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TEORIA

Por que o marxismo é otimista? (Parte 2)

Valério Arcary

Napoleão creio, escreveu: “On s’engage et puis … on voit”(…) isto significa: “Primeiro nos engajamos em uma batalha séria, e depois vemos o que acontece.” Bem, primeiro nos engajamos em uma batalha séria em outubro de 1917 e, em seguida, vimos os detalhes do desenvolvimento (do ponto de vista da história do mundo foram definitivamente os detalhes) como a paz de Brest, a Nova Política Econômica, e assim por diante. E agora não pode haver dúvida de que, na maior parte, temos sido vitoriosos.[1]

Vladimir Ilitch Ulianov, alias, Lenin

O otimismo marxista repousa em uma aposta estratégica. Onde admitimos uma  aposta aceitamos um cálculo. Em toda e qualquer luta há sempre mais que uma possibilidade de desenlace. Há vários tipos de vitórias, outros tantos tipos de derrotas e, entre os dois resultados extremos, muitos intermediários.

O argumento marxista sempre foi fundamentado em uma certeza. Não nos enganemos. Sem certezas não há perspectiva de luta séria. A confiança e firmeza na hora da luta não diminui, evidentemente, a importância de um exame sensato, prudente, ponderado das probalidades, ou seja, da relação de forças. Mas, finalmente, sem ousadia, coragem, confiança, não é possível lutar com a disposição necessária para vencer. O combate anticapitalista exige tanto responsabilidade, quanto audácia. Aqueles que opoem o realismo ao otimismo, enganam-se a si próprios. A certeza marxista é que o capitalismo leva a humanidade à destruição da vida civilizada e que, portanto, é preciso tentar derrotá-lo. Esta certeza se alimenta de uma análise científica da natureza do capitalismo e se fundamenta em uma lição histórica.

Quando uma ordem econômica, social e política revela incapacidade para realizar mudanças por métodos de negociação, concertação ou reformas, as forças sociais interessadas em resolver a crise de forma progressiva recorrem aos métodos da revolução para impôr a satisfação de suas reivindicações. Essa foi a forma que assumiu a defesa de interesses de classe na história contemporânea.

A história, contudo, não é sujeito, mas processo. O seu conteúdo é uma luta. Essa luta assume variadas intensidades. A revolução política é uma dessas formas. A frequência maior ou menor em que ela se manifesta é um indicador do período histórico. Todas as revoluções contemporâneas tiveram uma dinâmica anticapitalista, maior ou menor, mas não foram todas revoluções, socialmente, proletárias. Todas as revoluções socialistas da história começaram como revoluções políticas.

Quando existiu a possibilidade de revolução esteve presente, também, o desafio de vencer o perigo da contra-revolução. No passado, soluções reacionárias da crise econômica, como depois da crise dos anos 1970, ou até uma saída contra-revolucionária, como foi o nazi-fascismo depois da crise 1929, permitiram uma recuperação transitória. Essas recuperações não foram suficientes para impedir que novas crises, ainda mais sérias, explodissem anos mais tarde. O sistema conseguiu ganhar algum tempo, mas a anarquia da produção capitalista voltou a se manifestar de forma catastrófica, demonstrando que o prognóstico marxista sobre o destino do capitalismo permanecia vigente.

A dimensão utópica de um projeto igualitarista nunca poderia der minimizada, já que a aposta política sempre dependerá de um engajamento que exige o enfrentamento de dúvidas e riscos, para não esquecer dos perigos e das derrotas.

Todas as fórmulas que depositam “na história” a esperança de definição de uma luta que exige empenho, sacrificío, portanto, máximo voluntarismo só podem ajudar a semear ilusões fatalistas ou ceticismos deterministas. A “história” não pode decidir nada porque não é sujeito, mas processo. Os revolucionários defendem um projeto que, como Gorender destacou, tem pressa:

A sofreguidão de Marx e Engels não é difícil de explicar. A ex­pectativa de realização de um ideal revolucionário não pode ser pos­tergada para além da vida do revolucionário. Se este não tiver em vista a possibilidade do êxito do seu esforço ainda em sua geração, estará, na verdade, adotando um credo religioso. A esperança da rea­lização de um ideal pelas gerações seguintes equivale à fé na vida após a morte, à crença no sobrenatural. O revolucionário luta para que ele próprio e seus contemporâneos façam a revolução. E se con­vence de que sua perspectiva é acertada. Marx e Engels se distingui­ram dos utopistas sectários pelo projeto de elaboração de bases cien­tíficas para o objetivo comunista e pelo encaminhamento do movimento operário no sentido da luta política. Mas se identifica­vam com eles no que se refere à paixão revolucionária.[2]

O socialismo sempre foi entendido pelo marxismo como um projeto que depende da capacidade de mobilização e organização de forças sociais com interesses anti-capitalistas. Em outras palavras, a maturidade de um sujeito social. Sem a confiança ou, se quiserem, a “fé” na possibilidade dos trabalhadores e seus aliados serem vitoriosos, o que, sumariamente, poderíamos chamar uma identidade de classe, seria muito difícil sustentar de forma continuada uma militância que exige sacrifícios e abnegação.

Mas o marxismo insistiu sempre, também, na presença de sujeitos políticos capazes de traduzir esses interesses numa perspectiva de poder. A construção dessa organização revolucionária antecede, necessariamente, e em muito, a maturidade subjetiva do proletariado. O que significa que os militantes marxistas deverão viver um longo intervalo de espera. Em situações defensivas, em que a relação de forças entre as classes é desfavorável, as expectativas dos trabalhadores se reduzem. Toda espera exige esperança, e envolve o risco do cansaço.

Esse sentimento que já foi denominado, no passado, de “robusto optimismo” na disposição revolucionária do proletariado é indispensável para alimentar um projeto político, e tem uma evidente dimensão utópica. O problema, todavia, é que a fórmula “paradigma utópico” tem sido utilizada como uma alternativa a socialismo e até, freqüentemente, como uma alternativa nebulosa à necessidade mesma de uma perspectiva estratégica pós-capitalista.

Em uma situação como a que vivemos, de crise do capitalismo, mas, também, de crise e reorganização do movimento operário e, portanto, de grandes incertezas, não é estranho que as inseguranças ideológicas ganhem terreno: boa parte da esquerda mundial se sente incômoda até com o conceito de socialismo, e treme diante do conceito de comunismo. A nova respeitabilidade do conceito de paradigma utópico se explica porque, confortavelmente, promete dizer muito sem se comprometer com nada.

Por um lado, ele remete ao esquematismo das correntes campistas que se dedicaram, incansavelmente, durante décadas, à defesa incondicional das “realizações” da construção do socialismo na URSS e na China (ou mesmo na Albânia), ainda que as evidências socioeconômicas, entre outras, contrariassem de forma cada vez mais indisfarçável, que os regimes burocráticos podiam ser qualquer coisa menos um regime em transição ao socialismo.

Por outro lado, ele expressa as tremendas pressões que se abateram nas últimas duas décadas sobre as organizações de massas do movimento operário, com o colapso da ex-URSS, e a ofensiva do neoliberalismo. Traduz, nesse sentido, um movimento teórico confuso de adaptação ao discurso anti-socialista predominante, uma reciclagem da socialdemocracia européia. Mas é também usado por socialistas sinceros como uma fórmula que busca ir além dos excessos deterministas do que foi por muito tempo identificado pelos ex-partidos comunistas como os dogmas do “socialismo científico”.

De qualquer maneira, é desconcertante como tantos socialistas a aceitem com ligeireza, no lugar ou como sinônimo de socialismo. Essa, evidentemente, não é uma escolha inocente. E confessa mais sobre as atuais dificuldades de crítica de boa parte da esquerda mundial, diante das “virtudes” da “democracia republicana” (o “mantra” dos valores absolutos repetido à exaustão), do que explica sobre o que se pensa sobre um projeto de sociedade igualitária e libertária.

Pós-marxista ou mesmo pós-socialista, crítica da idéia de projeto e elogio da idéia de processo, defesa da indivisibilidade dos imperativos morais e da política, a fórmula do paradigma utópico tem sido uma das coqueluches teóricas em moda, para encobrir o velho gradualismo reformista. Esse é o endereço final do ceticismo, e merece, portanto, ser criticado. A ele opomos o otimismo leninista. On s’engage, et puis on voit.


[1]LENIN, Vladimir. Our Revolution, (A propos of N. Sukhanov’s Notes). Disponível em: http://www.marxists.org/archive/lenin/works/1923/jan/16.htm

Consulta em 30/04/2013.

[2] GORENDER, Jacob, Marxismo sem Utopia, São Paulo, Ática, 1999, p.16.