Mira Caetano
Ação truculenta da polícia contra manifestações pelo passe-livre coloca em perspectiva as confluências entre o passado e o presente no Brasil.
“Brasil: ame-o ou deixe-o”. Sob o impacto desse adágio efetivou-se um dos regimes mais autocráticos que o Brasil já viveu. O milagre econômico e a vitória da seleção na Copa do Mundo de 1970 formaram um amalgama de emoções ufanistas e amor incondicional ao país que, na verdade, escondia uma cruel realidade: miséria e desespero para os trabalhadores, tortura e assassinatos para os dissidentes. O Estado brasileiro à época, dirigido pela cúpula das forças armadas, levava a cabo o ideal de uma nação totalmente subserviente aos interesses do capital. Atualmente, poucos são os que não veem com olhar crítico aquele tempo de terror em que lutar por democracia, assim como por direitos e garantias sociais, era considerado terrorismo e caso de polícia. A Comissão da Verdade, instituída em maio de 2012, tem atestado, através de depoimentos de ex-militantes, as atrocidades cometidas contra jovens, tachados de terroristas à época, em salas de torturas e nas ruas pelo país afora. Todo o aparato utilizado para reprimir, prender e assassinar estava, assim, amparado na defesa do desenvolvimento e da glória (quase que sagrada) da nação. Apoiados na imprensa oficial da época, que anunciava jovens como terroristas oferecendo recompensas a delatores, os militares torturaram e assassinaram centenas de militantes, muitos desaparecidos até os dias atuais.
O leitor pode estar se perguntando o porquê de um texto que se propõe a debater as recentes manifestações de rua contra o aumento das passagens no transporte público urbano começa discorrendo sobre o extinto regime civil-militar. Afinal, quase cinquenta anos depois do golpe, o Brasil parece estar bem longe daquela realidade sombria. Será?
Os movimentos de massas populares que destruíram a ditadura tomaram o país de surpresa, e ficou bastante conhecido o fato de que alguns veículos de comunicação chegaram a, sordidamente, anunciar em rede nacional as manifestações paulistas pelas “Diretas Já!” como se fossem uma reles festa de comemoração pelo aniversário da cidade. Não procurarei me ater muito ao debate sobre o processo sociopolítico que levou à queda do último regime ditatorial que o país viveu no século passado. No entanto, é importante ressaltar que um dos principais sujeitos políticos da luta contra a ditadura militar em sua fase declinante foi o Partido dos Trabalhadores (PT), que teve como principal expoente o metalúrgico e líder sindical Luiz Inácio Lula da Silva. Não faltaram críticas à fundação do partido e aos seus membros. Muitos acusavam os manifestantes petistas de serem vândalos, radicais e terroristas. Os mais moderados achavam que não era o momento de enfrentar aberta e publicamente a ditadura. Mas, apesar das acusações e ressalvas, o PT se consolidou como um partido de lutas, enraizado nos sindicatos, nas manifestações de rua, na luta pela democracia. Assim, encontra-se nesse pequeno trecho do seu Manifesto de Fundação a expressão clara de qual era o caráter do novo partido:
Os trabalhadores já sabem que a liberdade nunca foi nem será dada de presente, mas será obra de seu próprio esforço coletivo. Por isso protestam quando, uma vez mais na história brasileira, veem os partidos sendo formados de cima para baixo, do Estado para a sociedade, dos exploradores para os explorados. Os trabalhadores querem se organizar como força política autônoma. O PT pretende ser uma real expressão política de todos os explorados pelo sistema capitalista.
Como parte fundamental das mudanças vividas pelo país, foi elaborada, pela Assembleia Constituinte, a Carta Magna, promulgada no ano de 1988. Para garantir a efetivação do “Estado Democrático de Direito” o documento se iniciava assegurando logo em seu artigo 50 o direito à manifestação e reunião. Ora, nada mais justo. Afinal, para um regime democrático, o contraditório e o dissidente são fundamentais, e poder manifestar esse contraditório abertamente é imprescindível para que o Estado seja, ainda que juridicamente, considerado democrático. Assegurar, então, como lei máxima de uma nação que os sujeitos discordantes possam sair às ruas e reunir-se para protestar era fundamental, inclusive para garantir que o regime anterior havia mesmo terminado. Assim, na forma da lei, o direito à manifestação aparece com destaque em nossa Constituição, num dos incisos do artigo 50:
XVI – todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente;
Durante treze anos, o PT lançou-se a campanhas presidenciáveis sem nunca chegar ao poder efetivamente. Também não me fixarei nos processos que levaram o PT a mudar sua composição política, social e econômica, mas é preciso demarcar uma grande virada nos programas eleitorais do partido, incluindo alianças políticas inusitadas, mudanças nas estruturas decisórias internas à sua organização e abandono de bandeiras históricas dos movimentos sociais (reforma agrária, não pagamento da dívida externa, defesa do direito do aborto, entre outros).
Enfim, vinte e três anos após a sua criação, o PT, depois de muitas transformações internas, chega ao poder central do país na figura de seu carismático líder. Uma grande esperança tomou conta do país naquele ano de 2003. Um operário, líder sindical e dirigente de um grande movimento de massas iria acabar de uma vez por todas com o sofrimento do povo e garantir a estabilidade do regime democrático no Brasil. Durante dois governos, com altos índices de aprovação, Lula midiaticamente catapultou o país a um patamar novo perante o mundo. O orgulho de ser brasileiro e o ufanismo em defesa da nação voltaram, e com grande força. Sua sucessora, Dilma Roussef, continuou, por meio de viagens internacionais e peças propagandísticas, esse caminho de afirmação do Brasil como uma “nação emergente”, agora vista como um gigante que desperta. Bolsa família, obras de aceleração econômica, mega-eventos, descoberta do pré-sal são alguns dos elementos que retroalimentam essa nova “paixão” pelo país.
Apesar de políticas governamentais focalizadas que possibilitaram a saída de um significativo contingente populacional da miséria absoluta, das políticas de criação de empregos que afastaram durante algum tempo o país da crise financeira internacional e das tímidas políticas de ações afirmativas, muitos aspectos do governo atual mantém os processos de exploração do trabalho e reificam a estrutura de dominação secular que impõe aos trabalhadores regimes de trabalho precarizados e consolida de uma vez por todas o primado do sistema financeiro e das mega-corporações no país. Os acordos de concessão de serviços públicos, privatização de portos e aeroportos, leilões de petróleo, as mudanças flexibilizadoras nos direitos trabalhistas, entre outros, são exemplos desse processo.
Além disso, a escalada de repressão a manifestantes, nos últimos anos, parece não incomodar o governo. Já há algum tempo, toda e qualquer manifestação de rua contrária à política do Estado tem sido tratada como caso de polícia. Sem terras, índios, jovens, professores, profissionais da saúde e previdência, funcionários públicos, sem tetos e até mesmo jornalistas têm sofrido constantes agressões em manifestações pacíficas, garantidas pela Constituição, como um direito fundamental. É cada dia mais comum, nos jornais, notícias de prisões de manifestantes, ativistas feridos em protestos e truculência desproporcional das polícias militares dos estados da Federação. Também a autora destas linhas sofreu na pele a cruenta repressão estatal ao ser atingida por uma bomba de gás lacrimogêneo numa manifestação pacífica em frente ao Clube Militar, no Rio de Janeiro, quando da comemoração do Golpe de 1964, num festim macabro organizado por setores remanescentes daquele regime nefasto. E o governo federal diante dessa escalada da repressão? Simplesmente nada faz. Nenhuma nota, nenhuma providência. O silêncio da Presidência da República já ultrapassou todos os limites da boa vontade popular.
O PT que chegou ao poder através de uma política ampla de alianças e muito diferente daquele do Manifesto de Fundação tem mostrado no governo uma moral dúplice: por um lado, o governo é pacífico e democrático com os mega-empresários, reacionários de plantão e base aliada corrupta, exigindo cada vez mais virulência na implantação de projetos, obras e ações institucionais para manter as taxas de lucro; por outro lado, é omisso, truculento e desproporcionalmente agressivo com índios, manifestantes e sem terras, cobrando uma passividade e paciência extrema dos movimentos sociais. Quando a chefe maior da nação permite a repressão aos manifestantes, ela apoia e participa indiretamente dela.
Desde sua eleição e do apoio à eleição de diversos governadores e prefeitos, o governo Dilma tem mantido relações estreitas com setores ligados ao agronegócio, mega-corporações, defensores do regime militar, cartéis de empresas de transporte, milionários oportunistas e setores fundamentalistas religiosos. Essa relação estreita resulta em proteção ao latifúndio, obras suspeitas de superfaturamento, usinas em terras indígenas, aumentos abusivos de tarifas de transporte, projetos de lei que vão contra direitos de minorias, entre muitos outros retrocessos no país. Na verdade, para que esses setores mantenham o apoio ao governo muitas das bandeiras históricas que fizeram parte da fundação do PT estão sendo esquecidas.
Desde o início do ano de 2013, a juventude em diversas capitais do país vem se manifestando contra aumentos abusivos das tarifas do transporte rodoviário urbano. Muitos alegam estarem esses aumentos tarifários bem acima da inflação e acusam os empresários de ônibus de construir cartéis, obtendo lucros exorbitantes à custa dos trabalhadores, da juventude e da má qualidade dos serviços. Tudo começou em Porto Alegre, quando centenas de jovens saíram às ruas pacificamente protestando contra esses aumentos e foram violentamente reprimidos. Depois deles seguiu-se Natal, Goiânia, Teresina, São Paulo e Rio de Janeiro. A cada manifestação, mais jovens são presos e em São Paulo, local em que as manifestações ganham maior adesão, quase duzentas pessoas já foram detidas em três dias de protestos. Em todas essas manifestações, o clima de festa e paz entre os participantes é quebrado com a ação truculenta das polícias militares, que repreendem com bombas de gás lacrimogêneo, balas de borracha e prisões arbitrárias de manifestantes. Um grupo preso nas manifestações paulistas do dia 11/06 está sendo indiciado por formação de quadrilha, o que alguns já chamam de “a volta do AI-5”. Embora, como já antecipei, os momentos históricos sejam díspares, é impossível não estabelecer um paralelo entre eles.
O processo vem se acirrando a cada nova manifestação. No dia 13 de junho o movimento passe livre (MPL) convocou um ato nacional contra o aumento das tarifas. Animados com a suspensão do reajuste em Goiânia e Porto Alegre, jovens de muitas regiões do país saíram em passeata nas suas cidades: São Paulo, Santarém, Rio de Janeiro, Santos, Natal, Maceió, São Carlos, Sorocaba, Curitiba. Em São Paulo, de acordo com os organizadores do ato, cerca de 20 mil pessoas participaram. Já na chegada cerca de 60 pessoas foram presas “para averiguação”, algumas delas por portarem o perigoso tempero vinagre (!). Alguns manifestantes denunciaram que as prisões estavam sendo executadas de forma aleatória e que muitos nem participantes do movimento eram. O ato se iniciou de forma tranquila e permaneceu pacífica até a atuação da PM, que agiu com enorme desproporção atirando em jornalistas, jovens e transeuntes. A Polícia de São Paulo, a mando do governador do PSDB Geraldo Alckmin, tem assumido a vanguarda nos abusos e na truculência. Ao mesmo tempo, seu adversário eleitoral, o prefeito petista Fernando Haddad, afirma peremptoriamente que não voltará atrás no aumento das passagens, mostrando didaticamente que governa para os mesmos setores sociais representados pelo fascistizante tucano. Por sua vez, o Ministro da Justiça, o petista José Eduardo Cardozo, brada que colocará a Polícia Federal – a mesma que, há poucos dias, assassinou um índio terena em uma reintegração de posse ordenada pela Justiça pró-agronegócio – à disposição para atuar nas manifestações. Enquanto isso, o governo federal se mantém, como de hábito, calado. Representantes do PT e do PSDB, na Câmara Municipal paulista, acusam manifestantes de baderneiros, vândalos e criminalizam aqueles que fazem da luta social legítima um exercício pleno de uma das garantias fundamentais da Constituição Federal, o direito à manifestação e reunião. Mais uma vez se coloca a reflexão sobre o Manifesto de Fundação do Partido dos Trabalhadores:
Não existe liberdade onde o direito de greve é fraudado na hora de sua regulamentação, onde os sindicatos urbanos e rurais e as associações profissionais permanecem atrelados ao Ministério do Trabalho, onde as correntes de opinião e a criação cultural são submetidas a um clima de suspeição e controle policial, onde os movimentos populares são alvo permanente da repressão policial e patronal, onde os burocratas e tecnocratas do Estado não são responsáveis perante a vontade popular.
Diante dos últimos acontecimentos, penso que se faz necessário um profundo debate sobre o caráter da democracia brasileira e os rumos que o atual governo federal vem tomando no sentido de calar-se perante a criminalização dos movimentos sociais, agressões a jornalistas, manifestantes, além das prisões arbitrárias e denúncias de tortura e abuso policial nessas manifestações. Esse silêncio nos faz refletir sobre os limites que existem entre o passado e o presente. As imagens dos jovens sendo presos e atacados nas ruas nos remetem indubitavelmente ao regime instaurado em 1964. Já as acusações desferidas contra os manifestantes, que os responsabilizam por terrorismo, vandalismo e até mesmo de “conspirarem” para atacar o Brasil, nos trazem à memória o velho adágio já mencionado: “Brasil: ame-o ou deixe-o”. É evidente que os processos históricos são diferentes e que qualquer relação direta entre eles perderia muito das determinantes diferenças entre ambos. No entanto, está claro que os últimos acontecimentos colocaram em suspeição os direitos democráticos, especialmente os dos movimentos sociais. Quando até a imprensa que realiza a cobertura dos atos é atingida por bombas e balas de borrachas e manifestantes são presos sem nenhum motivo, não há muitas dúvidas de que a democracia, a Carta Magna, o “Estado Democrático de Direito” e tudo o mais pelo que se lutou no passado está posto em suspenso.
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