Sob o signo do Corvo: a Comissão Nacional da Verdade e o bordão “nunca mais”

Renato Lemos

(Palestra feita na Fundação Getúlio Vargas, em 26 de junho de 2013, durante debate sobre o primeiro ano da Comissão Nacional da Verdade, com a participação do professor James Green, da Brown University)

Esta comunicação tem como objetivo aproveitar o primeiro aniversário da Comissão Nacional da Verdade para discutir aspectos subjacentes aos objetivos apresentados na lei que a criou.

A Comissão Nacional da Verdade foi criada pela Lei 12528/2011 e instituída em 16 de maio de 2012. O seu objetivo geral é “apurar graves violações de direitos humanos” ocorridas entre 18 de setembro de 1946 – data da promulgação da Constituição democrática que simboliza o fim do regime ditatorial conhecido como Estado Novo – e 5 de outubro de 1988 – data da promulgação da Constituição democrática que simboliza o fim do regime ditatorial pós-64.

A lei especifica em artigo outros objetivos:

Art. 3o  São objetivos da Comissão Nacional da Verdade:

…………………………………………………………

VI – recomendar a adoção de medidas e políticas públicas para prevenir violação de direitos humanos, assegurar sua não repetição e promover a efetiva reconciliação nacional.

Do trabalho da CNV, certamente, resultará um importante acervo de subsídios para o aprofundamento da compreensão do sentido histórico do regime ditatorial e o equacionamento de questões atuais a ele relacionadas. Algumas das suas iniciativas poderão produzir resultados especialmente proveitosos, como a investigação sobre as condições da morte do presidente João Goulart, que leva à chamada Operação Condor.

Entretanto, alguns pontos ligados à sua gênese institucional suscitam discussões. Merecem destaque|:

1 O período de abrangência do projeto de lei: ao estender as investigações a um tempo tão longo, descaracteriza a natureza política e histórica dos eventos registrados a partir de 1964. O período engloba distintos regimes políticos, nos quais as violências visadas tiveram sentidos igualmente diferentes.

2. A negação (parágrafo 4°, do artigo 4°) de poderes jurisdicional ou persecutório, que impede à Comissão que vá além da apuração de autoria de graves violações de direitos humanos.  Embora, uma vez tornados públicos, os resultados das investigações possam subsidiar processos judiciais, perde-se a oportunidade de fazê-lo a partir de uma estrutura política que poderia enfrentar as inevitáveis resistências que surgiriam.

3. A questão do sigilo (parágrafo 2°, do artigo 4º) sobre “os dados, documentos e informações sigilosos fornecidos à Comissão Nacional da Verdade”, que “não poderão ser divulgados ou disponibilizados a terceiros, cabendo a seus membros resguardar seu sigilo”. Aceita e fortalece um limite que costuma ser funcional como proteção dos acusados.

4. A possibilidade de estabelecer sigilo para determinadas atividades da CNV (artigo 5°), “nos casos em que, a seu critério, a manutenção do sigilo seja relevante para o alcance de seus objetivos ou para resguardar a intimidade, vida privada, honra ou imagem de pessoas”;

5. A forma e os critérios de seleção e designação dos membros da Comissão (artigo 2º), decorrentes da natureza da CNV como órgão de Estado, o que exclui a representação política mais ampla.

6. Por fim, a natureza da CNV como órgão de Estado, que estabelece uma limitação estrutural – política, financeira, administrativa – às suas atividades.

Pretendo, aqui, contudo, ressaltar e discutir outro ponto. A CNV tem como central o objetivo desejado do “nunca mais”. É uma marca da revolta contra a violência sofrida por muitos sob as ditaduras. Embora traduzindo perspectivas mais longevas, ela surgiu, entre nós, na Argentina. “Nunca Más” é o nome do relatório emitido pela Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (CONADEP), conhecido, também, como Relatório Sabato, devido ao seu presidente, o escritor Ernesto Sabato. No Brasil, está presente em vários nomes. O movimento “Tortura nunca mais”. O projeto “Brasil: nunca mais”. O lema do projeto “Memórias Reveladas”: “Para que não se esqueça. Para que nunca mais aconteça”. Expressões que se generalizaram por movimentos, projetos, sítios eletrônicos, blogs etc. Aqui e em outros países, a expressão se tornou um bordão.

A recorrência desse bordão me trouxe à mente o poema O corvo, do escritor norte-americano Edgar Allan Poe. Publicado em 1845, é, provavelmente, um dos poemas mais traduzidos da literatura mundial. Para o português, há várias versões, inclusive por escritores do naipe de Machado de Assis e Fernando Pessoa.

Um homem está vivendo o luto pela morte da mulher amada – Lenore – quando vê adentrar o seu quarto um corvo, que pousa sobre uma estátua de Atena.  De imediato, diverte-se com aquela presença e pergunta ao pássaro qual o seu nome, ouvindo como resposta: “Nunca mais”. Impressionado com a figura lúgubre e misteriosa, constrói a fantasia de que ela poderia lhe estar trazendo notícias de Lenore e pergunta ao corvo se algum dia voltará a encontrá-la. A resposta é, novamente: “Nunca mais”. Aos poucos, associa à figura do pássaro a determinação do caráter irreversível da amada perdida, isto é, do passado. A última estrofe diz, no original:

And the Raven, never flitting, still is sitting, still is sitting

On the pallid bust of Pallas just above my chamber door;

And his eyes have all the seeming of a demon’s that is dreaming.

And the lamplight o’er him streaming throws his shadow on the floor;

And my soul from out that shadow that lies floating on the floor

Shall be lifted … nevermore!

E, na tradução de Fernando Pessoa:

E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda,

No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.

Seu olhar tem a medonha dor de um demônio que sonha,

E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão mais e mais,

E a minh’alma dessa sombra, que no chão há mais e mais,

Libertar-se-á… nunca mais![1]

O que me chama a atenção é a força do bordão nevermore / nunca mais, que perpassa todo o poema e se apresenta explicitamente nas suas quatro últimas estrofes.[2] Um crítico português observa:

O conteúdo emotivo das palavras never more (além do mais com valor foneticamente lúgubre) não é, neste aspecto mais forte do que o Português nunca mais, que também foneticamente é um termo impressivo de sentimento fatídico e funesto (…) As sílabas arrastadas de nunca mais dão a percepção de um dobre de finados, tal como o never more de Poe.[3]

A expressão “nunca mais” apresenta, ainda, conteúdo trágico. Remete ao curso do tempo, percebido como destino. É curioso que Pöe tenha posto no bico de um pássaro as palavras relativas ao tempo. Louis Althusser chama a atenção para um traço que define a singularidade da espécie humana: “Só os homens introduzem uma dimensão temporal: os animais não têm noção alguma de passado ou futuro, fecham-se em suas sensações”. [4]

Poe pratica o que se costuma chamar de “licença poética” e pela fala do corvo lança ao leitor uma expressão que pode ser pensada, pelo menos, em dois sentidos. Num plano, amoroso, remete ao desespero em face do caráter irreversível da perda. Sabe-se que Lenore não ressurgirá. Extrapolando-se o poema, noutro plano, político, a expressão indica a pretensão de que o tempo se cristalize no passado, não retorne. Porque não se quer que a violência da ditadura ressurja.

A expressão “nunca mais” traz subjacente, portanto, a marca da subjetividade, característica do indivíduo. A sua adoção como lema de atitudes que se pretendem políticas é coerente com a abordagem hegemônica no trato das questões relacionadas aos “crimes” cometidos pelo Estado durante o regime ditatorial pós-64.

Trata-se da operação que reduz a violência ao seu sentido estrito de agressão físico-psicológica individual, como violação de um “direito humano”. Em torno dessa ideia, organiza-se internacionalmente um campo jurídico-político que exerce poderosa influência no equacionamento de conflitos de natureza variada. Entretanto, as iniciativas do campo dos “direitos humanos” são muito menos prolíficas quando têm como objeto entidades coletivas, em especial as classes subalternas, ou estruturas essenciais da sociedade. Não costumam ter muito futuro, entre nós, iniciativas – de governo, juristas, clérigos etc.– do tipo “Arrocho salarial nunca mais”. Ou: “Para que se conheça a expropriação dos camponeses. Para que não aconteça nunca mais”. Ou, ainda: “Imperialismo nunca mais”.

A CNV tem um grupo de trabalho sobre camponeses e indígenas. Após um ano de funcionamento, em seu site só se informa sobre a resolução que o criou e seus membros.[5] É verdade que, muito recentemente, a comissão divulgou ter encontrado importante documentação sobre a expropriação territorial de indígenas e, também que criou um grupo de trabalho sobre a repressão aos trabalhadores e ao movimento sindical, que inclui sindicalistas. Pretende-se fazer o “mapeamento das organizações sindicais da época que sofreram alguma forma de intervenção; as mudanças legais em desfavor dos trabalhadores e os prejuízos decorrentes”. É um avanço, mas é significativo que apenas à altura do primeiro ano de funcionamento da comissão tenha sido criado esse grupo, que só fez até agora duas reuniões oficiais.

Já as vítimas individuais da ditadura, em sua esmagadora maioria originárias dos setores médios da sociedade, têm a seu favor governos, a elite bem-pensante, a mídia em geral etc. Não porque fossem de classe média quando dos atos de violência, mas, porque, hoje, em geral, não mantêm ligações orgânicas com quaisquer elementos políticos que apontem o sentido social da ditadura e suas conexões com o regime político atual. Talvez porque se contentem com uma catarse individual, muitas vezes acompanhada de compensação financeira.

Os mais preocupados com o aspecto politico que atualiza a questão se associam à tese de que só a democracia pode garantir que tais violências não se repitam. “Nunca mais”? O que os autorizaria a pensar dessa maneira? A democracia que está abrindo a possibilidade da catarse e da compensação financeira, do exame detalhado das violências políticas, é a mesma que pratica, hoje, violências não menos políticas contra os pobres em geral, contra estudantes, indígenas, militantes rurais etc. E já que o mote é “não se esqueça”, não se deve esquecer que foi sob a democracia de 1946 que se criaram as condições para o golpe de 64 e o cortejo de violências que o seguiu. Isso aconteceu porque a democracia foi ingênua? Foi ignorante – não se conhecia? Quem pode garantir que o conhecimento dos crimes e dos criminosos impedirá a sua repetição?

A violência política, é sabido, vem de muito longe. Mas, há circunstâncias históricas que a matizam. Considere-se a obra de portugueses, ingleses, franceses, holandeses et caterva contra os povos nativos da América, Ásia e África. Ou a obra dos conquistadores estadunidenses contra os indígenas ou a dos seus descendentes imperialistas contra povos em todo o mundo. É matéria histórica por demais conhecida e combatida e, ainda assim, se repete através dos tempos, recusa o banimento no território do “nunca mais”.

“Nunca mais” é uma bandeira de natureza retórica. Seu efeito é forte, é preciso reconhecer. Enquanto instrumento de mobilização política, cumpre o papel de arregimentar emoções em torno de objetivos que pouca gente, em sã consciência, negaria: o fim da tortura, por exemplo. Mas, enquanto divisa pedagógica é limitada. “Nunca mais” é uma impossibilidade lógica. Persegue o impossível e desarma para a contingência do possível.

Apontar as vítimas da violência, seus patrocinadores e executores é um inegável avanço no tratamento histórico e político da ditadura. É conveniente lembrar que, até não muito mais do que um ano, contavam-se nos dedos de uma mão aqueles que, publicamente, consideravam prioritário conhecer e denunciar a participação de representantes do empresariado nos esquemas da violência ditatorial. Hoje, a CNV e comissões da verdade estaduais – órgãos estatais – se dispõem a convocar empresários para depor sobre isso.

Entretanto, ainda prevalece a proposta restritiva de condená-los moral e juridicamente por terem cometido crimes de violação de direitos humanos. Crimes cuja punição exemplar hoje poderá, pretende-se, garantir que se repitam nunca mais.

Ora, o acervo de conhecimentos na área criminal indica que até mesmo a pena máxima – a de morte – é incapaz de inibir definitivamente a prática criminosa. Falta desvendar a especificidade político-ideológica dessas práticas que se quer jurisdicizar. Lembre-se que a própria noção de “crime político” se origina de elaboração estatal defensiva, voltada para a manutenção da ordem capitalista. O “crime de lesa majestade”, típico das formações estatais pré-capitalistas, sofreu, com o amadurecimento do capitalismo, uma transmudação de sentido para a defesa do Estado. É o caso de perguntar: por que, quando os próprios diplomas legais que chamamos de “leis de segurança nacional” se apresentam, desde 1935, como conjuntos tecnicamente tipificadores de crimes conta o Estado, “dessociologizar” – valha o neologismo – a violência estatal, despojando-a de conexões com projetos de natureza classista?

É preciso ir além da constatação de que militares e empresários tecnocráticos e frios, eventualmente portadores de taras individuais, agiram como criminosos em face da lei humanitária. Eles agiram, antes de tudo, em função de uma visão de mundo histórica e ideologicamente determinada. Agiram para promover a defesa e a modernização da ordem capitalista, de acordo com valores e métodos disponíveis na época. Visão de mundo, ordem social, métodos de dominação que teimam em manter sua essência em face de ataques de tipo jurídico. Que, cotidianamente, infelicitam milhões de indivíduos componentes das classes sociais subalternas. Para estes, em sua linguagem, a verdade que a CNV busca desvelar “é mais embaixo”, e a violência foi “sempre mais”.

Dificilmente se garantirá o fim da violência política por meio de pesquisas, leis e publicidade. Não há habeas corpus preventivo que proteja os oprimidos em geral da violência inerente à luta de classes. As indicações mais objetivas, no Brasil como no resto do mundo, apontam para a necessidade de estarmos preparados para a violência estrutural, com seu lúgubre ritual cotidiano e espasmos terroristas a cada crise percebida como grave ameaça à propriedade capitalista e à ordem classista.

Estaríamos no mais perfeito dos mundos se, com os dados que as comissões de verdade deverão reunir, conseguíssemos inverter os sentidos de “nunca mais”. O amoroso pelo político. Aquilo que não retorna – o tempo da vida – se reverteria. Lenore poderia ressurgir, e o corvo precisaria mudar de bordão. Já aquilo que, ainda que sob outras formas, sempre pode retornar – o tempo da política – se cristalizaria como passado morto. E quase todos dormiriam tranquilizados pela certeza de que a ditadura estava sepultada e não ressurgiria, nunca mais.


[1] O corvo e suas traduções. Org. Ivo Barroso. 3. ed. São Paulo: Leya, 2012, p. 71 e 115.

[2] O próprio autor explicou ter usado deliberadamente o bordão como meio para impressionar o leitor. POE, Edgar. A filosofia da composição. In: O corvo e suas traduções. Op. cit, p. 53-54.

[3] TÂNGER, Manuel. Mallarmé e Fernando Pessoa perante o Corvo de Edgar Allan Poë (esboço de literatura comparada). Rio de Janeiro: Casa das Beiras do Rio de Janeiro, 1968, p. 27.

[4] Política e história. Trad. Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 6.

[5] Acesso em 11/06/2013; 23:08 h.