Fábio José Cavalcanti de Queiroz
Há um ponto em comum até entre pessoas que pensam de modo muito diferente: as jornadas de junho mudaram a realidade. O Brasil já não é o mesmo. A “sensação de bem- estar” foi substituída por um sentimento de indignação. Àquela altura, as massas incidiram decisivamente sobre os acontecimentos. Sobre essa história e as suas peculiaridades, muito já se escreveu e mais tinta ainda será empregada (na realidade, tintas de cores variadas).
Compreensivelmente, a maior parte dos trabalhos – de forma merecedoramente justa – creditou à juventude o protagonismo das jornadas. O que deixa a reflexão mais confortável é saber que, com efeito, em sua ampla maioria, foram jovens que estudam e trabalham os sujeitos de uma sublevação popular inteiramente histórica, transcorrida pouco depois da virada do século XXI, anunciado pelos ideólogos do capital como um período de paz e prosperidade (talvez até desejassem dizer: de consumismo e conformismo).
Não é essa leitura dos acontecimentos de junho em si que nos parece passível de um escrutínio crítico. É o que ela pode nos fazer esquecer que é susceptível de uma apreciação histórica absolutamente necessária. Não pode ser que o imaginário social resuma o seu cardápio a um único prato: havia uma “sensação de bem-estar”, tudo transcorria magnificamente bem e um punhado de jovens abriu o caminho para toda uma série de contestações. De feito, essa é uma verdade, mas, mais do que isso, é uma parte, ainda que importante, da verdade.
Não é difícil descobrir, desde que se estude com afinco, que um pouco antes, em 2011, explodiu uma sublevação popular fragmentada em diferentes canteiros de obra do país, denunciando as iniquidades do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Ali, tapumes foram derrubados e aprisionadoras instalações de empreiteiras foram incendiadas. Ali também surgiram os primeiros “vândalos” do novo século. Nessa toada, como nos esquecer dos 22 mil operários da Usina Hidrelétrica de Jirau? Como não nos lembrar do embate que travaram contra o regime de escravidão imposto pelos patrões e protegido pelo governo? Como nos esquecer dos 34 mil operários de Suape (PE) e da sua greve reprimida a bala? Como nos olvidar dos 16 mil operários das obras da hidrelétrica Santo Antônio, em Rondônia, enfrentando a ferocidade das empreiteiras Andrade Gutierrez e Odebrecht? Como nos esquecer das dramáticas greves do operariado da construção pesada do complexo industrial e portuário do Pecém (CE)?
A ideia central da argumentação é a de não desaprender que foi o proletariado mais depauperado do país quem deu o primeiro sinal de que havia algo de podre em um reino que se apresentava ao mundo em trajes de gala. Some-se a isso que foi exatamente essa depauperação que o encaminhou a um processo gigantesco de mobilização que não pode agora ser omitido ou desdenhado.
Para não nos perdemos, será preciso admitir que se as jornadas de junho, promovidas por uma juventude insurreta, começou a mudar esse país, os primeiros indícios de uma insatisfação social resoluta surgiram no cerne dos estratos mais empobrecidos da classe operária. Nesse sentido, o proletariado se comportou como se comporta a cabeceira de um rio, ainda que este só tenha demonstrado toda a força da sua turbulência em um período imediatamente posterior.
Com a escassa disposição da mídia e da academia para se voltar ao cotidiano das ações proletárias, corre-se o risco dessa história ser largada e perdida, descurada e desaprendida. A questão é: como tudo isso se arranja? Como não obliterar essa página da história sem também não desmerecer a força e a importância das mobilizações que cortaram o Brasil à época da Copa das Confederações?
O segredo está na capacidade de se recuperar o relevo das ações operárias de 2011 sem conduzi-las a um espírito de competição ou de tentar empanar o brilho das manifestações multitudinárias que varreram o país na metade do ano em curso. Basta somente que reconheçamos que em 2011 testemunhamos o rio explodindo em sua cabeceira, enquanto em 2013 era praticamente todo o seu leito que transbordava arrastando as margens com a fúria que só a luta histórica contra a opressão pode tornar inteligível. Em outros termos, se as greves operárias funcionaram como um toque de campainha, o seu sinal, à primeira vista, não foi ouvido; finalmente, dois anos mais adiante, foi afinal captado, redimensionado e desenvolvido por multidões que tomaram as ruas das maiores cidades do Brasil. O mal-estar dos canteiros (nascido das suas condições estruturais) se espalhou pelas ruas de São Paulo, Rio de Janeiro, Fortaleza etc. Em ambos os casos, as condições estruturais eram dadas pelas formas de organização e valorização do capital. Objetivamente, os embates travados confrontavam, portanto, um inimigo comum.
Estritamente falando, talvez esses movimentos não tenham um paralelo, mas a lição da história porventura seja a de que apenas quando o movimento do rio se tornar um só, somente aí estarão dadas as condições para que a opressão (econômica, social e política) seja definitivamente varrida. Para que essa fatoração encontre a necessária unidade, contudo, é preciso que cada um de nós – que aprendemos corretamente a festejar e felicitar a vaga popular de junho último – não venha a se deslembrar e nem a se descuidar daquilo que, em 2011, protagonizou a classe operária na jaula de ferro dos canteiros. É a condição inicial para que a fatoração busque e alcance o seu justo termo.
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