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TEORIA

A trajetória de um autor insubmisso

Michelangelo Marques Torres

Não é possível fazer um balanço honesto do século XX sem compreendermos as mudanças resultantes das lutas sociais do século anterior. Igualmente não se fundamenta a análise das lutas sociais do século XIX (e dos seguintes) sem localizarmos o devido lugar da importância da obra e dos desdobramentos políticos oriundos da teoria social de Karl Marx. É imperiosa e oportuna uma breve consideração sobre este autor e a localização de sua produção teórica. Sem acompanharmos o decurso temporal e o itinerário que construiu o extraordinário perfil teórico-ideológico de Marx, o entendimento da dimensão de seu pensamento fica prejudicado. Já se dissera que a obra completa de Karl Marx é uma das mais grandiosas realizações do pensamento, significando uma revolução científica nas ciências sociais. Convergindo com essa afirmativa, porém, ciente das lacunas de um texto introdutório e de apresentação – evidentemente muito limitada – não pretendemos esgotar nenhuma análise do percurso intelectual-militante de Marx.

Neste 5 de maio de 2013 completa-se 195 anos do nascimento de Karl Marx (falecido há 130 anos). Pensador que dedicou sua vida e obra a emancipação dos trabalhadores e da revolução socialista, permanece despertando um lancinante interesse no século atual. Entendemos que Marx foi o autor mais exepcional que a modernidade nos ofereceu.

O texto que se oferece ao público é uma homenagem ao 5 de maio que se passou, data de nascimento de Karl Marx.

Pretende-se expor, resumidamente, o percurso de Marx e sua produção teórica minimamente contextualizada, ainda que, conforme dissemos, sem a pretensão de analisá-la, dado os limites deste espaço. Também não se pretende oferecer uma biografia concisa do autor de O Capital.

A ciência e o próprio pensamento (consciência) possui um caráter socialmente condicionado. Marx viveu numa época em que se enfeixara o ciclo de revoluções burguesas e início de sua crise, bem como o ápice das mudanças resultantes da industrialização capitalista. Em seu período de vida, uma intensa efervescência cultural, política e filosófica já se anunciava na conjuntura européia. O autor comunista dialogou intensamente com os clássicos da economia política inglesa, os iluministas franceses, o esclarecimento alemão, o socialismo utópico do movimento operário francês, os filósofos idealistas e materialistas até consolidar as bases do socialismo científico. Não obstante, divergindo das limitadas análises que sugerem um corte epistemológico entre o jovem Marx (filósofo) e o Marx maduro (econômico), procuraremos explorar como seu percurso teórico vai ganhando força (com continuidades e rupturas) no decorrer de sua trajetória e nos condicionamentos socio-históricos.

Nunca escapou aos analistas o fato da trajetória pessoal do autor em foco ter sido marcada por condições materiais de vida muito duras e enfermidades decorrentes da exaustiva dedicação ao trabalho. Marx compreendeu o seu tempo ao se apropriar criticamente do legado do pensamento burguês revolucionário e do incipiente socialismo utópico da pequena burguesia, fundamentalmente economistas ingleses, filósofos alemães e o pensamento político francês. A perspectiva de crítica ensinada pelo seu método de abordagem científica não se contenta com a negação ou rejeição reducionista, mas a superação do objeto a se estabelecer a crítica, compreendendo seus fundamentos, condicionamentos e limites. O pensamento marxiano opera por meio de uma crítica interna ao objeto, capturando seu movimento dinâmico e suas múltiplas determinações, constitui suas leituras clássicas e as leva às últimas consequências a fim de demonstrar suas contradições e insuficiências de análise. Ao superar o fundamento teórico da sociedade burguesa moderna, o autor nos legou uma síntese poderosa e as bases científicas para o entendimento da exploração capitalista e a superação socialista, a partir da afirmação do movimento proletário, classista e internacional.

Para compreendermos com maior detalhamento as complexas relações sociais no mundo regido pela lógica do capital é imprescindível partir do estudo de sua obra. O estudo da obra de Marx, aliás, apresenta inúmeras dificuldades, a começar por seu nível de complexidade, perpassando pela volumosa produção teórica (incluindo temas da filosofia, economia, política e história) e pelos equivocados tratamentos reducionistas a que sua obra foi submetida. É preciso dizer que muitos de seus trabalhos não foram redigidos para publicação, sendo antes rascunhos de pesquisa do próprio autor. Como aponta Celso Frederico, a perspectiva que Marx inaugura é:

“o fio vermelho responsável pela costura de ideias díspares, descoladas de seu contexto de origem e reapropriadas criticamente para servirem de fundamento a uma teoria original, destinada a ser a expressão teórica mais articulada do movimento operário” (FREDERICO, 2009:8).

Trata-se, de fato, de uma teoria nova e absolutamente original, numa só palavra, explosiva. Muitos autores quiseram sepultar Marx, considerando-o como ultrapassado. A ironia da história é que justamente em momentos de crise do capital é que seu pensamento é recuperado, e sua obra mais intensamente retomada.

O percursso

Nascido em 5 de maio de 1818, na cidade de Trèves, sul da Prússia Renana (atual Alemanha), o pequeno Karl Marx veio ao mundo para marcar história. Seu pai, Heinrich Marx, era advogado distinto, membro da pequena burguesia e judeu convertido ao protestantismo por conveniência (em 1824), posto que os judeus estavam proibidos de ocupar cargos públicos (além da conversão religiosa, abdicara do nome Hirschel em função do governo prussiano de Frederico Guilherme II que combatia o liberalismo burguês). Dispunha de uma vasta formação cultural, era leitor das grandes obras e pensadores do séc. XVIII, conforme revela sua biblioteca pessoal, notadamente preenchida por autores iluministas. Sua mãe, originária dos Países Baixos e também descendente de rabinos judeus, deu à luz nove crianças (Marx era o terceiro), incumbindo-se de cuidar da vida doméstica. Os três irmãos homens de Marx faleceram cedo. De sua mãe, além de possuir pouca instrução escolar, dizia-se ter um senso muito prático da vida. Aliás, Marx não desenvolveu uma relação de muita proximidade com a mãe em sua vida adulta, tendo esta, inclusive, negado por mais de uma vez ajuda financeira ao filho em momentos de dificuldades materiais, mencionando em certa ocasião, por correspondência, que o filho deveria ter se preocupado menos em estudar O Capital e se dedicado mais a ganhá-lo. Já o pai, com quem possuia maior proximidade afetiva, veio a falecer cedo, em 1838. Inclusive, no dia em que Marx faleceu foi encontrado junto de si um retrato de seu pai, pouco mais de 40 anos após a morte deste.

Ingressa no Liceu de Trier em 1830. No outono de 1835 concluiu os estudos discorrendo sobre o tema Reflexões de Um Jovem Perante a Escolha de Uma Profissão, em que afirma que a melhor profissão é aquela na qual o homem proporciona aos outros a felicidade da humanidade, apesar de reconhecer a exististência de obstáculos que não permitem aos homens, muitas vezes, condições de determinar a própria vida.

Em fins de 1835, inscreve-se no curso de Direito na Universidade de Bonn, interessando-se por história, filosofia, arte, literatura, mitologia grega e romana e línguas estrangeiras. Escreve seus primeiros poemas, sem grande importância artística. Corrido dois semestres dos estudos universitários, Marx transfere-se, a pedido do pai, para a Universidade de Berlim, onde havia destacados especialistas de jurisprudência. Nas férias, ainda jovem, noiva secretamente de Jenny, mulher que viria a se tornar a única esposa do “Mouro” (como era conhecido). Jenny vinha de família notável, era “bem nascida”, seu avô fora conselheiro do duque de Braunschweig. Apesar disso a dedicada esposa de Marx abdicou da segurança familiar para uma vida dura em termos materiais junto a aquele que viria se tornar o maior teórico do socialismo. Aos 18 anos, o jovem Marx fora dispensado do serviço militar em função de uma fraqueza no peito. Em 1835, em correspondência, seu pai lhe chama atenção neste aspecto: “Portanto, não estudes mais do que tua saúde puder suportar”. Negligenciando o conselho do pai, Marx iria trabalhar exaustivamente ao longo de sua vida, inclusive durante noites inteiras, o que irá contribuir para debilitação de seu estado de saúde na vida adulta.

Em 1841 defende seu doutoramento sob o título A diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro, recebendo o título de Doutor em Filosofia pela Universidade de Iena1. Devido a questões burocráticas e políticas, Marx resolve enviar sua dissertação para esta Universidade a fim de que acelerasse sua defesa. Apesar de alguns processos registrados no currículo do jovem Marx, de ordem de pequenas transgressões de comportamento em que se envolvera (como uma detenção policial de 24h, em 1836), foi-lhe dado o seguinte parecer técnico: “tanto atesta inteligência e perspicácia quanto erudição, razão por que julgo o candidato preeminentemente digno”. Naquele mesmo ano, Feuerbach havia publicado A Essência do Cristianismo, que viria a influenciar as idéias filosóficas do jovem Marx na contraposição ao idealismo dos jovens hegelianos. Logo após a defesa do doutoramento, frustra a espectativa de ingressar na docência universitária, devido a complicações políticas. Se não fosse a história, Marx muito provavelmente teria se tornado professor.

Frustrada a perspectiva de lecionar no círculo universitário, em 1842 o jovem Marx ingressa no meio jornalístico, vindo a integrar a Gazeta Renana, na Colônia, com destaque para as questões sobre a liberdade de imprensa. Astuto e sempre atento para as questões conjunturais, nessa época proferiu: “A liberdade número um para a imprensa consiste em não ser ela uma indústria” (MARX apud KONDER, 2011:24).

Nosso autor conhece Engels em novembro daquele ano, num primeiro encontro pouco caloroso, diga-se de passagem, sem saber que a partir dali selariam uma obra de profunda identidade e solidariedade, ainda que suas afinidades e projetos de vida seriam selados intensamente apenas num segundo encontro, que viria a ocorrer dois anos depois, em Paris.
No espírito da época, havia uma profunda influência do pensamento hegeliano no circuito acadêmico. O debate articulava-se em torno dos denominados hegelianos de direita (em defesa do Estado prussiano e difusores de elementos conservadores da filosofia de Hegel) e hegelianos de esquerda (esforçados em difundir o método do filósofo alemão para compreensão histórica dos fenômenos sociais). Marx era próximo deste último grupo, com o qual iria posteriormente romper.

O ano de 1842 representa um contexto decisivo para o jovem Marx, então democrata radical: a descoberta da política. Seu contato e enfrentamento das questões sociais e lutas políticas proletárias se deu em uma campanha, ainda nos tempos de colaborador, e posteriormente redator-chefe, da Gazeta Renana (jornal da burguesia anti-absolutista), quando se pronunciou a favor dos camponeses pobres do Reno compelidos a roubarem madeira em função da situação miserável em que viviam.

Em 1843, Marx e Jenny se casam e passam a lua de mel na capital francesa. Na ocasião, Marx se dedica agudamente ao estudo e acerto de contas com a filosofia de Hegel, cujo resultado expositivo foi encontra-se em Crítica da Filosofia do Direito de Hegel (texto não publicado em vida, as anotações de Marx só foram publicadas em 1927). Nesta obra, o jovem filósofo realiza uma exposição crítica do pensamento hegeliano e o tratamento das categorias lógico-abstratas dominantes, isto é, procede a uma monumental e pioneira crítica do pensamento teleológico abstrato especulativo. Porém, não se trata de assumir o mero materialismo. Ao mesmo tempo em que aponta os limites do idealismo hegeliano, ao desvelar a desontologização da realidade empírica captada pela especulação das ideias abstratas, Marx supera o materialismo feuerbachiano, ampliando o alcance da crítica para o campo prático da política. Nesta obra, como é sabido, Marx encontrou seu objeto, restava-lhe encontrar sua “anatomia”. É interessante ver como o jovem autor articula as esferas do Estado e sociedade civil nesta obra.

Com o fechamento da Gazeta Ranana naquele mesmo ano, Marx irá fundar com seu então amigo Arnold Ruge, cuja amizade viria posteriormente romper, a revista Anais Franco-Alemães, agora como redator-chefe, fato este que o fez se mudar para Paris. Em 1844 apareceria a primeira e única edição dos Anais, contendo a Introdução à Crítica da filosofia do direito de Hegel e Sobre a questão judaica. No primeiro texto, escrito entre fins de 1843 e janeiro de 1844, em Paris, Marx, com 25 anos, opera uma inflexão em que demonstra continuidades/descontinuidades em relação a sua produção teórica até então, anunciando uma crítica radical e impiedosa à sociedade civil burguesa e à lógica da propriedade privada, anunciando a “revolução radical” como caminho para a autorealização do homem, destacando a necessidade de transitar da “crítica da religião” para a “crítia da política”. Vale dizer que o conceito marxiano de proletariado é inaugurado nesta Introdução. Já no segundo texto, Sobre a Questão Judaica, Marx estabelece uma diferenciação fundamental entre emancipação política e emancipação humana.

Foi, ainda, em Paris que Marx entrou em contato com o movimento operário representativo do socialismo francês. Estudou as greves dos operários tecelões da Silésia, ocorrida em junho, identificando no proletariado o elemento ativo de sua própria libertação. Se sua atividade como jornalista lhe revelou a importância para a liberdade política, foi, porém, em contato com as lutas sociais da época que se viu compelido à importância do profundo estudo da estrutura da sociedade burguesa. Neste mesmo ano viria a voltar a ter um encontro pessoal com Engels que, a partir de então, selaria o início de uma profunda e admirada parceria intelectual-militante. A respeito, como escreveria Engels, em 1885, “constatamos nossa completa concordância em todas as questões teóricas” (apud LOWY, 2012:134). Sob esse aspecto, é preciso reconhecer o fato de que ao ter contato com o artigo engelsiano intitulado Esboço de uma crítica da Economia Política, foi apresentada a Marx a necessidade do estudo e elaboração de uma crítica da Economia Política2 (burguesa, clássica, liberal). Precisando melhor, é Engels que lhe introduz a crítica da Economia Política, influenciando-o profundamente.

Aquele ano de 1844, conforme vemos, seria decisivo para o jovem Marx, ao fundamentar suas primeiras análises do estatuto ontológico do trabalho em seus Manuscritos Econômico-Filosóficos, texto nunca publicado em vida (viria a ser publicado apenas em 1932, tardiamente descoberto). Foi nos Manuscritos de Paris que desvendou o esboço decisivo de sua teoria da alienação e o estudo da Economia Política. Ainda em 1844, no mês de agosto, é publicado no periódico Vorwärts (periódico de esquerda publicado por exilados alemães em Paris) o artigo de Marx, de importância singularmente pouco considerada pelos próprios marxistas, intitulado Glossas Críticas ao artigo “O rei da Prússia e a reforma social” de um prussiano, em que debate a primeira revolta operária na história alemã moderna, a saber, o levante dos tecelões de Silésia, texto em que Marx articula o proletariado como elemento ativo da revolução socialista numa perspectiva da autoemancipação. Foi nessa época que Marx redige o pouco conhecido texto Elementos da Economia Política de James Mill3, tratando, inclusive, sobre a temática da alienação.

No ano seguinte é expulso da França. Publica A Sagrada Família, primeira obra em co-autoria com Friedrich Engels. Nesta obra, majoritariamente redigida por Marx, os autores atentam para a superada filosofia de Hegel (ou precisando melhor, a filosofia que viria a ser superada, uma vez que, na ocasião, expressava a elaboração filosófica dominante) e seu invólucro especulativo de caráter abstrato e idealista representado por Bruno Bauer, Edgar Bauer e Egbert Bauer – filósofos “de gabinete” e que expressavam a “quietude do conhecer acadêmico” das classes ociosas. Se os referidos autores se denominavam “a Crítica da crítica”, Marx e Engels elaboram uma implacável “crítica da Crítica crítica”. Trata-se de um combate ao idealismo especulativo de cariz hegeliana.

Na primavera de 1845, Marx elabora suas Teses sobre Feuerbach4 É deste contexto a compreensão mais qualificada acerca do proletariado inglês e sua exploração pelo capital, a partir do acompanhamento da pesquisa do parceiro Engels, exposta na primorosa A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra (Engels), publicada naquele ano. O Comitê de Correspondência da Liga dos Justos, organização clandestina, é organizado por Marx e Engels em 1846, em Bruxelas. Data do exílio em Bruxelas a publicação do ensaio Peuchet: Sobre o Suicídio, texto quase desconhecido e publicado no Gesellschaftsspiegel (uma primeira tradução para o inglês só viria ao mundo em 1975). Neste mesmo ano de 1846, A Ideologia Alemã5 acaba não sendo publicada por falta de editor, sendo resguardada para “a crítica roedora dos ratos” (esta obra seria resgatada posteriormente por Riazanov, publicada em 1932, na então URSS). Nesta obra, os autores esboçam a compreensão sobre o materialismo histórico6, destacando a necessidade do pensamento combater o mundo existente e, em certa medida, realçando uma reflexão sobre o comunismo (primeiro momento de sua obra em que o termo partido comunista é empregado).

Em 1847 Marx se associa a Liga dos Justos (que se tornaria, logo em seguida, Liga dos Comunistas) e articula diversas associações operárias. No plano teórico, em resposta ao impactante texto de Proudhon, Filosofia da Miséria, Marx redige em francês a demolidora obra A Miséria da Filosofia em resposta ao principal representante dos socialistas utópicos franceses. Neste importante texto, Marx diferencia a perspectiva socialista reformista da revolucionária. Aqui, demonstra-se claro que o erro de uma análise da realidade implica em erro na proposta política, como é o caso do utopismo reformista de cariz pequeno-burguês proudhoniano, o qual recusa a ação revolucionária de transformação do capitalismo. Em Marx, ao contrário, já se encontrava um projeto comunista revolucionário claramente formulado. Apesar de demonstrar as limitações proudhonianas, Marx identificava no autor um significativo avanço da manifestação teórica e do pensamento operário no contexto de sua época.

No mesmo ano nosso autor pronuncia conferências em Bruxelas, notadamente na Associação dos Operários Alemães, que seriam posteriormente publicadas na Nova Gazeta Renana, em 1849, com o título Trabalho Assalariado e Capital, texto dirigido à militância operária.

Em fins de 1847, Marx e Engels são incumbidos da tarefa de redação do Manifesto Comunista. Engels entrega a Marx os Princípios do Comunismo, uma versão preliminar do Manifesto. Marx fica responsável pela exposição final do texto. Na euforia revolucionária do contexto social da época (situação revolucionária que ficaria conhecida como a Primavera dos Povos de 1848), o panfleto foi uma encomenda política da Liga dos Comunistas. Trata-se do texto teórico-político mais importante e influente já escrito na história. O panfleto, originalmente com vinte páginas, representa um documento político-programático, ao mesmo tempo que uma análise histórica, isto é, uma teoria da realidade e uma crítica do presente integradas ao projeto de emancipação proletária. Tratava-se de apresentar ao proletariado um conteúdo programático embasado em sólidas bases científicas. Na última semana de fevereiro de 1848 foram impressos 3 mil exemplares do panfleto em Londres e divulgados amplamente. O propósito era divulgá-lo em diversos idiomas. Simultaneamente explode uma insurreição na Suiça, seguida pela Itália, França, Renânia, Prússia, Áustria e Hungria. Como toda primavera, a Primavera dos Povos teve seu fim, esmagada pela reação da burguesia. A contrarrevolução avança e Marx é expulso da Prússia (Colônia). Redige com Engels Reivindicações do Partido Comunista da Alemanha. Funda o jornal Nova Gazeta Renana, em Colônia, aonde passa a dirigir o movimento operário local. Em 1849 é expulso da Alemanha após efervescente defesa da liberdade de imprensa, logo após redigir Trabalho Assalariado e Capital. A Nova Gazeta Renana é fechada, sendo proibida de circular em maio de 1849, não sem antes seus redatores, com Marx a frente, resistirem: “sua última palavra será, sempre e aonde queira, esta: emancipação da classe trabalhadora” (tradução livre conforme Neue Rheinische Zeitung, num.301, 19 de maio de 1849 in: MARX e ENGELS, 2006:518). Como lembra o próprio Engels: “Tivemos, porém, a satisfação de ser o único jornal da Alemanha e quase toda a Europa a manter erguida a bandeira do proletariado derrotado, num momento em que os burgueses e os pequeno-burgueses de todos os países lançavam sobre os vencidos as calúnias mais inundas” (ENGELS, 1976:176-7).

Marx também não consegue permanecer na França, donde é novamente expulso, momento em que é tocado por dificílima condição financeira – nesse contexto se vê compelido a vender os próprios móveis para saldar as dívidas. Dirige-se, então, para Londres, com ajuda de arrecadação financeira alemã promovida por Ferdinand Lassalle. Na capital inglesa, edita, em 1850, ano em que falece seu filho Guido, a revista Nova Gazeta Renana e a série de artigos que irão compor a Luta de classes na França. Nesta obra, Marx analisa a história francesa, com foco na revolução de 1848-9 e na dinâmica dos arranjos de classes (e suas frações), em pleno “calor do momento”. Ainda naquele ano, publica junto com Engels Mensagem do Comitê Central à Liga dos Comunistas, divulgada como circular no mês de março.

Em 1851 recebe nova ajuda financeira de Engels, o que lhe permite se dedicar a intensos estudos econômicos nos salões da biblioteca do Museu Britânico. Assina o artigo redigido por Engels no New York Daily Tribune, intitulado Contrarrevolução na Alemanha, a fim de conseguir algum rendimento financeiro. Neste ano vê o nascimento de seu quinto filho, a menina Francisca, que faleceria um ano depois.

No ano de 1852 vem à público a obra O 18 Brumário de Luís Bonaparte, em que narra e interpreta os acontecimentos que culminaram no Golpe de Estado francês, analisando as correlações de forças e o modo como as classes e frações de classe se apresentam em disputa. Essa obra, juntamente com A luta de classes na França, representam importantes análises que articulam conexões recíprocas entre a economia e a política, desmistificando as leituras economicistas atribuídas equivocadamente a Marx.

Entre 1853-4 colabora com artigos em periódicos (dentre eles, New York Daily Tribune e People’s Paper) e com o movimento operário. Adoece seriamente. Nessa época, um agente policial espião na Inglaterra descreve Marx nos arquivos secretos do Estado Prussiano: “é de estatura mediana, tem 34 anos e seus cabelos já estão grisalhos. Seus ombros são largos. Usa barba. Seus grandes olhos penetrantes e vivos têm qualquer coisa de demoníaco: sente-se que se trata de um homem cheio de gênio e energia. Sua superioridade intelectual fascina irresistivelmente os que o cercam. (…) Frequentemente passa as noites em claro. (…) Uma conversa inteligente e agradável acaba, então, por compensar as deficiências da casa, tornando suportável a sua falta de conforto. Esse é o quadro fiel da vida familiar do chefe comunista Marx”. (KONDER, 2011:145). No que se refere ao perfil de Marx, cabe uma nota de observação acerca do impressionante grau de erudição do Mouro. Certa vez, Paul Lafargue, genro de Marx, observou: “Seu respeito por Shakespeare era ilimitado: ele fez um estudo detalhado da obra do escritor e conhecia até os personagens menos importantes”. Também comentou em certa ocasião o professor S.R.Prawer: “qualquer pessoa da casa de Marx era obrigada a viver ‘numa perpétua rajada de alusões à literatura inglesa” (apud WHEEN, 2011:27). Conta-se, inclusive, que durante os piqueniques dominicais Marx lia junto com as crianças Shakespeare, Dante e Goethe.

Nasce sua sexta filha, Eleanor, em 1855. Em menos de três meses perderia o filho Edgar. Tomado pela dor da perda, escreve a Lassalle: “A morte de meu filho me abalou profundamente o coração e a cabeça. E continuo a sentir-lhe a falta com a mesma intensidade do que no primeiro dia”. (konder 86). No ano seguinte, a penúria financeira é amenizada devido a uma herança da mãe de sua esposa.

O ano de 1857 é hora de retomar estudos de Economia Política. Estuda na biblioteca do Museu Britânico dez horas por dia, até o horário do final do expediente. Contudo o horário não lhe barra os estudos, continuando suas leituras em seu “gabinetes de estudos”, em casa, todas as madrugadas (não é preciso dizer que naquele tempo não havia energia elétrica disponível!). Após essa impressionante empreitada lhe render novo adoecimento, foi proibido do trabalho noturno por precauções médicas. Fruto desse processo investigativo, concluí a redação dos Grundrisse, manuscrito não destinado para publicação7 e a célebre Introdução de 1857, em que, dentre outras questões, expõem a questão do método. Mantém profunda troca de correspondência com Engels e publica diversos artigos, dentre eles um sobre Simón Bolívar.

Novamente as dívidas apertam, assim como as tristes circunstâncias da vida: seu novo filho vem à luz natimorto.

Apesar da penúria, em 1859 publica Contribuição à crítica da Economia Política, antecipando alguns elementos que viriam a ser sintetizados em O Capital, como por exemplo, a teoria do valor. Curiosamente o texto não havia sido publicado anteriormente por falta de dinheiro para postar o original. Em 1860 redige Herr Vogt (Senhor Vogt), após intensas calúnias contra sua pessoa. No ano seguinte, bastante adoecido, viaja a Holanda para solicitar adiantamento financeiro ao tio. Permanece colaborando com periódicos europeus. Em 1862 tem os rendimentos reduzidos em função da colaboração profissional dispensada no New York Daily Tribune. Quando procurados, sua mãe e seu tio lhe dão as costas. No ano seguinte recebe a herança pela morte de sua mãe. Envolve-se ativamente em prol da luta pela independência da Polônia.

No ano de 1864, Marx participa da Associação Internacional dos Trabalhadores, elaborando seu manifesto de fundação, inclusive. No ano seguinte redige Salário, Preço e Lucro. Finalmente o ano de 1867 recebe a primeira edição de O capital, vol.1. (Os outros volumes seriam publicados por Engels após a morte de Marx).

Sob novas dificuldades financeiras e perseguição política, em 1869, regressa a Londres. Neste meio tempo, forja identidade falsa para visitar a filha e o genro, Paul Lafargue. Defende fervorosamente a importância da organização dos trabalhadores em entrevista a Haman. É nesse período que recebe nova contribuição financeira do camarada Engels, que publica sua biografia no Die Zukunft. É nesse período de vida que se interessa pela situação política da Rússia, estudando o idioma desse país. Justamente nessa fase que Marx entra em desavenças ideopolíticas com Bakunin, líder anarquista.

Em 1871, em apoio a Comuna de Paris, atua na Internacional e redige A Guerra Civil na França. Alvo da imprensa conservadora, é reeleito secretário da seção russa na Internacional.

Em 1873, por ordem médica, é impedido de trabalhar, apesar de escrever com Engels sobre as teorias anarquistas e o movimento operário em periódicos da Itália. Em 1875 redige Crítica ao Programa de Gotha, criticando a social-democracia alemã. Trabalhando o segundo volume de O Capital, em 1877 viaja com a família devido a novos problemas de saúde e recomendação médica. No final de sua vida, com a saúde bastante debilitada, passou a estudar geologia, física e matemática. Em 1879, trabalha nos volumes II e III de O Capital. Em 1880 redige o pouco conhecido artigo Glossas Marginais ao Tratado de Economia Política de Adolph Wagner.

No dia 2 de dezembro de 1881, vítima de um câncer no fígado, Jenny vem a falecer, o que abalou profundamente Marx. Segundo o Mouro: “meu espírito vive atualmente em grande parte absorvido pela recordação de minha mulher, que foi a melhor parte de minha vida”, escreve três meses depois. Enfermo e abalado Marx prossegue seus estudos, não mais com a mesma força. Para intensificar as dificuldades, em janeiro de 1883 perde outra filha. A inflamação na garganta já o impedira de falar. No dia 14 de março faleceu devido a um abscesso no pulmão que lhe acarretava problemas respiratórios. Lembrava Friedrich Engels, “às três horas menos um quarto da tarde, deixou de pensar o maior pensador de nossos dias” (Discurso diante da sepultura de Marx).

Apenas onze pessoas presenciaram o funeral de Karl Marx, em 17 de março de 1883, no cemitério de Highgate. Conforme pronunciou o amigo Engels em sua oração fúnebre “seu nome e sua obra permanecerão por séculos afora” (idem). Esta frase, certamente, passaria pelo crivo da história. Assim como se anunciava em uma carta que Engels endereçava a Berstein no dia do falecimento de Marx: “Durante alguns anos, desaparecerão, com ele, de cena, seus pontos de vista elevados”. Seria o prenúncio da decadência ideológica dos anos que se seguiriam.

Certa vez, as filhas de Marx pediram que se submetesse a um interrogatório, um jogo em que o pai respondeu, dentre outras, as seguintes questões: sua virtude favorita: simplicidade; sua virtude favorita no homem: a força; sua característica principal: coerência de propósitos; sua ideia de felicidade: lutar; ocupação predileta: ler; cor predileta: vermelho; máxima predileta: Nihil humania me alienum puto (Nada do que é humano me é estranho); lema favorito: convém duvidar de tudo.

É preciso dizer que, ainda hoje, há inúmeros cadernos de anotações e estudos de Marx, além de cartas, não publicados. Nesse sentido, o projeto MEGA (Marx Engels Gesamtausgabe), instituição internacional detentora e curadora dos manuscritos de Karl Marx e Friedrich Engels, vem realizando um minucioso trabalho de preparar a revisão e tradução de seus escritos (cerca de metade de seus manuscritos ainda nunca foram publicados em nenhum idioma).

Atualmente, muitas pessoas visitam o cemitério de Highgate, na Inglaterra, onde há um memorial com um monumento de Marx, embora não seja o verdadeiro local de seu túmulo8. Como era judeu, seu verdadeiro túmulo está numa quadra esquecida e um tanto escondida, quase que abandonado, em meio a trilhas cobertas por mato. Neste local desconhecido pelo público em geral se vê uma lápide simples, inteiramente rachada, numa ala distante do memorial de visitação, aonde eram enterrados os judeus, o nome: Karl Marx.

Conforme demonstrou a história, o marxismo converteu-se em principal bandeira de luta dos trabalhadores. Qualquer pensamento crítico sobre o capitalismo precisa dialogar com a obra de Marx. Lowy nos lembra que “a atividade militante de Marx não é uma mera passagem biográfica, mas o complemento necessário da obra, já que tanto uma quanto a outra têm a mesma finalidade: não somente interpretar o mundo, mas transformá-lo e interpretá-lo para transformá-lo” (LOWY:2012,41).

Por fim, cabe uma última nota. Fica aqui o convite para se explorar a obra do mais genial, insubmisso e rebelde de todos os revolucionários, como lembra Ricardo Antunes (2013). Assim, não se pode operar uma disjuntiva entre a obra prática e a obra teórica de Marx, como querem os acadêmicos da ordem. Há um vínculo indissociável entre o diagnóstico da economia política com seu projeto de transformação social, a contragosto daqueles (acadêmicos) que optam pelo Marx analista (ou economista) em detrimento do Marx revolucionário (político). É preciso insistir nesse aspecto. Karl Marx foi decididamente o pensador que operou a mais radical e decisiva guinada ontológica de interpretação da realidade social dos tempos modernos, e como se não bastasse, com a intencionalidade de transformá-la. Um brinde ao Mouro!

Referências:

ANTUNES, Ricardo. A dialética do trabalho vol II: escritos de Marx e Engels. São Paulo: Expressão Popular, 2013.

ENGELS, Friedrich. “Marx e a Nova Gazeta Renana: 1848/1849”; “Karl Marx”; “Discurso diante da sepultura de Marx” in: Karl Marx e Friedrich Engels. Textos, vol.2. São Paulo: Edições Sociais, 1976.

FREDERICO, Celso. O jovem Marx:1843-44: as origens da ontologia do ser social. São Paulo: Expressão Popular, 2009.
Instituto de Marxismo-Leninismo anexo ao CC do PCUS. Karl Marx: biografia. Edições Avante, Lisboa; Edições Progresso Moscovo, 1983 (tradução da segunda edição em russo, Moscovo, 1973).

KONDER, Leandro. Marx: vida e obra. 7ª edição. São Paulo: Paz e Terra, 2011.

LENINE, V. L. Karl Marx: breve nota biográfica com uma exposição do marxismo. in: Obras Escolhidas em três tomos. vol.1. São Paulo: Alfa-Ômega, São Paulo, 1979.

LÖWY, Michael. A teoria da revolução no jovem Marx. São Paulo: Boitempo, 2012.

LUKÁCS, György Lukács. O jovem Marx e outros escritos de filosofia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007.

MANDEL, Ernest. O itinerário pessoal de Marx e Engels. in: O lugar do marxismo na história. São Paulo: Xamã, 2001.

MARX, Carlos. ENGELS, Federico. Las revoluciones de 1848. Seleción de artículos de la Nueva Gaceta Ranana. 2ªed. México: Fondo de Cultura Econômica, 2006.

WHEEN, Francis. Karl Marx. Rio de Janeiro: Record, 2011.

Marcado como:
memória