Euclides Agrela
A manifestação do dia 27 de junho em Fortaleza, quando do jogo Espanha e Itália no estádio Castelão, contou com a participação de cerca de 20 mil pessoas. Saindo do Campus do Itaperi da Universidade Estadual do Ceará (UECE), a passeata percorreu a Avenida Dedé Brasil até chegar cerca de 2 km do estádio, quando foi impedida de prosseguir por uma barreira policial formada pela tropa de choque da PM, do governador Cid Gomes (PSB) e pela Força Nacional de Segurança, da presidente Dilma Rousseff (PT).
Na concentração, às 10h, era visível a composição social do ato: jovens pobres e negros da periferia de Fortaleza, movimentos sociais como os do sem-teto e sem terra, trabalhadores da construção civil, rodoviários, costureiras, professores da rede pública estadual e municipal.
A participação do movimento sindical e popular foi um destaque desde a convocatória até a organização da passeata. Viam-se inúmeras faixas e bandeiras da Conlutas, da Anel, do MTST, do MCP, do MAB e do MST. Militantes do PSOL, do PSTU, do PCB, do POR e até do PCdoB se fizeram presentes sem que sofressem quaisquer hostilidades.
Uma das reivindicações que mais ecoou pela Avenida Dedé Brasil, além da redução imediata da passagem de ônibus para R$ 2,00, foi a defesa das comunidades do entorno do Castelão que vem sofrendo com os despejos para a garantia das obras da Copa.
A passeata transcorreu na mais absoluta tranquilidade até o momento que encontrou a barreira policial. Em vários momentos ouvia-se o coro de: “que coincidência, sem polícia não tem violência”. Mas, nas proximidades do Castelão, quando já passava do meio dia, a repressão policial tornou-se apenas uma questão de tempo.
Violência policial é a causa das depredações
Para quem, durante o mês de junho, participou das manifestações de massas em todo o país e enfrentou governos truculentos como o de Cid Gomes (PSB), no Ceará, aprendeu desde cedo que, mesmo não havendo nenhuma provocação por parte dos manifestantes, a ordem tem sido dispersar violentamente a multidão depois de pouco mais de uma hora do encontro da passeata com a barreira policial, seja “apenas” com gás lacrimogêneo ou, na maioria absoluta dos casos, com o uso deste acompanhado de balas de borracha.
A violência da tropa de choque do governador Cid Gomes (PSB) foi brutal. Bombas de gás lacrimogêneo foram atiradas indiscriminadamente às dezenas através de morteiros não somente na vanguarda da manifestação, mas na sua retaguarda. O Juiz aposentado Sílvio Mota, que apoiava a manifestação, foi surpreendido por bombas de gás quando se encontrava próximo ao bloqueio policial. Inúmeras bombas atingiram condomínios residenciais e casas próximas ao conflito, que foram utilizadas desesperadamente por alguns manifestantes com último refúgio, intoxicando inclusive crianças.
A reação dos manifestantes diante de tamanha violência não poderia ser diferente: pneus foram queimados na via, um carro da TV Jangadeiro e um ônibus foram depredados, outro carro da TV Diário foi incendiado. Algumas lojas próximas ao conflito foram saqueadas. O saldo: 97 presos e, pelo menos, sete feridos. Até a manhã de sábado, todos haviam sido soltos com a intervenção de advogados ligados aos movimentos sociais.
Os grandes meios de comunicação de TV, rádio, jornal e internet bradaram mais uma vez contra uma suposta minoria de vândalos como os responsáveis pelas depredações e a reação violenta da polícia. É inegável que há uma minoria de manifestantes mais exaltados dispostos ao quebra-quebra e a enfrentar a polícia. No entanto é ridículo supor, diante de mobilizações de massas com dezenas ou centenas de milhares de pessoas, que isto não aconteceria.
Quando milhares se põem espontaneamente em movimento nas ruas, com reivindicações difusas, sem uma direção reconhecida que possa lhe dar uma maior organização e disciplina, sempre haverá um setor, ainda que minoritário, com uma fúria incontrolável disposto a enfrentar a polícia custe o que custar e quebrar tudo que estiver pela frente. Mas, quem são os supostos vândalos?
Vandalismo por uma questão de classe
No momento em que o próprio batalhão de choque já se preparava para reprimir a manifestação, por volta das 13h, populares das comunidades da Serrinha se incorporaram à multidão em frente à barreira policial. Eram na sua maioria jovens pobres, negros ou pardos, muitos apenas de chinelas, de bermuda e sem camisa.
Esses jovens quando se entreolharam, se reconheceram e perceberam que representavam um contingente de cerca de cem pessoas, alguns deles seguramente com passagem pela polícia, se juntaram aos gritos: “uh, uh, é o bonde da Serrinha”. Enganam-se os bem intencionados membros do Ministério Público ao ventilarem que isto pode ter sido uma ação orquestrada pelos chefes do tráfico da região, quando estes necessitam de um ambiente de paz com a polícia para a tranquilidade de seus negócios. Tratou-se de uma ação espontânea, quase instintiva, surgida no calor dos acontecimentos.
Ao contrário do que pensaram inclusive alguns manifestantes que vaiaram sua “palavra de ordem”, “o bonde da Serrinha” não partiu para cima dos manifestantes para lhes agredir ou roubar, mas dirigiu-se para frente do bloqueio e começou a jogar paus e pedras na polícia. Era o pretexto que o batalhão de choque e a Força Nacional de Segurança esperavam para dar início à repressão.
Antes de recriminar esses jovens sem emprego, com baixíssima escolaridade, nascidos e criados em casebres em meio ao esgoto a céu aberto, que possuem o “dono da boca” como única referência prática de ascensão social, é preciso entender o porquê de sua aparente violência gratuita contra a polícia. A rigor, não se trata de violência gratuita, mas de uma explosão de fúria, uma reação brutalizada, a única que lhes é possível para chamar a atenção contra as (des) humanas e miseráveis condições de vida a que estão submetidos desde a infância.
Dia após dia, noite após noite, jovens entre 15 e 25 anos, como os do “bonde da Serrinha” e de centenas de outras comunidades pobres das periferias das grandes cidades brasileiras são as maiores vítimas do tráfico de drogas e da violência policial. Muitos tiveram irmãos ou amigos assassinados devido a dívidas com o trafico ou porque foram identificados pela polícia como criminosos simplesmente por serem negros, pobres, desempregados e morarem na favela. Como dizia um cartaz na manifestação: “na periferia as balas são de verdade”.
Para esses jovens do “bonde da Serrinha”, a manifestação do dia 27, transformou-se numa oportunidade ímpar para dar vazão ao seu ódio contra a sociedade capitalista, o Estado burguês e seu aparato repressor que, não satisfeitos em lhes jogar na mais absoluta miséria, invade e destrói seus casebres, despeja comunidades inteiras para atender os interesses da especulação imobiliária, realiza revistas humilhantes utilizando-se do expediente da tortura, quando não mata ou executa friamente.
A violência policial sofrida durante anos nos becos e “quebradas” da periferia de Fortaleza recebeu uma resposta furiosa destes jovens marginalizados quando viram que era possível, como parte de um movimento de massas, vingar humilhações, torturas e mortes nem que fosse apenas para arranhar os escudos do batalhão de choque com algumas pedradas.
Chico Science já nos ensinava: “Em cada morro uma história diferente / Que a polícia mata gente inocente / E quem era inocente hoje já virou bandido / Pra poder comer um pedaço de pão todo fodido / Banditismo por pura maldade / Banditismo por necessidade / Banditismo por uma questão de classe!”.
Uma coisa é uma coisa outra coisa é outra coisa
Este “vandalismo por uma questão de classe” é algo de natureza absolutamente distinta da violência dos grupos neonazistas que se infiltraram em diversas manifestações, particularmente no Rio e em São Paulo, para atacar os partidos de esquerda, sindicatos e movimentos sociais organizados. Eles não foram às manifestações apenas gritar palavras de ordem contra os partidos, coisa perfeitamente aceitável e compreensível vinda de estudantes e trabalhadores indignados com a corrupção dos partidos burgueses e decepcionados com os rumos dos governos do PT. Estes grupos neonazistas infiltraram-se nas passeatas com um único e mesmo objetivo: agredir fisicamente, tomar as bandeiras e intimidar os militantes dos partidos de esquerda, dos sindicatos e movimentos sociais. Contra ataques físicos não há qualquer discussão possível. Por isso, é preciso expulsar fisicamente estes grupos das manifestações.
Ao contrário dos neonazistas, os alvos de “grupos” de jovens como o “bonde da Serrinha” não foram os partidos de esquerda, os sindicatos ou movimentos sociais, mas a própria polícia, que os humilha e mata cotidianamente e lojas, que pudessem lhes render algum espólio para vender e ganhar um trocado. Em alguns lugares é verdade que, inclusive, podem ter se aproveitado para furtar carteiras ou celulares dos manifestantes, o que demonstra o quanto as passeatas de massas refletem no seu interior a mais ampla heterogeneidade e as piores contradições da sociedade capitalista.
Fica a pergunta: qual deveria ser a posição da esquerda revolucionária e socialista diante de “grupos” como o “bonde da Serrinha”? Rechaçá-los, expulsá-los das manifestações e entregá-los à polícia? Respondemos: absolutamente não. Em primeiro lugar, caberá àqueles que ainda acreditam e lutam pela revolução socialista nem rir nem chorar, mas compreender o significado de classe deste fenômeno como parte das manifestações de massas.
Em segundo lugar, é preciso tentar ganhar pelo menos uma parte desses jovens para a luta anticapitalista, para que tomem consciência de sua miséria, se politizem e se organizem. Obvio que isto não é uma tarefa fácil, mas quem disse que a luta pelo socialismo se trataria de um mar de rosas? Cada jovem retirado da área de influência do tráfico de drogas e da criminalidade, que se converta num revolucionário socialista, se tornará um dos mais abnegados soldados da classe trabalhadora. Disso não temos nenhuma dúvida.
Mais uma palavra sobre a polícia
Consideramos a polícia e as forças armadas como os cães de guarda do Estado burguês, da propriedade privada dos capitalistas e hoje, particularmente, dos megaempreendimentos da Copa do Mundo. É preciso denunciar cotidianamente estas instituições e, particularmente, exigir a dissolução imediata de corpos repressivos como a tropa de choque da polícia militar, criada para reprimir as manifestações dos trabalhadores, dos pobres e dos miseráveis.
Por outro lado, não há nenhuma contradição em apoiar reivindicações econômicas e democráticas dos policiais e exigir ao mesmo tempo a dissolução dos corpos repressivos das polícias. No momento em que haja insubordinação da tropa, seja por reivindicações econômicas ou democráticas, como vimos durante a recente greve da PM do Estado do Ceará, é decisivo que os movimentos sociais apoiem estas reivindicações e exijam dos policiais em greve que não atendam as ordens de reprimir as manifestações de massas.
Neste sentido, um fato nada desprezível pode ter passado despercebido para muitos dos manifestantes no dia 27 de junho em Fortaleza. À medida que não tiveram boa parte de suas reivindicações atendidas pelo governo do Estado desde a última greve, a Associação de Cabos e Soldados Militares do Ceará (ACSMCE), que reúne policiais e bombeiros, resolveu participar da passeata com uma pequena coluna.
Para nós não há dúvidas: não é menos importante que, da mesma forma que os jovens marginalizados das periferias das grandes cidades, soldados e suboficiais da polícia e das forças armadas sejam impactados pela luta de classes.
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