Felipe Demier
Na última quinta-feira (30/05/2013), estreou nos cinemas das principais capitais do país o filme Faroeste Caboclo, que promete ser um grande sucesso de público. Dirigido por René Sampaio, o animado thriller é uma adaptação livre da canção homônima de Renato Russo, a qual, como se sabe, narra em cerca de nove minutos a épica saga de João de Santo Cristo (interpretado no filme por Fabrício Boliveira).
Faixa mais famosa do terceiro disco da Legião Urbana (Que país é esse?), lançado em 1987, “Faroeste Caboclo” foi composta por Renato Russo em 1979 (antes mesmo de a banda existir), quando se apresentava como o “trovador solitário” de Brasília (DF). Rompendo com o trio de punk-rock intitulado Aborto Elétrico, Renato Russo passou a compor sozinho músicas que eram executadas por ele (na base da voz e violão) na abertura de shows das iniciantes bandas de rock da capital federal. É desse período que datam ainda canções como a balada “Eu sei”, também incluída no disco Que país é esse?. Apurando sua verve criativa, o jovem Renato mesclava influências estéticas variadas que iam dos versos românticos de Arthur Rimbaud às guitarras distorcidas de The Clash e Joy Division. Juntando poesia ao rock na virada de década de 1970, o futuro ícone de gerações de jovens brasileiros podia ser considerado uma espécie de “Bob Dylan do cerrado”, como gosta de dizer seu ex-parceiro de Legião, o guitarrista e compositor Dado Villa-Lobos. Dylan, aliás, seria uma influência clara em “Faroeste Caboclo”, canção que o próprio Renato comparava à “Hurricane” (1975), na qual o ídolo folk-rock americano retrata em aproximadamente sete minutos o caso de um boxer negro que, no auge da luta contra a segregação racial nos Estados Unidos (década de 1960), acabou condenado por um júri composto só por brancos, passando dezenove anos atrás das grades por um crime que não cometeu.
Desempenhando um papel de “Hurricane dos trópicos”, João de Santo Cristo é, na letra de Renato Russo, um filho da miséria e do atraso social do país, cujos efeitos como a violência, a brutalidade das relações humanas e o preconceito de classe e raça funcionam como fortes condicionantes da errática vida do protagonista (“Não entedia como a vida funcionava/ discriminação por causa de sua classe e sua cor/ ficou cansado de tentar achar resposta/ comprou uma passagem, foi direto a Salvador”). Esse aspecto, assim como outros presentes na canção, é bem retratado no longa de René Sampaio. Valendo-se de uma trabalhada fotografia, o cineasta retrata as origens miseráveis de João de Santo Cristo logo no início do filme. Em alguns takes que fazem lembrar (mesmo que vagamente) a “estética da fome” do Cinema Novo de Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos, João de Santo Cristo aparece ainda bem pequeno tentando, em vão, buscar água em um poço artesiano, e em outro momento deitado ao lado de sua mãe enferma em um decadente casebre situado em algum lugar do árido sertão brasileiro.
A trajetória da vida de João de Santo Cristo, na letra de Renato, se explica, a meu ver, por meio de uma tensão dialética entre, de um lado, as condições sociais em que João se encontra (o pauperismo e as degradantes relações humanas ao seu entorno) e, de outro, as opções e escolhas feitas por ele – sempre com uma boa dose de dúvida – em face dessas condições sociais determinadas (trabalhar como carpinteiro por um salário exíguo ou aderir à criminalidade; continuar no tráfico de drogas para conseguir dinheiro ou abandoná-lo para reconquistar seu amor etc.) Escapando de um determinismo animalesco de tipo naturalista (que unilateralmente reduz o sujeito a um mero produto do meio em que vive), a letra da música relata a vida do “anti-herói” como resultado de uma contradição entre a poderosa força dos condicionantes sociais e o próprio caráter pessoal do personagem, caráter esse cuja construção, por sua vez, é sempre remetida às duras condições sociais em que se encontra João de Santo Cristo (“Deixou pra trás todo o marasmo da fazenda só pra sentir no seu sangue o ódio que Jesus lhe deu/ Quando criança só pensava em ser bandido/ Ainda mais quando com um tiro de soldado o pai morreu […] Sentia mesmo que era mesmo diferente/ Sentia que aquilo ali não era o seu lugar/ Ele queria sair para ver o mar/ e as coisas que ele via na televisão/ Juntou dinheiro para poder viajar/ De escolha própria escolheu a solidão”).
Na letra de Renato Russo, temos a impressão de que João de Santo Cristo opõe, ao longo da história, uma resistência moral (ora aberta, ora velada) às injunções sociais que o impelem a seguir uma vida de “fora da lei”. Em função de suas necessidades materiais e espirituais (como conseguir dinheiro e preservar o amor da “menina linda” Maria Lúcia, interpretada no filme pela bela Isis Valverde), João oscila boa parte do tempo entre a vida de trabalhador (carpinteiro) e a de bandido (traficante de drogas) – Na gravação da canção, as mudanças entre essas opções de vida por Santo Cristo são acompanhadas por modificações no ritmo e andamento musical (basta conferir, por exemplo, a passagem da estrofe iniciada com o verso “Agora o Santo Cristo era bandido, destemido e temido no Distrito Federal…” para a seguinte iniciada com “Foi quando conheceu uma menina e de todos os pecados ele se arrependeu…”). Contudo, ao final da letra, o protagonista, devorado pelas dramáticas condições sociais, parece se render finalmente a elas, tornando-se decididamente um marginal. Tal “opção” – é curioso notar – se dá somente ao final da narrativa da música, quando, baleado e prestes a morrer, João de Santo Cristo rememora sua vida e aceita resolutamente o papel de bandido (“E se lembrou de quando era uma criança/ e de tudo que vivera até ali/ e decidiu entrar de vez naquela dança/ ‘se a via-crucis virou circo estou aqui’”) Assim, dialeticamente, o momento em que João de Santo Cristo parece finalmente fazer valer a sua decisão, parece fazer valer o seu papel de sujeito na trama musicada, é, na verdade, o momento em que ele finalmente se sujeita por completo às bárbaras injunções sociais que lhe reservavam o papel de “fora da lei”. Na canção, portanto, fica claro que o leque de possibilidades oferecidas pela realidade concreta de Santo Cristo era muito reduzido, compelindo o personagem, ao fim e ao cabo, a adequar-se às tendências mais fortes postas pela dinâmica social (no caso, a vida de bandido).
Essa tensão entre as determinações sociais e as opções pessoais de Santo Cristo em face delas também permeia o filme de René Sampaio, embora de um modo não dialético e, por conseguinte, unilateralmente determinista. Por um lado, várias cenas expõem, de uma forma bem interessante, as duras condições de vida as quais João se encontra submetido, e que podem ser vistas como socialmente responsáveis por sua escolha pelo crime (a morte de seu pai por um policial militar, os anos de cadeia, a perseguição policial que sofre durante quase toda a vida etc.). Por outro lado – é preciso dizer –, outras cenas explicitam a tentativa de Santo Cristo de, em face das adversidades sociais, preservar íntegro seu núcleo moral subjetivo (sua tentativa de trabalhar como carpinteiro, sua opção de abandonar o tráfico para reconquistar Maria Lúcia, sua recusa em continuar colaborando criminalmente com seu primo Pablo – interpretado por César Troncoso – ao perceber que ele extorque covardemente pequenos comerciantes etc.). Assim, durante o longa-metragem, João de Santo Cristo alterna por algumas vezes sua profissão de carpinteiro com sua atividade de revendedor de drogas (o que, talvez, nos permita situar o protagonista como pertencente a uma camada social – cada vez maior nos tempos atuais da periferia capitalista – em que as distâncias entre o mundo do trabalho precarizado e o da criminalidade lumpem são surpreendentemente tênues). Tal como na canção, o filme apresenta um desfecho em que João se rende, conformadamente, às hostis pressões sociais que o circunscrevem; já tendo abandonado a vida criminosa, Santo Cristo é sexualmente violentado pela quadrilha do arquirrival Jeremias (Felipe Abib) e, a partir daí, assume convictamente a função de “o matador de Ceilândia”, partindo para a cruenta vingança contra seus inimigos. Contudo, diferentemente da canção, o choque entre os atrozes condicionantes sociais e a subjetividade de Santo Cristo aparece no filme à maneira de uma tragédia grega, onde o final (no caso, a submissão de Santo Cristo às tais hostis pressões sociais) já se encontra predeterminado. Pelo modo como a narrativa é construída, o público tem a impressão de que, por mais que se esforçasse, João de Santos Cristo não poderia mesmo escapar ao seu inexorável destino, tal como um autêntico herói de Homero. O caminho da criminalidade não é apresentado, portanto, como uma possibilidade, e sim como algo “natural” e praticamente “inevitável” na trajetória do protagonista. Assim, a indagação feita pelo próprio personagem principal ao início e ao final da trama, “poderia ter sido meu destino diferente?”, parece ter sido colocada na boca de João pelo diretor apenas para ser respondida peremptoriamente pela negativa.
Outro aspecto a ser destacado no filme é que, em sua já mencionada livre adaptação da música, o diretor René Sampaio (intencionalmente ou não) imprimiu à trama contornos abertamente classistas. Diferentemente do que parece dar a entender a letra de Renato Russo, o “sem-vergonha” Jeremias é retratado na película como um bandido de origem burguesa, branco e mancomunado com policiais corruptos (como o detetive “Marco Aurélio”, muito bem interpretado pelo talentoso Antônio Calloni). Do mesmo modo, a “mocinha” Maria Lúcia é apresentada como uma jovem estudante de arquitetura da Universidade Nacional de Brasília (UNB), filha de um elitista e racista senador (Ney, interpretado pelo falecido Marcos Paulo). A meu ver, a “guerra” entre Santo Cristo e Jeremias parece ser, na letra de Renato Russo, não mais do que uma rocambolesca disputa pelo controle do tráfico de drogas e pelo amor da plebeia Maria Lúcia entre dois marginais caboclos das cidades-satélites do Distrito Federal (disputa essa que, justamente por ser cingida à periferia, não pareceu crível à classe dominante que dela soube pelos meios de comunicação: “E a alta burguesia da cidade não acreditou na história que eles viram na TV”). No filme, porém, o embate toma a forma de um estrondoso conflito bélico entre dois traficantes, um pobre e um rico, pelo controle do tráfico e pelo amor da agora burguesa Maria Lúcia. De um lado, João de Santo Cristo, de origem miserável, ex-carpinteiro e habitante da periférica e favelizada Ceilândia; do outro, Jeremias, o traficante-playboy que, em sua mansão, promove festas frequentadas pelos jovens da “alta sociedade” brasiliense. Desse modo, ainda que sob uma forma estereotipada e indireta, o sanguinário confronto entre violentas quadrilhas armadas que se desenrola no filme acaba por evidenciar o antagonismo de classe da sociedade burguesa e, consequentemente, as contradições geradas pelo desenvolvimento desigual e combinado do Distrito Federal, onde o aburguesado plano-piloto contrasta com degradantes municípios como Planaltina e a própria Ceilândia (fornecedores de mão de obra barata para a capital federal). Além de enfrentar o rico Jeremias, João de Santo Cristo é, em função de sua origem social e cor de pele (negra), acossado durante quase toda a história pelo aparelho repressivo do Estado, a polícia. Por esses motivos, o banditismo de João de Santo Cristo assume, de certo modo, o aspecto de um “banditismo social”, ainda que o personagem não se coloque em nenhum momento como porta-voz de sujeitos sociais mais amplos, o que destoa de uma interpretação que pode ser feita da canção da Legião Urbana (“Ele queria era falar pro presidente/ Pra ajudar toda essa gente que só faz… sofrer”).
Em um terreno mais propriamente político, convém assinalar a ausência de qualquer referência mais direta à indelével ditadura militar brasileira, que tinha vigência durante o período em que a trama se desenvolve. Nessa questão – mais uma vez –, o filme se distingue significativamente da letra de Renato Russo, na qual o “futuro” de Santo Cristo tornou-se “incerto” a partir do momento em que ele taxativamente recusou uma proposta feita por um “general de dez estrelas” para colocar “bomba em banca de jornal” e “em colégio de criança” – provavelmente, uma referência de Renato às ações terroristas do setor da linha dura militar que se opunha à abertura do regime ditatorial.
Em termos estéticos, vale ressaltar que existe no filme uma influência exagerada de Quentin Tarantino, o que é perceptível, por exemplo, nas cenas de western-cult e, sobretudo, na trilha sonora que as acompanha (em certos takes, o exímio atirador João de Santo Cristo assemelha-se ao ágil pistoleiro Django, tanto na performance de um estiloso matador, quanto na justificada crueldade endereçada aos seus adversários – embora, vale ressalvar, Faroeste Caboclo tenha sido filmado antes do último sucesso de Tarantino). Há no filme, também – como bem me chamou a atenção o historiador Romulo Mattos –, uma clara e criticável estetização da violência dos setores populares, deixando clara a referência do diretor a filmes como Cidade de Deus (2002) e Última parada 174 (2008), de autoria, respectivamente, dos hollywoodianos Fernando Meirelles e Bruno Barreto. Inegavelmente, contudo, René Sampaio tem o mérito de se aventurar a traduzir para a linguagem cinematográfica uma das músicas mais populares do país nas últimas décadas, a qual, arrisco-me a dizer, tem a sua letra memorizada (mais ou menos perfeitamente) por uma enorme quantidade de brasileiros situados na faixa entre os trinta e os cinquenta anos de idade. O filme é, assim, um exemplo da vivacidade tanto de “Faroeste Caboclo”, quanto da própria Legião Urbana, extinta em 1996 quando da morte de Renato Russo. Uma das provas dessa vivacidade talvez seja o fato de que, uma vez encerrada a trama de João de Santo Cristo na tela grande, pouquíssimos foram os espectadores que arredaram pé do cinema e não escutaram, uma vez mais, a longa canção que acompanha os créditos finais do filme.
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