Felipe Demier e Romulo Mattos
Como parte integrante da vida nacional, o futebol foi atingido pelo redemoinho neoliberal de cunho privatista que, a partir da década de 1990, quase tudo sugou no Brasil ou, pelo menos, tentou sugar. Esperançosos em mercantilizar ainda mais o sentimento gratuito e passional de milhões de trabalhadores e jovens torcedores, formou-se no país um verdadeiro bloco social adepto de um projeto modernizante-conservador do futebol. Conformado por empresários de jogadores, empresas de marketing esportivo, fundos de investimentos, patrocinadores multinacionais, dirigentes esportivos, emissoras de televisão e políticos ligados à Confederação Brasileira de Futebol (CBF), entre outros setores não menos comprometidos com a plena transformação do esporte em mercadoria, esse bloco social vem levando a cabo, com relativo êxito, um processo de empresariamento do futebol brasileiro.
Segundo os ideólogos desse novo bloco social, existiria até meados da década de 1990 (e, para alguns mais ortodoxos, existiria até os dias de hoje) uma contradição entre o potencial técnico-comercial do esporte bretão no país (qualidade técnica dos jogadores brasileiros, constantes “safras” de craques, clubes com torcidas imensas e apaixonadas etc.) e a estrutura político-administrativa do futebol brasileiro. Taxada de “amadora”, tal estrutura não estaria totalmente preparada para permitir, de forma ágil, a efetivação completa do processo de mercantilização do futebol que, nos países centrais (em especial na Europa), já se encontrava em estágio bastante avançado. Assim, no início da década de 2000, o espantoso êxodo de jovens craques para o exterior (que começara já em meados dos anos 90) era explicado pelos “modernizadores” do futebol como um simples problema de “gestão”, a saber, uma incompetência administrativa dos arcaicos mandatários da bola que não saberiam fazer bons contratos entre os clubes e os atletas (como se faltasse sabedoria capitalista aos nossos patrimonialistas dirigentes esportivos…). Nesse discurso ainda muito em voga na mídia esportiva, não havia espaço para críticas substantivas à Lei Pelé que, melhor sintonizando o futebol brasileiro na frequência da divisão internacional do trabalho esportivo, colocara de vez os clubes brasileiros no papel de exportadores em massa de “matérias-primas” (jogadores) para um mercado esportivo global cada vez mais diversificado, rapineiro e monopolista. A velha ladainha neoliberal, calcada em termos tecnicistas como “transparência”, “competência” e “responsabilidade financeira”, foi incorporada plenamente ao cenário futebolístico; jogadores da base ligados somente ao clube formador (sem empresários), dirigentes amadores (não remunerados) e torcedores sem poder aquisitivo passaram a ser vistos como elementos inconvenientes, óbices oriundos de um passado “romântico” que precisava ser urgentemente liquidado. Na qualidade de ramo econômico nacional, o futebol precisava se adaptar aos tempos de reestruturação econômica do capital. O tão propalado “esporte nacional” necessitava se tornar, fundamentalmente, um rentabilíssimo espaço de investimento para o capital, o que colocava na ordem do dia a transformação dos clubes em empresas/marcas e a dos torcedores em consumidores.[1]
Desde fins dos anos 1990, esse processo de mercantilização do futebol brasileiro avançou velozmente, e pôde ser notado em diversos âmbitos do universo futebolístico nacional. Vejamos isso rapidamente.
A já mencionada Lei Pelé, para além de enfraquecer materialmente os clubes brasileiros, fez a festa dos empresários e agentes de jogadores (os quais também empresariam e agenciam técnicos, convém lembrar). Como as mercadorias só se realizam quando postas no mercado, a rotatividade dos jogadores nos clubes atingiu um ritmo febril, deixando saudades nos torcedores de quando era possível guardar de memória a escalação de seus times. Sob o discurso ideológico do “fim da escravidão” dos jogadores em relação aos clubes, construiu-se uma situação de completa subordinação dos atletas a uma espécie de lumpem-empresariado da bola. Realizando transações comerciais pra lá de suspeitas (com parada obrigatória em ilhas fiscais) e mantendo “relações perigosas” com setores mafiosos do recém restaurado capitalismo do Leste Europeu, as empresas de marketing esportivo e certos fundos de investimentos passaram a adquirir os direitos federativos dos jogadores (ou porcentagens desses direitos) e apostar na valorização das promessas de craque (no melhor estilo do capital especulativo). A frenética compra e venda de jogadores em um circuito comercial que liga escolinhas de futebol dos mais remotos rincões do Brasil às mais longínquas repúblicas asiáticas da ex-União Soviética (passando, naturalmente, pela Europa central e ibérica) criou as incontáveis fortunas daqueles que são hoje os verdadeiros donos da bola no país. Importante chamar atenção para o fato de que, se para uma pequena “elite” de atletas profissionais a neoliberalização do futebol proporcionou ganhos astronômicos (em função dos contratos milionários que passaram a assinar livremente com clubes dos mais variados países), para a grande maioria dos jogadores brasileiros a situação vai de mal a pior. Segundo dados da própria CBF, 82% dos jogadores profissionais do país recebem até dois salários mínimos;[2] trabalhando em condições muitas vezes precárias, esses verdadeiros proletários da bola se encontram completamente subordinados aos clubes e agenciadores, e se veem impelidos a assinar contratos cada vez mais curtos e sem direitos. Quanto aos grandes clubes, vale lembrar que, cada vez mais economicamente dependentes do dinheiro dos patrocinadores e, sobretudo, das cotas de televisão, eles vêm perdendo gradativamente seu poder até mesmo em relação à organização dos campeonatos esportivos, hoje em dia programados de modo a melhor atender aos interesses televisivos e comerciais – a forte interferência da Rede Globo na montagem das tabelas dos torneios, no número de participantes destes e no horário (muitas vezes absurdo) dos jogos, entre outros aspectos, é perceptível para qualquer observador minimamente atento. A dependência dos clubes em face da Rede Globo, decorrente justamente dos adiantamentos de cotas de TV concedidos pela empresa, levou até mesmo ao absurdo de, em 2011, alguns grandes clubes recusarem ofertas financeiras superiores feitas por outra emissora interessada em adquirir os direitos de transmissão do Campeonato Brasileiro.
Também no que diz respeito ao papel a ser desempenhado pelos torcedores nesse futebol de feição cada vez mais empresarial, significativas mudanças de caráter antipopular vêm se verificando na última década, e são estas que, em nome dos preparativos para a próxima Copa do Mundo (2014), estão sendo apressadamente intensificadas pelo grande capital esportivo.
O projeto de empresariamento do futebol brasileiro é, em grande parte, inspirado nas conhecidas (e classistas) transformações processadas no futebol inglês entre fins da década de 1980 e início da de 1990. Sob a bandeira do combate à violência nos estádios – que encontrava respaldo social em função da tragédia de Hillsborough[3] –, diversas modificações de cunho elitista foram efetivadas pelos mandatários do esporte na ilha, os quais gozaram do apoio decisivo dos governos conservadores de Thatcher e Major, assim como do incentivo declarado da Fédération Internationale de Football Association (FIFA), interessada em acelerar o que talvez possamos denominar de uma contrarreforma futebolística à escala mundial.[4] Alguns dos efeitos mais visíveis desse aburguesamento do futebol inglês foram o afastamento dos trabalhadores dos estádios, em função do elevado aumento no preço dos ingressos, e o surgimento de uma nova concepção do que deveriam ser os próprios estádios de futebol, a partir de então entendidos como arenas multiuso.[5]
A ideia segundo a qual os estádios de futebol devem ser áreas comerciais, de convívio e eventos variados, chegou definitivamente ao Brasil desde a escolha do país para sediar a Copa de 2014. De acordo com esse modelo, o torcedor-consumidor, além de apenas comprar o ingresso para assistir à partida, pode ampliar significativamente os seus gastos com o estacionamento (uma obrigatoriedade nessa nova arquitetura dos estádios), lojas de grifes famosas, estabelecimentos multinacionais de gastronomia, museus esportivos, eventos culturais etc. Em outras palavras, múltiplos serviços capazes de prolongar o tempo de permanência e ampliar o consumo dos frequentadores no estádio, como se estes estivessem em um shopping-center com a família num ordinário fim de semana mercantilizado. Em nome desse conforto dos torcedores-consumidores, uma tradição do futebol brasileiro foi eliminada: a chamada Geral, o setor mais barato, onde os popularmente denominados geraldinos assistiam aos jogos em pé, porém mais próximos ao campo. No Maracanã reformado, por exemplo, o local da antiga Geral – a qual foi extinta há alguns anos – será preenchido por assentos especiais, que conformarão um setor nobre e, portanto, muito mais caro do que o original. Mais um estúdio do que um estádio, na reflexão do historiador Marcos Alvito, o interior da construção do Maracanã, com capacidade de público reduzida para 70 mil pessoas, será voltado para a televisão – que também explora o rentável mercado de pay per view – e não propriamente para o torcedor, a quem caberá aplaudir o espetáculo, sentado, como em um concerto de ópera.[6] O que está em jogo é também a cultura torcedora do país. Ao mesmo tempo em que a estrutura física dos estádios é alterada, o Senado aprovou, no ano passado, um projeto de lei que torna mais rigoroso o Estatuto do Torcedor. O texto proíbe xingamentos dentro dos estádios de futebol por parte dos torcedores, os quais estarão sujeitos a uma central técnica de informações com capacidade suficiente para monitorá-los policialescamente (tal qual um Big Brother).[7]
Vale assinalar ainda que não apenas as formas de lazer dos trabalhadores serão atingidas, mas também as suas conquistas históricas. O Projeto de Lei PLS 728/2011, de autoria dos senadores Ana Amélia (PP-RS), Marcelo Crivella (PRB-RJ) e Walter Pinheiro (PT-BA), pretende restringir o direito de greve no Brasil no período que antecede a Copa do Mundo e durante a sua realização. Ainda segundo a proposta, quem “provocar terror ou pânico generalizado” pode ser enquadrado como “terrorista”, com punições duras e penas altas. A chamada Lei Geral da Copa, um esdrúxulo diploma legal de exceção, vem sendo oportunamente alcunhada de “AI-5 da Copa” pelos críticos ao caráter dos megaeventos esportivos no país.[8]
Por fim, cabe perguntar: quem serão os felizardos que poderão assistir aos jogos da Copa do Mundo? Segundo projeções da FIFA, que definirá o preço dos ingressos, pelo menos 85% destes serão destinados a torcedores comuns, ficando o restante disponibilizado para convidados, autoridades e imprensa. Os bilhetes terão quatro categorias, numeradas de 1 a 4, sendo a última a mais barata. Dos pouco mais de 3 milhões de ingressos da competição, pelo menos 300 mil terão que ser da categoria 4, de custo estimado em US$ 50.[9] Em termos de venda de ingressos, o filão mais lucrativo para os organizadores ficará por conta da comercialização dos pacotes. Um destes, que oferece camarotes (de 16 a 26 pessoas) para os 19 jogos que acontecerão em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte sairá por volta de US$ 2,3 milhões. Para assistir a todos os jogos de uma seleção participante, por exemplo, o torcedor terá que desembolsar US$ 30,9 mil. Já os endinheirados que desejarem exibir seu charme nada discreto em suntuosos camarotes nos jogos da seleção brasileira poderão adquirir pacotes VIPs, cujos valores variarão entre US$ 2.350 e US$ 1,75 milhão. No cômputo geral, as várias modalidades de pacotes VIPs representarão 12% dos total de ingressos, isto é, 415 mil unidades (ou seja, quantidade significativamente superior aos ingressos mais baratos, da categoria 4).[10]
Segundo alguns apologetas do empresariamento/aburguesamento do futebol brasileiro, o modelo esportivo implantado na Copa do Mundo deverá servir de exemplo para os campeonatos seguintes realizados no país, devendo ser quase que totalmente adotado por aqui após o término da competição internacional. Nesse sentido, não seria exagero dizer que, se depender da vontade dos atuais donos da bola no país, na próxima Copa do Mundo os trabalhadores e a juventude pobre serão despudoradamente jogados para escanteio, e o futebol brasileiro passará por um fundamental capítulo de seu processo de modernização conservadora.
[1] O empresário Edmundo Santos Silva, ex-presidente do Flamengo na virada do século, tornou-se anedótico por se referir aos torcedores do time carioca como seus “clientes”.
[2] http://extra.globo.com/esporte/triste-realidade-no-brasil-82-dos-jogadores-de-futebol-recebem-ate-dois-salarios-minimos-6168754.html
[3] Em abril de 1989, uma tragédia na partida entre o Liverpool e o Nothingan Forest comoveu o mundo com o seu saldo de 96 mortos e 766 feridos. Na época, as vítimas foram propositalmente associadas ao grupo de torcedores do Liverpool, que teria sido responsável pelo episódio. Essa manipulação grosseira tirou o foco das reais causas do incidente: a precariedade do estádio e a negligência da polícia.
[4] Como culminância desse processo, foi fundada em 1992 a poderosa Premier League, termo pronunciado com o mais alto requinte anglófilo pelos nossos locutores e comentaristas esportivos. A nova liga trouxe, a reboque, uma nova e neoliberal legislação econômica para o futebol, cujos efeitos são, entre outros, os atuais déficits dos clubes integrantes.
[5] Os interessados em uma análise crítica das transformações antipopulares ocorridas no futebol inglês no período em questão podem consultar o livro A rainha de chuteiras (um ano de futebol na Inglaterra), de autoria de Marcos Alvito, lançado em 2013.
[6] http://www.youtube.com/watch?v=rPVErT91bqQ.
[7] Numa votação rápida e sem discussão, a apresentação do Projeto de Lei que prevê modificações no Estatuto do Torcedor foi feita pelo então presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), que, para aumentar o ridículo da situação, afirmou: “Esse projeto é do maior interesse do povo brasileiro”. http://www1.folha.uol.com.br/esporte/763629-senado-endurece-estatuto-do-torcedor-e-proibe-ate-xingamento-em-estadio.shtml.
[8] A Lei Geral da Copa revela a grande flexibilização das leis brasileiras, reivindicadas pela FIFA e aceitas pelo Governo Federal. Entre muitos outros pontos, o texto concede à FIFA o direito de definir áreas de restrição comercial em até 2 quilômetros em volta dos estádios, proibindo o comércio de fazer publicidade de concorrentes de patrocinadores no entorno dos mesmos; estipula tipos de crimes até 31 de dezembro de 2014 pela reprodução ou falsificação de símbolos da FIFA e divulgação de produtos relacionados à Copa, com pena de detenção de três meses a um ano, mais multa.
[9] Os ingressos desta categoria (4) serão colocados à venda por meio de sorteios em que somente brasileiros poderão concorrer. Estudantes, pessoas com 60 anos ou mais e beneficiários de programas sociais do governo federal terão prioridade de compra. De acordo com a atual versão do projeto da Lei Geral da Copa, esses setores sociais gozarão de 50% de desconto no valor daqueles ingressos (que, assim poderá ser adquirido a US$ 25). Extraoficialmente, a FIFA já se demonstrou insatisfeita com este modelo, embora seja relativamente pequeno o percentual de ingressos destinados à categoria 4.
[10] http://copadomundo.uol.com.br/ingressos/ .
(Artigo publicado originalmente na revista R.)
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