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TEORIA

O conceito de intelectual

Alvaro Bianchi

O conceito de intelectual aparece tardiamente na história das idéias. Suas primeiras manifestações encontram-se a primeira metade do século XIX na Rússia e na Polônia onde o vocábulo intelligenstia/intelligencja apareceu em uma literatura histórico-política que começou então a se difundir. Embora a maioria dos estudiosos atribua a primazia no uso da noção à pena Pyotr Boborykin, é possível encontrar a expressão na obra do escritor polonês Karol Libelt de 1844, utilizada na literatura russa por V. G. Belinsky, em 1846 e ainda presente em uma enciclopédia polonesa editada em 1863 (cf. Gella, 1971, p. 4).

Tanto aquilo que era nomeado por esse substantivo como a própria trajetória desse grupo social parece ser diferente na Rússia e na Polônia. Na Rússia, em sua acepção original, o termo era utilizado para designar pessoas que eram educadas, mas nem todos as pessoas educadas fariam parte da intelligentsia. A expressão era reservada para aqueles que não ocupavam nenhuma posição oficialmente reconhecida e designava, desse modo, um grupo social que, afastado das instituições políticas, opunha-se ao sistema e advogava a reforma social e política. O desenvolvimento desse grupo social marcadamente oposicionista marcará profundamente a história desse país, dando origem tanto ao populismo russo como às diversas variantes do marxismo que tiveram lugar nesse país.

Outra parece ser a trajetória da intelligencjia polonesa, uma vez que sua constituição pode ser associada a um sistema escolar e à Universidade da Cracóvia, bem como aos corpos de servidores públicos, advogados, oficiais militares, etc. que encontraram seus lugares com o processo de modernização do Estado, a reforma do sistema escolar e as reformas políticas do final do século XVIII. O iluminismo polonês e o renascimento cultural que teve lugar nesse momento tinham como sujeitos setores da nobreza, líderes políticos e setores educados da sociedade que constituíam as bases daquilo que viria, posteriormente a ser um vigoroso movimento de independência nacional. Se a intelligentsia russa nasceu em uma posição externa às instituições políticas a intelligencjia polonesa formou-se, primeiramente, no interior dessas instituições.

Embora as relações com o poder político desses grupos intelectuais fossem diversas, o que determinava suas distintas posições sociais, papéis, valores e projetos, é comum a essas intelligentsias a afirmação de uma Weltanschauung que nascia da articulação de uma preocupação com os problemas sociais e políticos de seus países com a reflexão filosófica e que encontrava sua expressão não apenas no ensaio político, histórico e filosófico, como também na própria literatura.

Evidentemente na história das idéias o adjetivo intelectual precede o substantivo. Ou seja, há milênios existem funções intelectuais na sociedade, assim como a divisão entre o trabalho manual e o trabalho intelectual. E há milênios essas funções intelectuais são valorizadas em detrimento das atividades manuais, consideradas muitas vezes indignas, impróprias aos homens de bem e, até mesmo, incompatíveis com o exercício da cidadania. Mas o que caracteriza a emergência do substantivo intelectual é a autoconsciência de uma função social que ganha destaque com a dupla revolução econômica e social que tem lugar na Europa ocidental no final do século XVIII e início do século XIX conformando o capitalismo contemporâneo.

A distinção entre o trabalho intelectual e o trabalho manual ocupava um importante lugar no pensamento econômico do final do século XVIII e início do XIX. Deve-se a Adam Smith a formulação da questão em termos clássicos, chamando a atenção, em primeiro lugar, sobre a divisão do trabalho na indústria, com a sempre lembrada descrição do processo de produção dos alfinetes e a seguir destacando a “diferenciação das ocupações e empregos”, ou seja, a distinção entre os as diferentes formas que o trabalho assumiria na sociedade em decorrência do aumento de produtividade ensejado por essa divisão (Smith, 1981, v. I, p. 5). É no interior do desenvolvimento dessa divisão do trabalho que o trabalho intelectual torna-se uma especialização:

“No progresso da sociedade, filosofia ou especulação torna-se, assim como qualquer outro ofício, a ocupação principal ou exclusiva de uma classe particular de cidadãos. Assim como qualquer outro ofício, também está subdividida em um grande número de diferentes áreas, cada uma dos quais permite a ocupação de um tipo ou classe particular de filósofos; e essa subdivisão do trabalho filosófico, do mesmo modo como em qualquer outra ocupação, melhora e aperfeiçoa a destreza e economiza tempo.” (Smith, 1981, , v. I, 21-22).

Trata-se de uma especialização que se conforma no próprio processo social de produção. Ela não é decorrente das distinções naturais de cada um dos indivíduos mas das capacidades e habilidades desenvolvidas por eles. Smith a esse respeito destaca que

“as diferenças de talentos naturais em diferentes homens é, na realidade, muito menor do que seria de se esperar;  e o diferente gênio que parece distinguir os homens de diferentes profissões quando chegam à maturidade em muito casos não é tanto a causa como o efeito da divisão do trabalho. A diferença entre os personagens mais dissimiles, entre um filósofo e um simples carregador de rua, por exemplo, parece não provir tanto da natureza quando dos hábitos, costumes e educação.” (Smith, 1981, v. I, p. 29.)

É trabalhando sobre essas indicações de Adam Smith que Marx afirmará já em A ideologia alemã, que a divisão do trabalho só assume sua forma acabada a partir do momento em que a divisão entre o trabalho manual e o intelectual se consolida, libertando o trabalho intelectual do do mundo real. Mas o momento no qual a consciência pôde decretar filosoficamente sua autoemancipação não é, senão, o momento no qual são apertadas as correntes que a atrelam à produção e reprodução da vida social. Pois foi a divisão do trabalho que teve lugar nesse processo de produção e reprodução que criou as condições para a afirmação da autonomia do pensamento e da libertação imaginária de seu sujeito, o filósofo , o cientista, em uma palavra, o intelectual. Assim, a

“divisão do trabalho só se torna efetivamente divisão do trabalho a partir do momento em que se opera uma divisão entre o trabalho material e o trabalho intelectual. A partir desse momento  a consciência pode, de fato, imaginar, que é algo mais do que a consciência prática existente, que ela representa realmente algo, sem representar algo real; a partir desse momento, a consciência está em condições de se emancipar do mundo e de passar á formação da ‘pura’ teoria, teologia, filosofia, moral, etc.” (MECW, v. 5, p. 44)p.

As bases materiais dessa independência e, portanto, da própria formação dos intelectuais como uma categoria social podem ser encontradas no desenvolvimento da sociedade burguesa e do moderno Estado-nação que implicou na constituição de um público ampliado para esses intelectuais. O processo é descrito de modo minucioso por Habermas. A reestruturação social e política que tem lugar com o desenvolvimento do capitalismo mercantil e a conseqüente expansão da divisão do trabalho, permitiu o surgimento da notícia e das idéias como mercadorias que encontravam seus suportes no jornal, no panfleto ou no livro.

Já na metade do século XVII aparecem os primeiros jornais diários, que gradativamente tomam o lugar da correspondência privada na qual eram relatados para leitores selecionados os resultados das guerras, das colheitas e do comércio. Desse modo, teve lugar um novo comércio no qual a “troca de informações desenvolve-se não só em relação às necessidades do intercâmbio de mercadorias: as próprias notícias se tornam mercadorias.” (Habermas, 1984, p. 35.) Mas este era ainda um processo incipiente que deveria esperar mais um século para adquirir um desenvolvimento impressionante e formas mais estáveis. O desenvolvimento da técnica de impressão e a conformação de um diversificado mercado editorial tornou possível essa mercantilização das notícias e dos demais gêneros de produção literária.

Desde a Renascença é possível perceber uma grande demanda por lingüistas e escritores de sólida formação clássica que pudessem auxiliar nobres e comerciantes com sua correspondência e com a redação dos discursos (desdobramentos da arte de escrever cartas e da renovação da retórica), bem como aconselhá-los a respeito dos negócios privados e públicos ou mesmo educar seus filhos. Esse “mercado de trabalho” tipicamente renascentista desenvolveu-se em boa parte da Europa a partir do século XVI assumindo formas particulares na França e na Inglaterra. Muitos dos grandes filósofos da época foram servidores de famílias aristocráticas, como, por exemplo, John Locke, um devotado funcionário da casa de Shaftesbury, ou de Thomas Hobbes, que em meados do século XVII, definia-se como um “domestico” da casa dos Devonshire. Os maiores filósofos ingleses situavam-se, desse modo, acanhadamente, no âmbito dos negócios privados das casas às quais haviam amarrado seus destinos.

Esse “mercado” humanista ainda se localizava, predominantemente, no âmbito privado. Trata-se de um momento de transição, no qual as sedes da economia e, até mesmo, da política, ainda podiam ser encontradas preponderantemente no oikos, na casa, e não no mercado ou no parlamento. É apenas com o desenvolvimento desse capitalismo mercantil primeiro e, posteriormente, com o surgimento da indústria moderna que são criadas as condições para a separação radical da esfera doméstica da economia e da política. Essas transformações tiveram um impacto profundo seja na divisão do trabalho no âmbito da oficina, como na divisão entre as ocupações criando com isso novas necessidades sociais

É com base nessas transformações que pôde se constituir um “mercado” iluminista que se distingue claramente do precedente humanista. À produção das notícias que passam a ocupar as páginas impressas adquiridas pelo público se segue a produção de idéias que encontram nas páginas dos livros e folhetos seu suporte material. A Enciclopédia, projeto concebido por Diderot e D’Alembert como monumento do pensamento iluminista e síntese dos conhecimentos adquiridos pelos homens era, também, um rentável empreendimento comercial. Em sua versão in-folio, a mais popular, com um investimento inicial “de cerca de 70 mil libras, o lucro pode ter chegado a 2,5 milhões de libras. A renda líquida aproximou-se de 4 milhões de libras e os custos líquidos situaram-se na faixa de 1,5 milhão a 2,2 milhões de libras, das quais cerca de 80 mil foram para Diderot.” (Darnton, 1996, p. 25.)

Tratava-se, entretanto, inicialmente, de um investimento de alto risco. Denis Diderot foi preso em 1749, dois anos depois do início da publicação da Enciclopédia, devido a suas idéias. Para preservar seus investimentos, Le Breton e os demais sócios na edição da Enciclopédia imploraram às autoridades que o libertassem, o que ocorreu quatro meses após seu encarceramento. Anos mais tarde, seis mil volumes da Enciclopédia foram confiscados e “encarcerados” na Bastilha até serem, finalmente libertados devido à insistência do editor Panckoucke (cf. Darnton, 1996, p. 31). Darnton  argumentou que o mesmo motivo que impelia o governo a confiscar a Enciclopédia – o desafio nela contido aos valores tradicionais e às autoridades constituídas – era o que garantia seu sucesso. Esse paradoxo levava, por um lado os editores a refrearem a verve de Diderot e, por outro, tornava este dependente dos burgueses que o financiavam.

Embora o tipo social que caracteriza o intelectual já estivesse presente na França do final do século XVIII o surgimento do substantivo intellectuel data do final do século XIX. O aparecimento e difusão da noção de intelectuais na Europa ocidental está claramente associada àquela literatura russa á qual se fez menção logo no início. Mas foi a partir do affaire Dreyfus que a noção de intelectuais se populariza. No dia seguinte à publicação pelo jornal L’Aurore da conhecida carta de Emile Zola ao presidente da República J’Accuse, em 13 de janeiro de 1898, o mesmo jornal começou a publicar a lista de personalidades favoráveis à revisão do processo, que ficou conhecida como Manifeste des intellectuels. Segundo Joseph Reinach (1903, t. 3, p. 244), o próprio Zola foi o segundo a subscrever a petição e dentre os primeiros signatários encontravam-se cientistas, médicos, artistas, poetas, filósofos e, “sobretudo, os membros do ensino superior, os sábios” (idem, p. 245). Ainda segundo Reinach, “como os primeiros assinantes eram homens de letras, homens das ciências, foram designados pela palavra ‘intelectuais’” (idem, p. 246-247) . A expressão foi incorporada pelos próprios atores que passaram a se referir a si próprios por meio dela, o que, segundo Reinach não deixava de ocultar uma certa afirmação de superioridade, um certo orgulho de porta-vozes da Razão (idem).

A circulação ampliada de notícias e idéias em um espaço que se localizava fora da vida doméstica criou as condições para a emergência dos intelectuais como uma categoria social. Nesse espaço a figura do intelectual afirmava-se como um ator que reivindica sua condição independente e autônoma dos interesses que organizariam as atividades econômicas e políticas. A presunção de porta-vozes da Razão evidente no espírito dos signatários do Manifeste des intellectuels expressa essa reivindicação de autonomia e a posição olímpica na qual os intelectuais se colocam. Mas não deixa de chamar a atenção que o Manifeste tenha sido publicado num jornal de circulação diária. Pois para construir sua autoimagem os intelectuais precisavam, não apenas libertar-se do trabalho manual, precisavam, também, dos meios que permitissem tornar públicas suas idéias. Esses meios foram fornecidos pelo desenvolvimento da imprensa e do mercado editorial.

Referências bibliográficas

DARNTON, Robert. O Iluminismo como negócio: História da publicação da Enciclopédia, 1775-1800). São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

GELLA, Aleksander. The Life and Death of the Old Polish Intelligentsia. Slavic Review, v. 30, n. 1, p. 1-27, Mar. 1971.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Collected works. New York: International, 1975. (Citado como MECW.)

REINACH, Joseph. Hisitoire de l’Affaire Dreyfus. Paris: Charpentier et Fasquelle, t. 3, 1903, p . 246-247.

SMITH, Adam. An Inquiry Into the Nature and Causes of the Wealth of Nations: ed. R. H. Campbell and A. S. Skinner. Indianapolis: Liberty Fund, 1981. (vol. II of the Glasgow Edition of the Works and Correspondence of Adam Smith.)