Pular para o conteúdo
TEORIA

Existe uma teoría da revolução em Trotsky?

Fábio José Cavalcanti de Queiroz

“Se um símbolo é uma imagem concentrada, então uma revolução é a maior criadora de símbolos, pois esta apresenta todos os fenômenos e relações numa forma concentrada”

Leon Trotsky

Ainda não havia muito que abrira o século XX, e Leon Trotsky já se constituía em uma figura emblemática do movimento socialista russo. Notemos ainda: não demoraria muito e ele teria essa posição estendida em uma escala incomparavelmente maior. Com o decorrer do tempo, plasmado pela revolução de outubro e mesmo depois da morte do seu principal inspirador, o trotskysmo resultaria em um movimento de envergadura internacional. É escusado dizê-lo: as concepções de Lev Davidovich Bronstein (o seu verdadeiro nome) se tornaram linhas de força de ampliação e enriquecimento da teoria revolucionária (marxista), do seu programa e da sua estratégia.

É necessário esclarecer que, ainda assim, tais assertivas tão peremptórias não podem ter o condão de, a priori, definir a existência irrefutável de uma teoria da revolução em Trotsky, ainda que as evidências iniciais apontem vivamente nessa direção. Há no mínimo muita dúvida acerca de uma teoria da revolução. Suponha então de uma teoria da revolução em Leon Trotsky.

Vale a pena ainda aduzir outra questão: a revolução nunca foi para Trotsky uma ideia geral, uma abstração ou algo do gênero. Para ele, essa refinada ferramenta histórica expressaria um problema de fundo que não era somente teórico, mas era sobremaneira político, prático e estratégico. Doutro lado, e já nos colocando em 2013, a sua reflexividade sobre o tema nada tem em comum com o raciocínio vulgar, seja aquele que enxerga revolução em todo lugar, seja aquele que não vê revolução em parte alguma. Para ele, “o caráter geral de nossa época não significa que acontecerá a revolução, isto é, a tomada do poder, a todo o momento” (2010: 150).1

Posto tal diagnóstico, e olhando detidamente a realidade à nossa volta, trata-se de entender esta última como uma situação que, sem dúvida, não é completamente inédita. Não é a primeira vez que a revolução como categoria histórica é apontada como um empreendimento anacrônico. Também não é a primeira vez que os revolucionários se sentem lançados – teórica e politicamente – a responder aos seus oponentes da hora.

Acontece que a enxurrada de teses e impropérios contra qualquer teoria revolucionária, não raras vezes dirigida por reacionários completos, nos impele a uma retomada do problema em sua acepção teórica, que, no caso de um trotskysta, implica levar em conta as questões políticas, práticas e estratégicas aí envolvidas. Disso decorre a busca de uma teoria da revolução em Leon Trotsky.

A essa altura, não é ocioso recordar da sua extensa obra que pode nos propiciar pistas preciosas visando responder a questão inicialmente proposta. É importante não perder de vista que grande parte da sua produção – intelectual e política – tem como leitmotiv o tema da revolução. Além do mais, é sintomático que o termo apareça regularmente no título de grande parte das suas obras: A revolução de 1905; História da revolução russa; A revolução russa; Revolução permanente; Literatura e revolução; A revolução desfigurada; A revolução traída etc. Às vezes, a expressão contundente e reiterada surge acompanhada de sua antítese, conforme se observa em Revolução e contrarrevolução na Alemanha. Para medirmos toda essa presença do termo, basta que nos lembremos de que, em certas oportunidades, embora ele não apareça, é dele que se está falando, como é o caso de Lições de outubro- onde o autor nos oferece um quadro geral da revolução de outubro de 1917, na Rússia.

Mesmo em sua autobiografia – Minha vida – os processos revolucionários ocupam grande parte das suas auto-reflexões. É precisamente nesse livro de memórias que ele nos oferece uma das definições mais brilhantes de tais processos: “Las revoluciones son momentos de arrebatadora inspiración de la história” (TROTSKY, 1979: 259). Tal definição é antecipada pela ideia-chave de que as revoluções só se tornam possíveis quando “las masas, por um empuje de sus fuerzas elementales, rompen las compuertas de la rutina social” (idem).

Quer dizer: as revoluções são instantes excepcionais na história humana e correspondem ao átimo de tempo em que as massas rompem os diques da rotina e se lançam como verdadeiras proprietárias do seu destino. Essa compreensão constituirá a chave-mestra do que poderíamos – por que não? – nomear de uma teoria da revolução em Trotsky.

No instante em que as ruas e praças começam a se tornar concorridos centros de debate, não parece apropriado nos furtar a discutir essa concepção dos processos revolucionários manifesta em Trotsky: efetivamente, um homem de ideias e de ação. Para ele, a revolução deveria ser entendida como uma ferramenta pelo qual as massas poderiam começar a empreender uma superação radical da ordem burguesa. Nesse sentido, o prolongamento do capitalismo como modo de produção influente e dominante não pode ter a prerrogativa de esfumar esse método da história. Se os que falam de tal método parecem afastados de um padrão momentaneamente estabelecido, em termos curtos e grossos, não deveríamos – mais do que antes – lutar para que se rompa com a regra e se transforme a exceção em regra?

Manifestamente, esse quadro exige um embate ideológico em que as ideias de Trotsky encerram um conteúdo político muito valioso, ainda que seja inútil buscar respostas definitivas e irrecusáveis na letra do texto. Costuma-se dizer entre os marxistas, retomando o velho Engels, que reconhecemos três formas de luta: a política, a econômica e a teórica. Aqui, estamos nos propondo a retomar essa terceira; em geral, esquecida e sacrificada.

Não estamos nos dispondo a desenvolver um estudo geral sobre a teoria, mas sobre a teoria da revolução; não uma teoria geral acerca do assunto, mas uma teorização determinada e que se abriga na rica e orgânica elaboração do velho revolucionário ucraniano, que definiu sumariamente a revolução “como a forma mais alta da luta de classes” (TROTSKY, 1990:58), apesar de interpretá-la, em outros momentos, de maneira relativamente diferente. Na maioria dos casos, no entanto, era esse o seu ponto de partida, quando sequer ignorava que os processos revolucionários são ensejados, em regra, por explosões “sem preparação e sem ligação”. Tais explosões, no entanto, não seria ainda a revolução em toda a sua extensão; de feito, não encerraria outro significado senão o de sua primeira fase.

Devemos nos lembrar, contudo, que a vasta produção historiográfica e política de Trotsky, paralela à trajetória do militante revolucionário, coloca o seu leitor frente a uma trama complexa que exige um trabalho feito com muito cuidado para que não se transforme a sua elaboração em uma compreensão vulgar.

Assim, para Trotsky (1989), a revolução não deve ser entendida como um “empreendimento isolado que se pode desencadear por capricho”; Inversamente, ela deve ser encarada como “um processo objetivamente condicionado no desenvolvimento histórico” (idem, p. 7). Em outros termos: a revolução é um processo, em primeiro lugar, objetivo, social e não subjetivo e individual. Sequer deve ser tomada como um processo técnico. Sobre isso, ele escreveu a seguinte síntese: “E por que é que as revoluções vitoriosas são tão raras se para o seu sucesso basta um par de receitas técnicas?” (TROTSKY, 1989:10). Em resumo: as revoluções encerram aspectos técnicos e subjetivos, mas estes estão condicionados objetivamente pela realidade.

Para os decepcionados que, à primeira vista, enxergassem um hipotético objetivismo soprando das páginas dos livros do velho revolucionário, certamente um esforço para seguir a reflexividade do autor poderia vir a redundar em uma grande surpresa, de acordo com o que se distinguiria da leitura da citação abaixo:

Mas a consciência humana não reflete passivamente as condições objetivas. Ela reage ativamente sobre estas. Em certos momentos, esta reação adquire um caráter de massa, tenso, apaixonado. As barreiras do direito e do poder são derrubadas. Na realidade, a intervenção das massas nos acontecimentos constitui o elemento mais essencial da revolução (TROTSKY, 1989:7).2

Ou seja: em que pese o condicionamento objetivo, é a intervenção das massas o elemento mais essencial de um movimento revolucionário. Aqui, queremos aproveitar para retomar uma discussão que sugerimos no início do presente artigo. A atividade revolucionária, na perspectiva de Trotsky, pode se restringir a uma demonstração ou rebelião, “sem se elevar à altura de uma revolução”, se a sublevação das massas não conduzir ao “derrubamento da dominação de uma classe e ao estabelecimento de outra”.

Ora, em 1905, na Rússia, conforme antecipamos, a atividade revolucionária não alcançou esse patamar; logo, não seria uma revolução? O “velho” se corrige e diz: “essas são as condições de uma revolução consumada”. Estamos perante um problema muito importante. Nessa ótica, as revoluções poderiam ser divididas em consumadas e não consumadas, em que as primeiras se caracterizariam pelo “derrubamento da dominação de classe e ao estabelecimento de outra” e, no segundo caso, estariam ausentes essas duas condições. Com maior frequência, tem sido o segundo grupo de movimentos revolucionários o que tem primado.

A nosso ver, o fundamental é entender as revoluções como momentos em que “as massas mostram abertamente a sua decisão de lutar até o fim” (TROTSKY, s/d: 395). Lutar até o fim não é uma garantia absoluta de que o velho será varrido e o novo será implantado. A história nunca deu esse tipo de garantia.

Convém desde já observar que “no caso de uma vitória decisiva da revolução, o poder passa para as mãos da classe que desempenha o papel dirigente na luta” (TROTSKY, 2011:79). É essencial não perder de vista um elemento condicional nessa afirmativa. Não basta uma vitória. Carece-se de uma vitória decisiva para que a resultante seja a contida na frase. Ao longo da história, a ausência da condição definida nessa simples palavra produziu resultados diametralmente opostos.

Analisando a revolução de outubro, Leon Trotsky conclui que “o proletariado não pode conquistar o poder através de uma revolução espontânea” (2007: 24). Aqui, trata-se de examinar não os movimentos revolucionários como um todo. A questão central é a análise da luta revolucionária do século XX e do seu horizonte proletário. Para o autor, a experiência demonstrou que se as revoluções revelam um caráter inorgânico, instintivo, sem um plano e uma direção conscientes, a tendência é que o poder permaneça nas mãos das antigas classes, embora encapotado de novas formas. A sua conclusão é categórica: “O partido é o instrumento essencial da revolução proletária” (idem, p. 26). Isto é: sem uma ferramenta política consciente e determinada, a tendência é que não se alcance o patamar de uma revolução consumada.3

Em tais momentos, o papel dos partidos e dos líderes não pode ser menosprezado:

Sem uma organização dirigente, a energia das massas se dissiparia como um vapor não encerrado numa caldeira com bombas de pistão. Entretanto, o que move as máquinas não é nem o pistão nem a caldeira, mas o vapor (TROTSKY, t1, p1, 2007:10/11).

Há quem faça objeções ao modo que Leon Trotsky tratou o tema, ora acusando-o de reducionista, ora imputando-lhe o defeito de ignorar a complexidade do Estado na sociedade ocidental. Na razão inversa das querelas dos seus detratores, ele sempre entendeu que “a revolução proletária no ocidente terá de lidar com um Estado burguês completamente formado” (2007:107). A noção de um “Estado burguês completamente formado” tem a virtude de conceber a imagem do processo histórico no ocidente como distinta em comparação, por exemplo, com aquela revelada pela experiência russa.

Num plano mais elevado da realidade imediata, a formulação teórica mais exata é a que reconhece que não existe uma única porta pela qual a revolução pode entrar. A via para revolução tem variantes. Fora disso, qualquer teoria se torna um esquema abstrato. Para que fique nítido quanto ao método aplicado pelo autor de História da revolução russa, é útil ressaltar uma passagem de Lições de outubro: “O melhor teste dos pontos de vista sobre a revolução é a aplicação deles na própria revolução” (TROTSKY: 2007:30).

Esses são os pontos mais importantes no que diz respeito à concepção de revolução que Leon Trotsky apontou em diversos dos seus textos teóricos. Cremos que essa brevíssima apresentação dos seus postulados já nos permite advogar a existência, em sua obra, de uma teoria da revolução; teoria que ele desenvolveu ao longo de quatro décadas de militância sob o esteio do marxismo.

Postos de lado os aspectos complementares da sua sistematização, dir-se-ia que, no pensamento de Trotsky, um traço essencial da erupção revolucionária pode ser observado nas “bruscas mudanças de opinião e sentimento das massas”. Para ele, esse é o elemento que, em última análise, define a eclosão de uma “etapa revolucionária”. Trata-se, então, de reconhecer que a revolução não é o resultado da ação de “demagogos”; ela corresponde a um “movimento de saltos nas ideias e paixões”. Em outras palavras: a revolução se determina e se explica pela “orientação ativa das massas por um método de aproximações sucessivas” (TROTSKY, t.1, 2007:10). O seu desenlace não está escrito em lugar algum. O que, em larga medida, o define não é outra coisa senão a correlação de forças. Conclusivamente, eis os traços essenciais do que não tem como ser definido adequadamente salvo como uma teoria da revolução.

Referências bibliográficas

TROTSKY, Leon. Aonde vai a França, São Paulo: Editora Desafio, 1994.

_____ A revolução de 1905, São Paulo: Global Editora, s/d.

_____ A revolução desfigurada, São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1979.

_____ A revolução permanente, São Paulo: Expressão Popular, 2007.

_____ A revolução russa: a natureza de classe da URSS, São Paulo: Informação Editora, 1989.

_____ A revolução traída, São Paulo: Editora Sundermann, 2005.

_____ Balanço e perspectivas, in: A teoria da revolução permanente, São Paulo: Sundermann, 2011.

_____ Em defesa do marxismo, São Paulo: Editora Sundermann, 2011.

_____ História da revolução russa, tomo 1, parte um, São Paulo: Sundermann, 2007.

_____ História da revolução russa, tomo 2, partes dois e três, São Paulo: Editora Sundermann, 2007.

_____ Lições de outubro e outros textos inéditos, coleção 10, São Paulo: Editora Sundermann, 2007.

_____ Literatura e revolução, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2007.

_____ Mi vida, Bogotá: Editorial Pluma Ltda., 1979.

_____ Revolução e contrarrevolução na Alemanha, São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1979.

_____ Stálin – o grande organizador de derrotas – a III internacional depois de Lênin, São Paulo: Editora Sundermann, 2010.

_____ Terrorismo e comunismo – o anti Kaustky, Rio de Janeiro: Editora Saga, 1979.

1 Sobre essa questão, não há uma formulação única e indiscutível em Trotsky. Por exemplo, os acontecimentos de 1905, na Rússia, são por ele definidos como revolução, ainda que não tenha se dado a tomada do poder.

2 Esta obra reproduz uma conferência feita por Trotsky em Copenhague, nos anos 1930. Antes disso, ele escrevera em História da revolução russa: “A característica mais indubitável de uma revolução é a interferência direta das massas nos eventos históricos”. Mais adiante, ratificará esse raciocínio: “A história de uma revolução é para nós, antes de tudo, a história da entrada violenta das massas no domínio de decisão de seu próprio destino”. (tomo um, parte um, 2007:9). Ou seja: na conferência ele reforça um ponto de vista que já vinha sustentando em suas obras, notadamente as que se colocavam em uma perspectiva de apreciação histórica da revolução russa.

3 As experiências revolucionárias que se deram depois da 2ª Guerra Mundial foram dirigidas, em sua maior parte, não por partidos revolucionários, ao estilo do bolchevismo russo, mas por organizações populares e guerrilheiras, o que não impediu que se consumassem as revoluções, eliminado as velhas formas de poder e edificando outras em seu lugar. Os problemas foram de outra natureza: por exemplo, diferentemente da revolução russa que se burocratizou em seu curso, as revoluções vitoriosas do período pós-2ª guerra engendraram Estados burocráticos desde os seus alvores. É evidente que há outras questões que mereceriam um exame mais detido, mas não tencionamos fazê-lo neste texto.