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TEORIA

Marxismo e moral: um antigo e importante debate

Valério Arcary

“O fim justifica os meios: A ordem dos jesuítas, fundada na primeira me­tade do século dezesseis para combater o protestantis­mo, nunca ensinou que qualquer meio, mesmo o mais delituoso, de acordo com a moral católica, seja admissível, contanto que leve ao “fim”, isto é, ao triunfo do catolicismo. Essa doutrina contraditória, psicologicamente inconcebível, foi malignamente atribuída aos jesuítas pelos seus adversários protestantes – e às vezes católicos – que, por sua vez, pouco se preocupavam com escrúpulos na escolha dos meios para atingir seus próprios “fins”. Os teólogos jesuítas – preocupados como os de outras escolas, com o problema do livre arbítrio – ensinavam na realidade que o meio, consi­derado em si mesmo, pode ser insignificante, mas que a sua justificação ou condenação moral depende do que se procura alcançar.” (Leon Trotsky) [1]

O jornal Le Monde de Paris informou a semana passada que, na Síria, estariam sendo usadas armas químicas pelas Forças Armadas que defendem o regime de Assad. A confirmação do uso de armas químicas pelas tropas leais à ditadura de Assad e do partido Baath deve produzir, com razão, horror. Os métodos da guerra total são a barbárie. Transformar a população civil e desarmada em alvo militar é uma covardia monstruosa.

Curiosamente, são os inimigos da causa socialista que insistem em afirmar que os marxistas defendem que os fins justificam os meios. Os marxistas foram atacados, frequentemente, como calculistas frios, moralmente interesseiros e, eticamente, cínicos. A luta política dos marxistas seria uma manipulação do desespero dos pobres. Em poucas palavras: ausência de escrúpulos, nomadismo moral e, pior, disposição para tudo. O programa socialista seria somente uma máscara ideológica de dissimulação. O único fim dos marxistas seria destruir seus inimigos, e impor a sua ditadura. A qualquer custo. A hipocrisia seria a tática de quem não tem limites na luta pelo poder.

Estas acusações são, evidentemente, absurdas. São teórica, política e, ideologicamente, falsas, portanto, desonestas. Mas elas exercem influência, e encontram eco. É assim, porque o movimento socialista se fragmentou ao longo dos últimos cem anos. Dividiu-se, irremediavelmente, entre reformistas e revolucionários quando da Primeira Guerra Mundial e, depois, entre estalinistas e internacionalistas. Monstruosos aparelhos burocráticos surgiram nos sindicatos e nos partidos eleitorais da socialdemocracia, e aberrações ainda mais criminosas desenvolveram-se na URSS, e em outros Estados em que triunfaram revoluções anticapitalistas.

Em dimensões diferentes, os dois processos só podem ser compreendidos como resultado das terríveis pressões que a permanência do capitalismo exerceu sobre as organizações dos trabalhadores, e sobre os Estados que surgiram de rupturas revolucionárias. Não obstante, apesar das tragédias que ocorreram em nome do socialismo, o marxismo revolucionário, que manteve o fio de continuidade histórico da causa socialista, merece mais do que nunca ser considerado como o maior inimigo ideológico do “vale tudo” moral.

Isto posto, a crítica é, também, em outro plano, injusta, porque a visão ética do marxismo não merece ser julgada somente como consequencialista. Consequencialistas, strictu sensu, seriam aquelas teorias que reconhecem como padrão de juízo ético unicamente os resultados, enfim, os efeitos das ações humanas. Utilitaristas como Jeremy Bentham ou Stuart Mill, com mais razão, poderiam ser classificados como consequencialistas. Trotsky reconheceu a superioridade dos consequencialistas sobre os defensores de uma deontologia normativa de imperativos categóricos kantiana, ou valores morais universais:

“Assim, um tiro de arma de fogo é, em si, um fato sem importância: disparado sobre um cão raivoso que tenta morder uma criança é um ato louvável; disparado para matar ou praticar violência é um crime. Os teólogos da Companhia de Jesus não queriam dizer nada mais do que estes lu­gares comuns.”[2]

No entanto, as relações entre estratégia e tática na luta pela conquista do poder de Estado pelos trabalhadores coloca de forma inescapável um debate sobre a dimensão moral do projeto socialista. Ela remete à noção de estratégia política e supõe uma teoria da revolução. Merece ser observado, entretanto, que o conceito de estratégia não esteve presente na revolução burguesa. O que se explica por uma pluralidade de razões (a natureza de longa duração da transição, os amálgamas das relações capitalistas de produção com relações pré-capitalistas pelo menos desde o século XI, muito antes da conquista do poder político, a possibilidade de fusões e pactos entre as diferentes classes proprietárias, o atraso secular das revoluções políticas, a imaturidade subjetiva dos sujeitos sociais, etc.), e entre elas, o próprio estágio embrionário do pensamento histórico e das artes militares. Os elementos de consciência na transição burguesa, vitais para o triunfo da revolução política anti-feudal eram embrionários.

Mas existem razões mais importantes, historicamente, para explicar as circunstâncias que levaram o marxismo a importar, incorporar e desenvolver o vocabulário da ciência militar no processo de construção de uma teoria da crise. Entre eles, se destaca o de estratégia. O conceito de estratégia é chave porque ele delimita a existência dos fins e os hierarquiza entre si, e nas relações com os meios. Esta delimitação envolve uma escolha: uma escolha que tem medidas de temporalidade.

Assim, o programa histórico marxista defende a luta por uma sociedade sem classes, pelo fim, ou progressiva dissolução do Estado, entendido como instituição de domínio de poder político separado da sociedade. Ou seja, a famosa passagem de Marx em que ele se refere à transição de uma administração de pessoas para uma administração das coisas, a transição da esfera da necessidade para a esfera da liberdade.

Entretanto, o programa de ação político se articula em torno da luta pela conquista do poder: tarefas distintas e tempos diferentes. Ocorre que, como é evidente, fins e meios são conceitos relativos, já que o que eram meios podem se transformar em fins e vice-versa. Uma importante controvérsia ética se desenvolveu, e permanece atualíssima, sobre a articulação das finalidades e os meios, e o balizamento do contexto histórico- social do que era progressivo e regressivo. A seguir, mais um trecho de Trotsky sobre o tema:

“Quanto à sua moral prática, os jesuí­tas não foram piores do que os padres e monges das outras ordens, aliás, foram mesmo superiores. De qual­quer maneira, deram prova de maior tenacidade, de maior audácia e maior perspicácia. Os jesuítas consti­tuíam uma organização militante, fechada, rigorosamente centralizada, agressiva, perigosa não só para seus inimigos, mas também para seus aliados. Pela sua psicologia e por seus métodos de ação, os jesuítas da época “heroica” distinguiram-se do padre comum, como os guerreiros da igreja se distinguem dos que comerciam à sua sombra. Não temos motivos para focalizar um ou outro. Mas seria totalmente indigno considerar o guerreiro fanático com os olhos do comer­ciante estúpido e preguiçoso (…) A comparação entre jesuítas e bolcheviques, ain­da assim, fica de todo unilateral e superficial; perten­ce antes à literatura do que à hist6ria. Considerando os caracteres e os interesses das classes que os apoia­vam, os jesuítas representavam a reação e os protes­tantes o progresso. Os limites desse “progresso” expri­miam-se, por sua vez, de forma imediata, na moral dos protestantes. A doutrina de Cristo “purificado” não impediu em nada ao burguês citadino que era Lutero de pregar o extermínio dos camponeses rebel­des, “esses cães raivosos”. O doutor Martinho conside­rava evidentemente que “os fins justificam os meios”, muito antes que essa máxima fosse atribuída aos je­suítas. Por sua vez, os jesuítas, rivalizando com os protestantes, adaptaram-se cada vez mais ao espíri­to da sociedade burguesa e dos três votos – pobreza, castidade e obediência – conservaram apenas o úl­timo, ainda assim de forma bastante atenuada(…) De guerrilheiros da Igreja passaram a ser burocratas e, como todos os burocratas, uns pilantras de primeira.”.[3] (grifo nosso)

Esta discussão ética que injustiçou no passado remoto os jesuítas e, no recente, os bolcheviques encontrou seus ecos no movimento socialista, como não poderia deixar de ser. Estabeleceram-se em relação ao tema, grosso modo, três posições fundamentais, embora com muitas sensibilidades e nuances intermediárias:

(a)    a posição de que os meios são tudo (e os fins, pessoais ou sociais, não oferecem nenhuma justificação) à maneira de Bernstein, que reivindicava Kant contra Hegel. Ela se apoia na premissa empirista de que o caminho se constrói caminhando, e os fins serão sempre redefinidos pelos meios. A tendência desta posição foi a absolutização de critérios morais imperativos e universais. No limite, defende-se a subordinação da política à moral. Em uma versão laicizada, sob a forma de valores ahistóricos da “natureza humana” dimensiona-se a política como uma gestão civilizada dos conflitos. Mas ela remete, em última análise, ao princípio teológico de que a moral independe da história, portanto, da sociedade e dos conflitos de classe no seu interior. Tanto sob as pressões da vida cotidiana, quanto na arena das lutas de classes, quando esta se exacerba, os valores morais universais passam a ser um princípio sagrado irrevogável, porém, inaplicável;

(b)    a posição que defende que os fins justificam os meios, mas se esquece que também os fins precisam ser justificados. Comete assim, em nome do realismo político, o erro simétrico dos moralistas. Mas divide com eles o critério de que meios e fins independem uns dos outros. São ambas vítimas, afinal, do cinismo, quando o que pretendiam era escapar da hipocrisia;

(c)     a posição que defende que os meios e os fins têm entre si uma relação indissolúvel e indivisível. Em suma, em uma sociedade de classes, o combate político é também um combate moral. Portanto, só seriam admissíveis meios que estejam ao serviço da supressão do poder de uma minoria sobre a maioria. Os meios que inflamam a indignação dos oprimidos, que exaltam a sua união e confiança em si mesmos e na justeza de suas lutas. Do que se conclui que nem todos os meios são permissíveis ou válidos, e que devem ser condenados como indignos todos os procedimentos que empurrem um setor dos trabalhadores contra outros, ou que estimulem o seguidismo cego dos chefes e, acima de tudo, o repugnante servilismo diante das autoridades, e o correspondente desprezo pelos trabalhadores e suas opiniões. Mas, também, o reconhecimento de que não é possível, politicamente, elaborar a priori um catecismo que defina como mandamentos invioláveis o que é consentido, e o que é impensável.


[1] TROTSKY, Leon. Moral e Revolução: a nossa moral e a deles. Trad. Otaviano de Fiore. 2ª ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra. p. 9/11.

[2] Ibidem, p.9.

[3] TROTSKY, Leon. Moral e Revolução: a nossa moral e a deles. Trad. Otaviano de Fiore. 2ª ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra. p. 9/11.