Samba e consciência de classe no Rio antigo

Juliana Lessa

O Brasil é o país do samba! Dificilmente alguém contestaria essa frase. Se o fizesse, seria, talvez, para afirmar que, antes de ser o país do samba, esse é o país do futebol – mas, provavelmente, o faria sem negar seu lugar de destaque entre os principais elementos da cultura brasileira. Para aqueles que hoje moram na cidade do Rio de Janeiro, essa ideia pode parecer razoável, dadas a importância de seu carnaval e a recente redescoberta do ritmo por sua indústria cultural. Contudo, uma análise mais detida dessa concepção pode nos levar a observar que, apesar de ser um símbolo nacional, o samba não é o ritmo mais popular em todas as regiões de um país de dimensões continentais. Na Bahia, por exemplo, o axé certamente é um ritmo mais emblemático, assim como o sertanejo, no Mato Grosso, ou o calypso, no Pará. Por que considerar o samba um legítimo representante da cultura brasileira, se a sua relevância está mais relacionada ao Rio de Janeiro?[1] Para responder a esta pergunta, é preciso regressar ao contexto de seu surgimento, durante a Primeira República – quando o samba era feito e vivido pelos trabalhadores e tratado pelas classes dominantes como caso de polícia.

O objetivo deste artigo é mostrar um lado da história do samba que nem sempre é debatido pelos partidários da premissa de que ele seja um dos elementos da identidade brasileira desde seu surgimento. Pretende-se desmistificar a ideia de que o ritmo tenha surgido em meio a um contexto histórico em que a cultura se configuraria como uma via mais ou menos neutra de negociação entre classes. Nessa lógica, tentaremos analisá-lo como uma manifestação cultural da classe trabalhadora carioca que, durante o processo de consolidação de uma identidade nacional, foi incorporada e ressignificada pela classe dominante, de acordo com seus interesses.

O período de tempo compreendido entre o final do século XIX e o começo do século XX pode ser considerado um momento de grandes transformações para a sociedade brasileira, com o fim da escravidão, em 1888, e a proclamação da República, em 1889 – mudanças que acompanharam o processo de consolidação do Brasil no mercado mundial como fornecedor de matérias-primas e consumidor de capitais. À frente desse transcurso, o Rio de Janeiro, como capital da nova República, foi o centro difusor da ideologia modernizadora e civilizatória que a burguesia – inspirada no modelo de civilização das grandes capitais europeias – buscou implementar na cidade. Seu objetivo principal era submeter a classe trabalhadora às relações de trabalho assalariadas. Para tanto, lançou mão da intervenção direta no espaço urbano, com a abertura de grandes avenidas e a destruição das habitações populares localizadas no centro da cidade, que, de acordo com o projeto urbanístico dominante, deveria ser destinado às atividades comerciais e ao lazer da burguesia carioca. Paralelamente a isso, intensificou-se a perseguição ao modo de vida e às práticas culturais da classe trabalhadora, associadas à barbárie, ao atraso e à incivilidade.

Foi em meio a tais conflitos que o samba carioca surgiu. Produto da matriz cultural africana herdada pelos ex-escravos – muito dos quais vieram do Nordeste brasileiro para a capital, em busca de oportunidades de trabalho e melhores condições de vida – o samba se desenvolveu como uma manifestação cultural da classe trabalhadora. É preciso reconhecer que, por conta de sua origem, o samba possuía (e possui) uma predominância estética da cultura negra, que pode ser percebida especialmente no ritmo (com a síncope), ou ainda na temática de suas letras e nos movimentos corporais de sua dança (a umbigada). Apesar dessa predominância estética, entendo que o samba desse período deve ser visto como um elemento da cultura da classe trabalhadora e não de uma etnia, pois se é verdade que os negros representavam grande parcela da classe, também devemos atentar para o fato de que trabalhadores de outras matrizes culturais – sujeitos, em grande medida, às mesmas condições de vida dos negros, compartilhando uma situação de baixos salários, desemprego, exploração e perseguição da polícia, por exemplo – também foram criadores desse ritmo, em cujas letras podemos perceber elementos de uma consciência de classe.

O fato de estarem sujeitos às mesmas circunstâncias os tornava mais próximos, pois o convívio constante no ambiente de trabalho, na vizinhança, nas relações amorosas, nos sindicatos, nas Igrejas, nos terreiros de Candomblé, ou ainda, nas ocasiões festivas, quando o samba era a atração principal, contribuía para reforçar os laços de solidariedade criados durante as lutas pelo fim da escravidão – quando trabalhadores brancos atuaram ao lado de trabalhadores negros escravizados, por sua liberdade. Não ignoro, contudo, o fato de que os trabalhadores negros, em geral, estivessem sujeitos a condições ainda mais precárias, por conta do preconceito racial de que eram alvo – o que certamente serviu para alimentar as rivalidades no interior de uma classe trabalhadora tão heterogênea. Mas, apesar disso, seria errôneo acreditar que houvesse uma divisão intransponível, já que trabalhadores negros e brancos reconheceram interesses comuns e opostos aos interesses das classes dominantes.

Por ser uma manifestação cultural da classe trabalhadora, que expressava seu modo de vida e sua visão de mundo, além de ter a marca da estética negra, o samba carioca da Primeira República foi duramente perseguido pelos agentes das classes dominantes, como a grande imprensa e a polícia. João da Baiana, um dos sambistas mais célebres da época, conta como era acossado pelos policiais por tocar o samba em ocasiões festivas ou por simplesmente usar a indumentária característica dos sambistas da época:

“Pandeiro era proibido. O samba era proibido. Então, a polícia perseguia a gente. E eu tocava pandeiro na [Festa da] Penha. A polícia me tomava o pandeiro. Pois então não fui preso por pandeiro? Diversas vezes. Me tomavam o pandeiro e me prendiam. Eu tenho fotografia em casa, nas revistas, eu dentro do xadrez com o pandeiro. Nós não podíamos usar calça bombacha, também. O falecido Mira Lima proibiu em 1902 – ele devia ser delegado na 2ª delegacia – e não queria que a gente andasse de calça bombacha. Cortava nossas calças.”

Muitas letras de sambas também retrataram situações de perseguição policial. Um dos temas abordados com frequência era a questão habitacional – em evidência por causa das reformas urbanas e das ameaças de remoção e/ou demolição das habitações populares. Como exemplo, cito a letra da música Batuque na Cozinha, de João da Baiana, escrita em 1917:

Batuque na cozinha
Sinhá não quer
Por causa do batuque
Eu queimei meu pé

Não moro em casa de cômodo
Não é por ter medo não
Na cozinha muita gente sempre dá em alteração

Batuque na cozinha (…)

Então não bula na cumbuca
Não me espante o rato
Se o branco tem ciúme
Que dirá o mulato

Eu fui na cozinha
Pra ver uma cebola
E o branco com ciúme
De uma tal crioula

Deixei a cebola, peguei na batata
E o branco com ciúme de uma tal mulata
Peguei no balaio pra medir a farinha
E o branco com ciúme de uma tal branquinha

Então não bula na cumbuca (…)

Mas o batuque na cozinha
Sinhá não quer (…)

Eu fui na cozinha pra tomar um café
E o malandro tá de olho na minha mulher
Mas, comigo eu apelei pra desarmonia
E fomos direto pra delegacia
Seu comissário foi dizendo com altivez
É da casa de cômodos da tal Inês
Revistem os dois, botem no xadrez
Malandro comigo não tem vez

Mas o batuque na cozinha (…)

Mas seu comissário
Eu estou com a razão
Eu não moro na casa de arrumação
Eu fui apanhar meu violão
Que estava empenhado com Salomão
Eu pago a fiança com satisfação
Mas não me bota no xadrez
Com esse malandrão
Que faltou com respeito a um cidadão
Que é Paraíba do Norte, Maranhão

Essa letra é interessante por abordar alguns dos aspectos mais relevantes do cotidiano dos trabalhadores cariocas desse período. O texto retrata não só a violência policial contra os habitantes de casas de cômodos, mas também as contradições da tensa relação entre trabalhadores de diferentes etnias – que podiam se relacionar amorosamente, mas também entrar em disputas por motivos diversos. Além disso, a forma irônica como o personagem principal argumenta com o delegado – ao afirmar que não é morador da tal casa de cômodos, que estava ali de passagem para buscar um violão (um indício de que era sambista) e que o malandro é o outro – nos permite perceber a imagem caricatural que era feita do delegado (retratado como “otário”) e que possivelmente era aceita como válida (ou, no mínimo, verossímil) pelos trabalhadores que escutavam essa música.

É claro que o contexto de luta de classes e de perseguição ao samba, aos trabalhadores e aos trabalhadores sambistas não impedia que houvesse, em algum nível, trocas culturais com alguns membros das classes dominantes apreciadores do ritmo (como jornalistas, intelectuais ou alguns políticos). Em muitos momentos é possível notar algum tipo de interação cultural entre os trabalhadores e a classe dominante, principalmente após a inserção do samba no circuito das grandes gravadoras e das emissoras de rádio, posto que essa fosse uma forma de ascensão social para os sambistas – oriundos da classe trabalhadora. Mas isso não significa dizer que o samba tenha sido, desde o início, produto da relação de negociação entre os trabalhadores e as classes dominantes. Foi principalmente a partir da década de 1930 que o samba passou a ser incorporado ao projeto de construção de uma identidade brasileira e foi elevado à condição de símbolo nacional – o que foi viabilizado através de sua domesticação e cooptação pelas classes dominantes representadas no Estado de Getúlio Vargas.


[1] Não pretendo afirmar que o samba seja exclusivo do Rio de Janeiro. Tenho somente o intuito de analisar o caminho através do qual se tornou um elemento da identidade brasileira.