devidas consequências: a ressignificação da apropriação da teoria marxiana, que levava em consideração as condições de existência de cada abordagem de pensamento no período histórico que dá início ao século XX. Em particular as formulações de Lenin e Gramsci das experiências do movimento operário em ascenso inicial foram de fundamental importância para resgatar o caráter crítico e antidogmático da teoria de Marx, tanto teórica e metodologicamente como sendo também um guia para a ação.

A recusa de uma neutralidade axiológica[1] tipicamente weberiana, que afirmava ser indesejável a relação entre ciência e ideologia, sob pena de deixar de lado o caráter “objetivo” do raciocínio científico, bem como de uma visão positivista da realidade social, que se apropriava da objetividade dos fatos de forma ainda mais mecânica, se transformando desse modo em apologistas do sistema vigente. Importante relembrar que essa visão positivista também atingia um setor importante da esquerda, a exemplo da socialdemocracia oriunda da Segunda Internacional.

A abordagem de Lenin sobre a possibilidade de uma consciência revolucionária está ligada a algumas questões, de caráter preliminar, a serem expostas no decorrer da discussão. Discutir o fenômeno da consciência de classe na sociedade marcada pelo trabalho especificamente capitalista requer atenção e cuidado, como já foi colocado, sempre observando suas peculiaridades e consequências de fundamentação prática.

De forma inicial, a perspectiva lenineana guarda pontos de identificação com experiências teóricas e, consequentemente programáticas, tanto de Marx, com a formulação do elemento subjetivo no processo de revolução social que tanto foi discutida pela literatura marxista (incluindo os dias atuais), bem como do próprio Gramsci, com  seus escritos políticos no período pós-1917 (ano da Revolução Russa). Entretanto, guarda especificidades que estão intimamente relacionadas ao contexto social, político e econômico da sociedade russa. Vejamos.

A crítica ao economicismo e o resgate da discussão marxiana

 

O contexto do movimento operário russo no final do século XIX perpassa a divulgação das ideias socialistas a partir de uma atuação de propaganda que no início do século XX deu início a um debate sobre a consciência revolucionária, feito à luz das condições de “elevação” do nível de consciência dos trabalhadores da cidade e do campo em plena Rússia do início do século XX. Afinal de contas, existiam inúmeras publicações que surgem nesse contexto, como o “Rabótcheie Dielo” (“Causa Operária”), que era o principal jornal da corrente do movimento operário russo conhecida posteriormente como “economicista”, e o “Rabótcheie Misl” (“Pensamento Operário”), órgão de propaganda da mesma ala da social-democracia, de caráter mais regional (editado em São Petersburgo).

A ala “economicista” do POSDR (Partido Operário Social-Democrata Russo) argumentava que a luta econômica (daí o termo que dá nome a esse grupo), com ênfase na reivindicação por melhores condições de trabalho e melhores salários, era suficiente para a elevação da consciência operária a partir de um horizonte mais estratégico, como a luta pela emancipação da humanidade. Essa postura teórica tinha uma consequência prática clara, isto é, acabava por negar a luta política de caráter mais amplo, para além dos sindicatos e do espaço próprio da fábrica enquanto local de trabalho.[2] Ressaltando que essa postura teve uma base objetiva, que deixou um campo aberto para a divulgação massiva dessa perspectiva.

As greves operárias do fim do século XIX e início do XX cumpriram um importante papel por terem sido greves que já demostravam, conjunturalmente falando, uma modificação da situação social e política do país. Entretanto, sem ter uma caracterização clara dos acontecimentos recentes, acabou por tirar conclusões de que a classe operária, através de seus organismos de defesa de interesse (exemplificando os sindicatos) seria capaz de adquirir a consciência de sua “universalidade” no sentido que Marx coloca, de ser condição para a supressão de toda e qualquer sociabilidade baseada na exploração do homem pelo homem.

O objetivo de Lenin em escritos como “Que Fazer” era expor os problemas, de caráter organizativo, da classe operária na Rússia czarista a partir de elementos específicos dessa sociedade, daí o elemento histórico que deve guiar o estudo de seus escritos políticos. A crítica de Lenin vai no sentido de diferenciar a consciência “tradeunionista” da consciência revolucionária (ou na terminologia original, “social-democrata”, em alusão ao partido do mesmo nome). [3]

A crítica ao “culto da espontaneidade” dos jornais em questão está presente nessa ótica. Antes, deve-se ressaltar que Lenin nunca afirmou, em momento algum de seus escritos, que a espontaneidade do movimento operário era por si só e em todos os momentos do confronto entre classes, um elemento prejudicial. Essa afirmação é fruto de um erro de compreensão da sua teoria, a partir de uma visão escolástica de seu pensamento. Essa crítica se dirige não à espontaneidade, mas a um “espontaneísmo” em achar que as manifestações espontâneas de classe conduzem, inevitavelmente, a uma luta para modificar a sociedade vigente.

Para Lenin, o elemento subjetivo tendo como mediação o partido político da classe operária cumpre um papel no decorrer dessa passagem. Não entraremos na discussão mais pormenorizada do modelo organizativo de partido, o núcleo central do tema a ser tratado são as diferenças entre uma forma mais “sindicalista” de consciência e a forma “política” cuja mediação se traduz no partido, na ótica lenineana.

A relação entre consciência e espontaneidade está presente nos debates pós- Marx por conta de fatores políticos, mas também razões de orientação econômica. As modificações no modo pelo qual o capital internacional se movimenta, seu padrão de acumulação influenciaram de forma direta a produção teórica e política do movimento operário após a morte de Marx, e algum tempo depois, Engels.

A mediação do partido faz parte de um aspecto ressaltado por Bianchi (2004) que é o da “analise concreta da situação concreta”[4]. Essa metodologia é fruto de uma recusa de Lenin a uma visão “positivizada” e mecanicista da consciência e de seu caráter antidogmático e que possuía um fim claro, as necessidades de organização da classe trabalhadora na Rússia, bem como suas condições de formação da consciência revolucionária como fruto de uma determinação não esquemática da economia, mas sempre composta de interconexões entre os elementos econômico, político e da vida social em sua totalidade, sempre visualizando os meios de “elevação” dessa consciência:

“Em terceiro lugar, o primeiro número da Rabótchaia Mysl mostra-nos que a denominação de “economismo” (à qual, evidentemente, não temos intenção de renunciar, pois de qualquer modo este vocábulo já adquiriu direito de ser citado) não traduz com exatidão suficiente o fundo da nova tendência. A Rabótchaia Mysl não nega completamente a luta política: os estatutos da caixa que pública em seu primeiro número falam da luta contra o governo. A Rabótchaia Mysl considera somente que “o político segue sempre docilmente o econômico”. (E o Rabotchéie Dielo dá uma variação dessa tese, afirmando em seu programa que “na Rússia, mais que em qualquer outro país, a luta econômica é inseparável da luta política”). Essas teses da Rabótchaia Mysl e do Rabotchéie Dielo são absolutamente falsas, se por política se entende a política social-democrata. Com muita freqüência, a luta econômica dos operários, como já vimos, está ligada, (não de forma indissolúvel, é verdade) à política burguesa, clerical, ou outra.”[5]

Existe um outro elemento a ser destacado aqui. Em Lenin, a luta exclusivamente restrita ao chão da fabrica não vai além dos limites do capital, ou seja, possui uma carga “reformista”, nas palavras do próprio. Como destacado em discussões anteriores de Marx sobre os sindicatos e seu papel, o sindicato enquanto organização de interesse, de caráter regional e que organize reivindicações próprias de uma categoria de trabalhadores (petroleiros, trabalhadores rurais, telemarketig, etc.), é importante do ponto de vista da criação de uma solidariedade de classe, com certas ressalvas. A unificação dessas categorias só pode ser possivel com o rompimento com a consciencia corporativa e localizada de uma fábrica. Sem a expansão do elemento da solidariedade de nada valerá a capacidade objetiva de se proporcionar um conjunto de exigências que ponham a descoberto as contradições da produtividade do capital.

Outra ressalva é o papel claro dos sindicatos do ponto de vista da sua objetividade. Ricardo Antunes (1980), resgatando Marx, afirma que sua finalidade principal é lutar contra o despotismo da classe proprietária e do capital sobre a força de trabalho. Isso significa impedir que o preço dessa força de trabalho seja rebaixado a um nível menor do que o necessário para que o trabalhador se mantenha. Essa luta no espaço da produção só é possivel em relações de trabalho assalariado.

Antunes expõe essa finalidade:

“Os sindicatos são, portanto, associações criadas pelos operários para sua própria segurança, para a defesa contra a usurpação incessante do capitalista, para a manutenção de um salário digno e de uma jornada de trabalho menos extenuante , uma vez que o lucro capitalista aumenta não só em função da baixa dos salários e da introduçaõ das máquinas, mas também em função do tempo excessivo de trabalho que o capitalista obriga o operário a exercer” (grifo meu). [6]

Marx e Engels, em seus  primeiros escritos sobre sindicato vão analisar antes mesmo de Lenin os limites e  êxitos possíveis dessas organizações. As lutas econômicas por melhores salários e condições de venda da força de trabalho são necessarias do ponto de vista objetivo e subjetivo. De um ponto de vista objetivo, são a possibilidade de arrancar conquistas ainda que limitadas e por dentro do capitalismo, enquanto elemento pedagógico que contribuirá para o desenrolar de uma identidade de classe, já direcionando para  as formas subjetivas, possibilita que essa identidade de classe e a consciência não fragmentada de seus interesses.

Os sindicatos surgem do próprio sistema capitalista, consequentemente necessitam de uma base material para sua sobrevivência, que é o modo de produção que cria uma nova forma de alienação do trabalhador face ao seu produto. Portanto, não podem em si superar esses limites bem traçados, presentes nas relações entre capitalista e trabalhador, na dimensão contraditória entre o valor-de-uso e o valor-de-troca e a supremacia do segundo sobre o primeiro.

Isso significa que as lutas por melhores salários e condições de trabalho não são por sua “essência”  revolucionárias, como foi destacado pelas experiências permanentes que o movimento operário acumula desde o surgimento das trade-unions. O capitalismo , quando criticado em sua radicalidade, a partir da definição marxiana, distingue:

“É fato, no entanto, que a arma da crítica não pode substituir a crítica das armas; o poder material tem de ser derrubado  pelo poder material, no entanto, a teoria também se converte em força material uma vez que se apodera das massas. A teoria é capaz de  apoderar-se  das massas assim que se evidencia ad hominem, tão logo se torna radical. Ser radical significa agarrar a questão pela raiz. Mas a raiz é, para o ser humano, o próprio ser humano.”[7]

À guisa de conclusão

Produzir uma forma de ir na essência das coisas, em sua radicalidade, é o grande desafio para a produção intelectual de nossos dias de efervescência social e política. Levando em conta o fim de uma estabilidade política marcada pelo ano de 2013 e suas mobilizações, em um momento em que toda a intelectualidade não apostava no recente ascenso social provocado pela revolta estudantil e de trabalhadores de diversos ramos da produção (direta ou indireta, abarcando tanto a classe operária como professores e o funcionalismo público).

A necessidade de discutir o presente tema para perspectivas futuras para o ano de 2014 vai além da discussão formal. É uma discussão para ser resgatada, em suas determinações precisas.

Referências bibliográficas:

ANTUNES, Ricardo. Adeus ao Trabalho?: ensaio sobre as metamorfoses e a Centralidade do Mundo do Trabalho. 10 ed. São Paulo. Cortez ; Campinas-SP. Editora da UNICAMP, 2005.

ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaios sobre a afirmação e negação do trabalho. São Paulo. Boitempo, 1999

ANTUNES, Ricardo.  O que é o sindicalismo? 1 ed. Coleção Primeiros Passos, Ed. Brasiliense, 1981.

BIANCHI, Álvaro. Lenin e a filosofia: notas para uma leitura metodológica. <www.e-science.unicamp.br/marxismo/…/documento_579_Lenin.pdf>

LENIN, V.I. Obras Escolhidas, Tomo I. Ed. Avante, Lisboa, 1977.

MARX, Karl. Contribuição à crítica da Filosofia do Direito de Hegel: introdução. São Paulo. Expressão Popular, 2010.

WEBER, Max. O Sentido da “Neutralidade Axiológica” nas ciências sociais e econômicas. In: Metodologia das Ciências Sociais, parte II. Ed. Cortez, 1997.


[1] Ver Weber, Metodologia das Ciências Sociais, p.361-398.

[2]Obras Escolhidas, Tomo I, pp.104-116

[3] Tradeunionismo: do termo trade-unions. Foram associações, consideradas o embrião das organizações de defesa dos trabalhadores (sindicatos) que surgiram no início do século XIX, a partir da reação operária contra os baixos salários e a extensa jornada de trabalho a que eram submetidos.

[4] Lenin e a Filosofia…,p.07.

[5]Obras, p.105.

[6]O que é sindicalismo, p.13

[7]Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, p.44.

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