Valerio Arcary
“Se quiseres conhecer o vilão, põe-lhe uma vara na mão.”
(Sabedoria popular portuguesa.)
“Desconfia de quem tem cara de mau, mas desconfia mais daquele que tem cara de bonzinho.”
(Sabedoria popular argentina.)
O pós-modernismo penetrou no debate sobre a história com um arsenal, aparentemente, poderoso e até atraente. O final do século XX foi uma época em que a angústia da busca de um sentido para a existência humana parecia ter naufragado em um oceano de cepticismos “lúcidos”. A promessa de progresso contínuo que estava inscrita nas ideologias desenvolvimentistas do pós-guerra, fossem inspiradas no keynesianismo ou no estalinismo, naufragaram durante os anos oitenta do século XX. Sobre estas ruínas teórico-políticas o neoliberalismo avançou de forma impiedosa. Uma outra face do debate ideológico foi o sucesso do pósmodernismo. Na história da luta de ideias, o pós-modernismo foi somente um mal-estar fin de siécle?
No início do século XX, a passagem do século foi encarada com perspectivas muito diferentes. As classes dominantes, embriagadas de otimismo positivista com o triunfo da razão técnica, viam a sua civilização como uma promessa de progresso e abundância. E o movimento dos trabalhadores, fortalecido pelos sucessos eleitorais dos anos 90 do século XIX na Europa Ocidental, encarava com crescente confiança os destinos da luta socialista. A contextualização foi feita por Hobsbawm:
“(…) regimes que não apenas sobreviviam como também prosperavam. E, na verdade. se nos concentrássemos só nos países de capitalismo ‘desenvolvido’, tal idéia seria razoavelmente plausível. Economicamente, as sombras dos anos da Grande Depressão se dissipavam, dando lugar ao sol radioso da expansão e da prosperidade da década de 1900. Sistemas políticos que não sabiam muito bem como lidar com as agitações sociais da década de 1880 – com a súbita emergência dos partidos de massas das classes trabalhadoras voltados para a revolução ou com as mobilizações de massa de cidadãos contra o Estado em outras bases – aparentemente descobriram maneiras flexíveis de conter e integrar alguns e isolar outrcs. Os quinze anos entre 1899 e 1914 foram a belle époque não só por terem sido prósperos – e a vida era incrivelmente atraente para os que tinham dinheiro e dourada para os ricos – mas também porque os dirigentes da maioria dos países ocidentais, embora preocupados talvez com o futuro, não estavam com medo do presente. Suas sociedades e regimes pareciam, de maneira geral, administráveis.”(grifo nosso) [1]
O certo é que a crítica das grandes sínteses, condenadas no tribunal do conhecimento pós-modernista como meta-narrativas, se apóia na noção de que em História (pelo menos, já que os critérios de indeterminação e incompreensibilidade se extendem às outras ciências sociais), não seria possível a formulação de leis, mesmos nas suas formas específicas, ou seja, tendenciais. Tampouco seria possível a identificação de sentido: o fluxo descontínuo e sempre imprevisível dos acontecimentos, regulados somente pela encadeação do fortuito e aleatório, excluiria qualquer direcionalidade.
A história seria sempre uma narrativa única de processos singulares, que contêm em si mesmos, na sua unicidade e excepcionalidade, a sua essência indivisível. Logo, se conclui, que da ambição iluminista-cientificista-marxista, só poderia ter resultado uma monstruosidade, uma tirania totalitária como foi o estalinismo, que se autoproclamou agente da necessidade histórica que o futuro iria absolver.
Amalgamado ao estalinismo, encontramos o desconsolo com a possibilidade de que o proletariado pudesse vir a ser capaz de mobilizar uma força social poderosa o bastante para superar os impasses do capitalismo. Ou o desalento de que os trabalhadores pudessem atrair para o seu campo aliados sociais capazes de oferecer uma saída para a civilização superior ao capitalismo. Os pressupostos teóricos tinham, portanto, uma instrumental consequência política: a desmoralização ideológica, mais fortes entre os ex-marxistas. O socialismo teria, irremediavelmente, fracassado.
Se o marxismo exagera ou não o lugar da praxis social, ou se acentua a tal ponto o lugar da luta de classes, como força motriz do processo histórico, que se faz prisioneiro de uma visão voluntarista, é uma questão polêmica muito atual.
As margens dos espaços da vontade consciente ainda são estreitas? Certamente. A auto-emancipação humana, ainda não é, senão, uma fugidia miragem de esperança, em um mundo ameaçado por explosões de irracionalismo cego, que podem ameaçar a própria espécie de autodestruição? Sem dúvida. O livre arbítrio, democraticamente autoconstituído, ou seja a ação consciente dos sujeitos sociais, opera, ainda, em um terreno muito limitado, por todo tipo de coerções? Com certeza. Mas também é certo que a história humana não pode ser explicada pela sucessão de acasos aleatórios, o caos como única regularidade: os que se rebelam contra o lugar da necessidade na história, parecem não se dar conta que o que colocam no lugar do marxismo é o império do acidental.
A passagem que se segue é de Stephen Jay Gould, paleontólogo e divulgador científico, e contém uma interessante observação sobre as resistências enormes que todas as grandes revoluções científicas enfrentam.
“Não precisamos de nenhuma grande sagacidade filosófica ou cultural para reconhecer por que a revolução darwiniana é tão difícil de aceitar e por que ainda está longe de ser concluida na acepção freudiana do termo. Creio que nenhuma outra revolução ideológica na história da ciência teve um impacto tão forte e direto sobre como concebemos o sentido e a finalidade da nossa existência. (Algumas revoluções científicas, embora igualmente portentosas e inovadoras quanto à reconstrução física, simplesmente não têm o mesmo impacto sobre a alma humana. Por exemplo, a geotectônica modificou completamente nossa maneira de encarar a história e a dinâmica da Terra, mas o fato de a Europa e as Américas terem formado outrora um só continente ou de os continentes situarem-se sobre finas placas que flutuam sobre o magma terrestre pouco afetou a forma de as pessoas encararem o sentido de suas vidas.)Gosto de resumir o significado da destruição de pedestais da revolução darwiniana, tal como eu o interpreto, na seguinte frase (que poderia ser entoada várias vezes ao dia, como um mantra Hare Krishna, para ajudar a penetrar na alma): os seres humanos não são o resultado final de um progresso(…), e sim um pormenor cósmico fortuito, um pequenino ramo da espantosa arborescência da vida; se a semente fosse replantada, é quase certo que não voltaria a produzir o mesmo ramo e, possivelmente, nenhum outro galho com uma propriedade que pudéssemos chamar de consciência” (grifo nosso) [2]
É natural que a ênfase esteja colocada nas reservas profundas que uma parcela bastante significativa da humanidade mantém em relação à teoria da evolução. Mas ele talvez se engane quando conclui que se trata da revolução científica que teve o mais radical impacto sobre a finalidade de nossa existência.
Tanto a revolução freudiana quanto a marxista tocam em tecidos mais sensíveis e nervos mais expostos. É certo que na escala colossal das durações da seleção natural, os acidentes bizarros da evolução, as dizimações em massa, os abismos genéticos em que espécies mais duradouras que a nossa sucumbiram, enfim a completa ausência de moralidade na natureza alimenta uma vertigem desesperadora para a consciência humana. Porque coloca sob uma nova perspectiva a possibilidade da extinção.
Mas a maioria dos seres humanos vai dormir todos os dias sem perder o sono com a nossa solidão cósmica. Já o medo dos atavismos do subconsciente, a angústia com as pulsões mais elementares da condição humana, o pavor da morte, fazem estremecer os alicerces mesmos de uma sociedade que tem enormes dificuldades em aceitar a indivisibilidade de uma inteligência que é racional sendo emocional, e é emocional sendo racional.
Não fosse isso o bastante, os medos que são despertados pelas lutas sociais estão de tal forma enraizados sob camadas de preconceitos de classe, gênero, raça e nação, que a ideia mesmo da indivisibilidade da liberdade e igualdade parece utópica. Esse desespero existencial alimentou a popularidade intelectual do pós-modernismo. Mas, se o desespero pode até favorecer boas obras artísticas, não é útil para fazer boa ciência.
[1] HOBSBAWM, Eric. A era dos impérios, 1875-1914. Rio de Janeiro, Paz e Terra,1988. p.384.
[2] GOULD, Stephen Jay. Dinossauro no Palheiro. São Paulo, Companhia das Letras, 1997, p. 395.
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