Waldo Mermelstein
A entrada em cena da juventude nas ruas do país determinou uma abrupta mudança na cena política. Os governos, em todos os níveis, estão acuados, atônitos. Cedem parcialmente, procuram demonstrar empatia com as massas nas ruas, tentam manobrá-las, mas mantêm a repressão, extremamente violenta em alguns casos, que supostamente é dirigida contra os “excessos”. No final de semana vimos como a polícia do governador Cabral impunha novamente um virtual “estado de sítio” nos bairros próximos ao Maracanã, para preservar o verdadeiro protetorado a serviço da FIFA. E como diz o ditado: “imagine na Copa”.
Os monopólios privados da mídia, o grande partido da burguesia, procuram direcionar a mobilização para uma agenda conservadora, realçando somente os aspectos moralizadores da vida política. Na cobertura da grande imprensa, o combate à corrupção e o rechaço ao sistema político (que são extremamente importantes, vale ressaltar) acabaram por secundarizar a agenda social (fundamento original das lutas). Nas manifestações unificadas do dia 20 de junho, tais monopólios incentivaram alguns grupelhos fascistas que, sob a alcunha midiática de “manifestantes sem partido”, tinham com meta política expulsar a esquerda e os movimentos sociais das ruas. A resposta contundente veio nas manifestações seguintes. No Rio de Janeiro, em Belo Horizonte e em outros lugares, plenárias com milhares de representantes dos movimentos sociais organizaram a luta.
Dilma foi à TV e apresentou suas cartas: propôs um pacto político essencialmente reacionário que previa a manutenção do arrocho fiscal; concessões mínimas ao movimento, com a contrapartida da desoneração de impostos aos empresários; aumento pífio nas verbas para a área social e reforma do sistema político que, pelos temas propostos e pela composição do Congresso (inclusive a base do governo), será regressiva. Os pontos inicialmente debatidos serão:
a) abolição ou não do voto proporcional nas eleições de parlamentares, favorecendo o voto distrital, que acaba com a representação proporcional das opiniões políticas;
b) o financiamento público ou privado das campanhas eleitorais;
c) a continuidade ou não do voto secreto no Congresso;
d) o fim da suplência para senador e
e) o fim de coligações partidárias em eleições proporcionais (para vereador ou deputado), o que favorece os grandes partidos.
Como se vê, as propostas mantêm intacto o essencial do sistema político e podem ainda piorar o que foi proposto, no debate dentro do Congresso. As pesquisas de opinião sinalizam uma queda brutal na popularidade de Dilma desde o início dos protestos: de 57% para 30% entre os que consideram seu governo como ótimo, mesmo processo que atinge as demais instâncias de poder pesquisadas.
Qual a natureza do plebiscito e da reforma política propostos?
Excepcionalmente, um plebiscito até pode ter um significado relativamente positivo, no sentido de reforçar a luta. Exemplo disso foi o plebiscito que serviu como um instrumento de organização popular, como aqueles sobre o pagamento da dívida no Brasil, ou pela defesa dos 10% de investimento público do PIB para a educação. Plebiscitos oficiais podem expressar parcialmente, de forma distorcida, lutas importantes, mas mesmo assim são armadilhas para as massas em luta. Um exemplo complexo disso foi o plebiscito realizado por iniciativa de ditadura de Pinochet em 1988, em que se decidiu contra a candidatura do ditador à presidência. A vitória do Não foi relativamente positiva, pois marcou uma dura derrota do governo. A contrapartida é que deixou o regime quase intacto, auxiliando a aliviar a tremenda pressão que a luta de massas vinha exercendo sobre o regime, com verdadeiros levantes populares, levando o conflito classista para o terreno muito menos favorável das eleições que se seguiram. Isso favoreceu aos que aceitavam uma interminável transição que manteve regras do jogo da constituição da ditadura e de seu modelo econômico, com consequências que perduram até hoje. Não se pode esquecer que o próprio ditador havia organizado e vencido dois plebiscitos fraudulentos entre 1978 e 1980 para legitimar seu poder.
Nestas Jornadas de junho de 2013, a juventude brasileira já está votando com os pés, para recuperarmos aqui uma expressão do velho Lênin. O plano do governo é se apoiar naqueles que não saíram às ruas. O plebiscito e mesmo a proposta de Constituinte Exclusiva para reformar o sistema político – já abandonada pelo governo – visam legitimar nas urnas o sistema de dominação sobre o povo e os trabalhadores e são a repetição de uma antiga manobra para tentar tirar as massas da rua e desviar sua atenção para supostas saídas no terreno institucional e eleitoral. Obviamente, o repúdio ao sistema político é esmagador no país. Mas as reformas que democratizem o regime passam, no mínimo pelos seguintes pontos:
(a) pela abolição do Senado;
(b) financiamento exclusivamente público das campanhas eleitorais (diminuindo o peso do poder econômico);
(c) Total liberdade de organização dos partidos políticos, sem cláusulas de barreira, com igualdade de acesso aos meios de comunicação, sobretudo nas campanhas eleitorais;
(d) possibilidade de revogação de mandatos;
(e) que os ocupantes de cargos públicos recebam salários equivalentes aos dos trabalhadores, como os professores.
Não é razoável acreditar que se aprove, dentro do sistema político atual, uma reforma que atenda a esses pontos. Entrar nesse jogo para supostamente “melhorar” os termos propostos é um erro. A possibilidade de piorar, não melhorar, o regime político, não é pequena. A proposta vem do mesmo governo que segue impávido a sua orientação privatista e repressiva, só que agora com uma “cara” um pouco mais amável, recebendo os manifestantes, as organizações sindicais e populares, mesmo que nem sequer se digne a dar alguma resposta às demandas apresentadas. Essa manobra tão surrada só pode ser aceita por quem quer deter a luta (caso de dirigentes experimentados) ou começou a lutar agora e conhece pouco das artimanhas da burguesia brasileira e seus representantes.
A proposta de plebiscito sobre a reforma política é um jogo de cartas marcadas. Quem decidirá as perguntas será o atual Congresso, sendo as pautas de debate inicialmente indicadas pelo governo. E a escolha e a formulação das perguntas definem em boa medida o seu resultado. Segundo as regras atuais, o plebiscito será formulado pelo Congresso atual e há alguma dúvida do monstrengo que irá resultar disso? As questões não terão nada a ver com as necessidades mais sentidas da população. Não será perguntado se desejamos seguir pagando cerca de 50% do orçamento em juros da dívida, se queremos mudar o sistema tributário do país para que os ricos paguem impostos etc. Neste final de semana os jornais mostram como as perguntas que são feitas definem em certa medida as respostas. Depois de aferir que 81% do país apoiam as manifestações, 65% teriam se mostrado contrários à tarifa zero se isso significasse diminuição de investimentos em outras áreas sociais. Claro que a resposta seria muito distinta se tivesse sido perguntado se concordariam com o passe livre se isso fosse feito, por exemplo, com a cobrança do (pequeníssimo) Imposto sobre Grandes Fortunas.
A manobra de tentar deter pela via eleitoral grandes mobilizações de massas, com o apoio dos que não lutaram nas ruas, apostando no cansaço e na intensa propaganda tem precedentes famosos: um dos mais claros foi Maio Francês de 1968. Após enfrentar uma greve geral de dimensões inéditas e que colocou o sistema em xeque, contando com a preciosa colaboração do PC francês, que chamou a suspender a greve geral, o presidente De Gaulle convocou eleições, que consagram seu partido com uma grande vitória. Perdera-se o momento, perdera-se o ímpeto. Nossa situação nem de longe se assemelha ao Maio francês, mas o exemplo mostra como a classe dominante pode utilizar o engano eleitoral, inclusive uma situação ainda mais explosiva. Felizmente, por enquanto, não há sinais de que essa falsa alternativa tenha algum eco no movimento para fazê-lo recuar, mas o caráter recente do processo e a ainda incipiente participação da classe trabalhadora organizada pode fazer com que ganhem credibilidade. Por isso, mais do que nunca, é preciso tentar fazer deste 11 de julho um marco histórico, em que a classe trabalhadora novamente se coloque em marcha, de forma unificada, após tantos anos de dispersão. Esse é o terreno em que o destino da primavera brasileira será decidido. É a partir dessa nova relação de forças que poderemos pensar em como transformar radicalmente as instituições políticas do país.
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